Ascensão e queda

Diogo Stone
6 min readApr 15, 2021

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O horizonte pincelado de vermelho ressoava com os relâmpagos que cortavam os céus. O barulho dos trovões era constante e esquisito. O som produzido pela anticriação era incompreensível aos ouvidos de Prunna que lutava contra a criatura monstruosa. Ela parecia uma mancha rosada em meio à vermelhidão que se espalhava gradualmente por toda a extensão que sua vista alcançava. O monstro tinha um corpanzil esverdeado, patas de aranha e vários olhos pendendo de tranças que enfeitavam três cabeças com bocarras enormes.

Megalokk estava diferente, corrompido. Um de seus golpes acertou a dahllan e a arremessou contra o chão.

A dríade com cabeça de servo se aproximou da arquibarda e suas mãos brilharam em verde, despertando-a. Balançou a cabeça e encarou sua salvadora.

— Obrigado mãe, eu continuarei a proteger tudo isso. Custe o que custar.

Allihanna assentiu.

Quatro outras Prunnas surgiram. Uma entoava um poema ritmado com o balançar do cajado do tempo, outra tocava uma marcha instigante enquanto a verdadeira barda e outras duas saltavam para os céus e disparavam raios, bolas de fogo e ácido contra o deus dos monstros. Em sua visão periférica, a deusa dos animais viu um borrão lilás partir o céu vermelho. Ascendeu com asas de falcão, emplumadas e recobertas de carapaças rubras. A anticriação corrompia não apenas sua morada, mas toda a natureza. E ela era a própria natureza.

Com uma golfada de ar, desacelerou a elfa que havia sido arremessada. Tocou o arco da mulher e ele cresceu, tornando-se uma galhada com várias cordas. Somente alguém habilidosa como Sedrywen poderia fazer uso de tal instrumento. Com os olhos ardendo com a essência de Glórienn e os cabelos brilhando, a elfa assentiu em agradecimento e atirou-se contra a forma gigante e aterradora de um minotauro ao longe.

As chamas que envolviam a cabeça dele brilhavam em tons carmesins, misturando-se ao ar, ao solo e ao tempo. Tauron urrou e tentou golpear Sedrywen com seu braço, que também era seu machado. O golpe errou por muito e os disparos dela iniciaram. No primeiro, o renovado e corrompido deus da força cambaleou; no segundo, ele caiu sentado; no terceiro ele já estava deitado de costas. Os outros doze o pregaram ao chão — as flechas pareciam arpões de luz tentando trazer a lucidez de volta à ele, afastando seus pensamentos da aberração lefeu.

Mas a mente coletiva era forte demais. Seus músculos incharam e se torceram de uma maneira que nenhum osso resistiria e, logo, ele estava de pé novamente. Em fúria, desferiu um novo golpe do seu braço-machado, mas Sedrywen sacou sua wakizashi — que se tornou um sabre élfico — a tempo, aparando a arma aberrante e colossal.

Uma sombra se formava nos céus. O olho cheio de tentáculos e garras chamou a atenção de Allihanna que, sem hesitar, atirou-se em sua direção. A anticriação já tinha a afetado demais. Ela própria era uma paródia de alguma espécie de centopeia que ardia em chamas. Cada uma de suas várias garras se engalfinharam com as da criatura e, nesse momento, Aharadak riu.

— Você está se tornando uma de nós — o farfalhar de chiados que era a voz do deus da tormenta disse.

— Mas hoje o mané é você! — o brado de Mu sobressaiu os sons de trovões que pareciam cada vez mais próximos.

Brandindo sua espada, o terror de Lamashtu, partiu cinco garras de Aharadak. O deus grunhiu algo que somente um linguista como Mu, ou um lefeu, entenderiam. Allihanna sangrava âmbar dourado e o homem pediu para que ela se afastasse. A deusa o achou ousado. Era difícil acreditar que um deus menor, mesmo tendo ascendido pela sua persistência, pudesse apresentar tantas facetas. Talvez essa fosse a beleza de ser mortal. A deusa da natureza assentiu e se afastou, mal tendo tempo de sair do alcance dos raios explosivos que emanavam do braço mecânico de Mu. O tempo estudando com Reynard havia sido útil, pois agora suas magias afetavam os seres da anticriação.

Allihanna ia em direção ao solo quando avistou uma montanha explodir e lançar destroços em todas as direções. De dentro de seus escombros, saía o corpanzil de um lagarto; esguio, deformado e recoberto de espinhos e tentáculos. Era Igashera, o invasor. Aquele que tinha começado tudo aquilo querendo matá-la e tomar Arboria para si.

Aharadak e ele haviam corrompido Megalokk e Tauron, até mesmo trazendo o deus da força de volta ao posto de divindade maior. O Panteão estava desequilibrado mais uma vez. Haviam divindades demais e os lordes da tormenta fariam de tudo para manter a instabilidade. Quebrar o elo de Arton com a natureza e tomar o lugar de Allihanna de deusa maior fazia parte desse plano.

Igashera cuspiu um raio de plasma, carne e matéria-vermelha na direção de seu adversário, mas Mushin estava preparado e, com sua lâmina titânica, repeliu o ataque aberrante da criatura.

— Você destruiu Tamu-Ra uma vez — censurava a voz de Zanshin e Kuraiga unidas como uma só — e eu não deixarei que faça isso com Arboria.

Bradou um de seus golpes, o infalível, e separou o corpo do lorde da tormenta de um de seus braços. Ele grunhiu e se sacudiu, mas com a mesma velocidade que o corte lhe ceifara o membro, um novo cresceu em seu lugar. Tomada pela fúria, Allihanna desceu dos céus vermelhos tomando a forma de um enorme gorila. Agarrou uma das árvores gigantescas de seu plano e acertou Igashera na cabeça. Ele cambaleou e caiu, somente para arrastar-se para longe da dupla samurai e animal que o enfrentavam.

O ruído dos trovões se intensificou e, ao longe, podiam observar uma enorme massa rubra se aproximando. Estarrecidos, os desafiadores da anticriação perceberam que o som que ouviam não era do estouro de relâmpagos, mas sim, de um maremoto massivo que cruzava todo o plano da natureza. Uma onda de sangue que corrompia tudo que ela tocava. Imponente, no topo daquela parede de abominações estava Oceano — com três pares de braços cruzados e sua feição estoica. A passividade dos mares havia acabado e a calmaria das águas havia dado lugar ao impulso destruidor. Ele havia escolhido um lado naquela guerra.

Da terra, uma das bocarras do deus dos monstros surgiu e prendeu Allihanna entre os dentes. Seu sangue dourado escorreu e caiu sobre a segunda bocarra que emergia, carregando o corpo de Prunna inconsciente. Um disparo do plasma bizarro de Igashera contra um Mushin distraído, lançou o samurai a quilômetros de distância. O restante do corpo de Megalokk saiu do solo. O frescor do sangue da deusa dos animais enlouquecia o já insano deus dos monstros. Seus urros despertaram a dahllan que agonizava presa ao lado de sua deusa mãe.

— Fuja, minha filha. Você ainda consegue — a voz dela soava como a súplica de uma mãe, não como o comando de uma deusa.

— Eu jamais deixaria você para trás. Se eu deixar a natureza morrer, eu estarei deixando que me matem — a arquibarda era teimosa.

— É tarde demais pra mim — o som do maremoto gritava cada vez mais próximo. — Já estou corrompida, é apenas questão de tempo para que eu me torne uma deles. Parte deles.

Sedrywen e Mu lutavam devagar, exaustos. Em algum lugar, longe dali, Zanshin e Kuraiga estavam caídos lado-a-lado, possivelmente desacordados. Prunna olhou a deusa da natureza com tristeza, mas havia uma última coisa que ela poderia fazer. Algo que fora feito no passado com seu deus padroeiro, algo que acontecera com Kallyadranoch.

— Eu posso tirar nós duas daqui. Mas não fisicamente, apenas em essência.

A deusa assentiu. A tormenta farfalhava com as bilhões, trilhões de vozes uníssonas ao redor de todos. Prunna lançou uma magia de aprisionamento em si mesma, cantou uma música com pesar e uma estrela dos céus desapareceu. Quando o raio interestelar atingiu Allihanna, a dahllan acordou de sobressalto.

O pesadelo daquele dia sempre era vívido demais, dolorido demais. Sentou-se em sua cama e passou as mãos pelos cabelos, assustando-se. Ainda não havia se acostumado à sua nova aparência. Levantou-se aturdida por todas aquelas memórias e caminhou até um grande espelho que havia no cômodo — se olhou e torceu o nariz. Não que se achasse feia daquela maneira, longe disso. Mas, agora, ela atraía muito mais olhares onde quer que passasse.

Um lado de seu rosto, de traços finos e graciosos, era adornado por seu olho verde como uma esmeralda. Puro como a alma de Allihanna que habitava nela. Do outro, a íris era um borrão vermelho que incomodava a vista de quem observasse. Corrompido como a tormenta. De um lado da cabeça, um chifre imponente de cervo, do outro um córneo rubro e retorcido.

Metade deusa, metade lefeu.

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Diogo Stone
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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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