É uma partida de 3D&T
O grande salão estava quase vazio. A luz que vinha do grande vidro pintava as paredes e o som mágico de algum feitiço reverberava no local. Apenas duas pessoas encontravam-se ali. Uma mão de garras afiadas remexeu no pote que repousava no majestoso sofá e tirou alguns grãos do que parecia ser amendoim. Do outro lado da sala, sentado em uma poltrona menor, de cabelos arrepiados e sem camisa pelo calor que fazia ali, o elfo bradava animado.
— Eles vão todos morrer! — ria em júbilo. — Eles são muito fracos!
— Edauros, acalme-se. Já estávamos exaltados agora a pouco, agora relaxe e aproveite o show.
— Foi mal Kally, é que eu lutei com eles, né. E eles caíram tudo rapidinho, sabe como é…
O deus dos dragões suava um pouco, seu corpo ainda estava quente. Sinalizou para que o sumo-sacerdote ficasse em silêncio. Na grande tela, via-se quatro humanos e uma elfa aprisionada no corpo de uma humana. Eles discutiam e mexiam pequenas imagens que representavam heróis em Arton. Naquele momento, alguém falava sobre “anulação de magia ter alcance curto”.
— Kally, por que mesmo essa moça de cabelo roxo fala como se fosse a Prunna?
— É assim que o multiverso funciona, você não prestou atenção quando expliquei antes?
Edauros coçou a cabeça constrangido.
— Eu estava um pouco cansado.
Kallyadranoch revirou os olhos. Talvez terem se exercitado antes de assistir aquilo não tivesse sido uma boa ideia. Os acontecimentos se desenrolavam e Mu saltava no meio da legião de guerreiros, explodindo um trovão e atacando os lichs em seguida. Na sequência, os necromantes que sobraram impediam Prunna de conjurar suas magias. Sedrywen saía de um dos dínamos que havia destruído e Zanshin lutava junto de Enki para proteger a dahllan dos temíveis Barghest atrozes.
Em dado momento, Drazag — filho de Ragnar que liderava aquele exército — ataca o arcanista e o fere mortalmente. Contudo, a bênção do deus da morte brilha e o toque da ruína transforma o homem em pó. Sua existência havia sido obliterada. Kally rilhou os dentes.
— Falei que eles eram fracos! Já morreu um! — Edauros comemorou.
— Bola na trave não altera o placar.
— Que?
— Nada, é algo que Mu diria.
— Que?
Revirando os olhos de novo voltaram a observar os acontecimentos se desenrolando. Drazag os ameaçava tentando persuadi-los a desistir e se render. Os jogadores, como Kallyadranoch havia os chamado, riram. Era a vez de Prunna, e isso normalmente levava algum tempo e inúmeras discussões e hipóteses. O tempo parecia correr mais devagar, Edauros se incomodava com aquilo.
— O que é esse monte de texto que aparece ali do lado?
— Nada de mais, só conversas paralelas.
— Quem é esse tal Caçador Fantasma e por que ele está entregando o jogo? É coisa sua, deus dos dragões?
Kally não respondeu. Ao invés disso, citou algo que acontecia no momento.
— Olha, minha irmã está aparecendo. Me pergunto o que Tauron acha de todo o protagonismo que Glórienn vem tendo nestes acontecimentos.
Mal terminara de falar e Prunna entoava uma música em dracônico. O sorriso do deus do poder quase não coube no rosto. Levantou em êxtase derrubando o pote que havia sobre o sofá e seu rugido assustou até mesmo Edauros.
— Isso! Agora sim! Isso ali — falava com a voz gutural enquanto apontava uma garra afiada para a tela — é o poder de um deus! Não, não. A encarnação viva do deus do poder ! — concluiu exibindo o próprio corpo.
— Caramba, a Prunna tá com um olho de cada cor, igual você!
As palavras da arquibarda invocaram um espírito enorme de um dragão vermelho. A presença dele emanava a essência divina de Kally, inspirando e fortalecendo a todos. Em seguida, bradou uma canção de ressurreição, invocando todo o poder que somente o deus dos dragões poderia conceder. Grão por grão, o corpo de Mu se refez, trazendo-o de volta a vida e espantando o filho de Ragnar com tamanha força mágica que ela invocava.
Zanshin deslizava sua lâmina pelos Barghest com tanta facilidade que a lâmina pareceu fatiar o tempo e espaço. Sedrywen, tomada pela centelha de Glórienn, apontou uma flecha na direção de Drazag e bradou com a voz em dualidade. Uma mescla da sua própria e a da deusa dos elfos.
— Faça então o sacrifício supremo pelo seu deus e morra!
A flecha cravou fundo no peito do filho de Ragnar, que olhava a elfa incrédulo. Edauros encarava a tela boquiaberto enquanto o goblinoide era pulverizado por um único disparo e sentiu um calafrio percorrer a espinha. Pensava em como havia vencido aquelas pessoas tão facilmente. Então Sedrywen largou seu arco e sacou um enorme sabre élfico de uma bainha que definitivamente não servia para ele.
— Isso! Tudo conforme o plano! Vai garota! Vai irmã! — o deus dos dragões estava tão empolgado que seu corpo aos poucos inchava e escamas multicoloridas começavam a cobrir sua pele.
Na tela, a elfa com um sorriso insano no rosto cortou os lichs restantes com tanta facilidade que nem mesmo seus aliados acreditaram. Enquanto ela embainhava a arma, puderam ouvir Glórienn agradecendo. A vingança élfica finalmente havia chegado. Kallyadranoch atirou-se no sofá arfando, o corpo voltando ao normal. Edauros fez um muxoxo.
— Ah, não fique assim. As vezes o time que nós torcemos perde, acontece.
— Você disse que tudo rolou conforme seu plano, eu posso saber o que você anda armando?
— Não, do contrário as coisas poderiam mudar. O tempo é esquisito, conforme uma sábia me contou.
Os dois ficaram em silêncio um tempo assistindo o restante daquela transmissão multidimensional. A ação do combate e a que tiveram antes do show começar havia os exaurido. Até Kallyadranoch estava cansado, apesar que jamais admitiria. Com o olhar sonolento, uma última coisa chamava a atenção de Edauros.
— Meu senhor, se me permite uma última pergunta, por que há uma sombra estranha atrás do homem sobre o texto que diz mestre? É como uma réplica dele, mas mais sombria e parece vestir uma máscara…
O deus dos dragões não desviou o olhar da tela, seu sorriso desapareceu e apertou os lábios.
Ele não respondeu.