Capítulo 2: Caminhos
ATENÇÃO! O conto a seguir pode conter informações de algum romance de tormenta. Mas se você leu a história parcial do T20, você está seguro.
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Azgher brilhava alto aquecendo a embarcação. O mar calmo e o vento forte faziam a viagem especialmente tranquila. Enki, filho de Prunna e Benthos, divertia-se falando com o timoneiro enquanto Mu e Sedrywen conversavam apoiados contra a amurada.
— E aí — o homem começou do seu jeito largado. — Que aventuras élficas você trilhou nesses últimos anos.
— Eu matei puristas — comentou com uma simplicidade e alegria estranha se tratando de mortes. — Eu sorria a cada flecha cravada naqueles malditos.
— Você também se meteu nessa? Caramba! Meu amigão aqui — comentava batucando a madeira do barco — afundou alguns navios daqueles desgraçados. Não sabia que você tinha se alistado.
— Eu não me alistei, Mu, eu sou uma elfa — exibia as orelhas pontudas, enfatizando o óbvio.
Os puristas haviam deixado uma marca em Arton. Arrasado as terras próximas ao reino de Yuden e provocado o caos enquanto caçavam qualquer não-humano. Impuros, segundo seus ideais criminosos.
— Nem acredito que estamos indo pra Tamu-Ra de novo. Aquele culto de Lamashtu era pedreira — a recordação estremeceu seu corpo.
— Dessa vez não precisamos nos preocupar com eles — comentou divertida.
— É verdade. Dessa vez não vamos precisar salvar o Zanshin também — riu.
A menção do tamuraniano trouxe uma sombra ao rosto de sua amiga, que desviou seu olhar ao oceano, para longe.
— Você falou com ele nesses últimos anos, não falou? — indagou preocupado.
— Nós tivemos que trilhar caminhos diferentes, tinha muita coisa acontecendo. Seis anos atrás, Glórienn caiu — suspirou, a voz soava triste — , a aliança negra avançou, os puristas atacaram. E alheio a tudo isso, Tamu-Ra se reerguia depois da intervenção do culto de Lamashtu. Eu precisava ficar, o filho de Lin-Wu precisava partir. Acho que foi melhor assim…
— Que é isso! Fala assim não — indignado, Mu gesticulava com os braços enquanto falava. — Vocês tiveram seus motivos, cada um teve que resolver uns problemas. As vezes o encontro ocorre quando não é oportuno, mas não é pra ser um adeus, é só um até breve.
As palavras de seu amigo abriram um sorriso frágil e meio constrangido em Sedrywen. Ela queria acreditar que a chama continuava queimando, mas naquele dia não houve adeus. Nem até breve.
— Você sempre tem algo a dizer?
— E eu sempre tenho razão — respondeu alegre.
O jovem meio-dragão se aproximava saltitando de alegria, atraindo a atenção de seus tios.
— Estamos chegando! — exclamava abanando os braços.
Mu deu uma olhada rápida ao redor; água.
— Não parece.
— Meus amigos disseram que sim — apontava para o mar.
O jovem Enki começara a contar sobre os golfinhos que conversavam próximo ao navio. Falavam sobre uma fartura de peixes e que o mar andava estranhamente calmo, ainda mais assim próximo da costa. Os dois acompanhavam curiosos os relatos do rapaz quando uma voz interrompeu sua narrativa.
— Terra à vista! — gritou o marujo do ninho do corvo.
Mu e Sedrywen se entreolham.
— Eu disse. Eu sempre tenho razão — comentou piscando para seu tio.
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A primavera perfumava o ar de Tamu-Ra. Mu deixara a embarcação aos cuidados de seu timoneiro, como sempre fazia. Não perderam tempo no porto e logo rumavam às terras de seu amigo. Ficaram surpresos de saber que — fora o imperador — ele era o homem mais influente de toda a ilha.
O confronto com Lamashtu mostrou ao povo tamuraniano quem Zanshin realmente era. Filho legítimo de Lin-Wu, o grande dragão de jade, o deus da honra. O culto havia devastado alguns feudos e não demorou até que alguns fossem dados à casa Himekawa, para que fossem responsáveis por reconstruí-los.
Os portões de madeira maciços da mansão da família exibiam o brasão do deus de Tamu-Ra. Por cima, uma ameia protegida por guardas armados com bestas. Quando se identificaram, os homens que guarneciam o local ficaram receosos. Mas logo um deles notou Enki, o rapaz trazia características marcantes demais para passarem despercebidas. Não demorou muito para serem recepcionados e adentrarem no local.
Caminhando pelos jardins, várias cerejeiras chamavam a atenção. O meio-dragão parecia triste olhando as árvores que lembravam sua mãe. O grupo foi levado por um guarda até a mansão, onde um senhor de idade — o qual vestia um kimono de seda preto com uma faixa branca amarrada a cintura — os cumprimentou.
— Vejam só, se não são os queridos amigos do senhor Himekawa. Me chamo Kido, sou mordomo desse palácio. Venham, entrem. Sintam-se à vontade. Himekawa-tono disse que não importa o que estivesse fazendo, vocês sempre seriam bem-vindos.
— Kido, né? O senhor poderia nos levar até ele? — era Mu. — Sabe, é que a gente tem umas coisas urgentes pra falar com ele.
— Vocês não preferem tomar um chá antes? — a voz do homem tremulou.
— Ah, saquei. Entendi. Ele tá numa reunião super importante com os amigos novos dele, né? Vem Enki, vamos dar uma volta pelo palácio do seu tio. Depois a gente volta pra ver o Himekawa-tono.
Com o rapaz em seu encalço, Mu saiu a passos pesados para os jardins com as cerejeiras.
— Desculpe por isso. Deve estar com a cabeça quente por motivos que só ele entende — Sedrywen comentava entrando na sala e se aconchegando em uma das almofadas dispostas pelo chão.
— O senhor Himekawa virá os encontrar logo, perdoe-me. Uma de suas pretendentes está o visitando hoje e…
— Pretendentes? — a elfa soou mais surpresa do que gostaria.
— Sim jovem dama. Senhor Himekawa recebe muitas cartas e visitas das filhas dos lordes locais. Seu modo notório de gerir as terras e seu título como filho do grande dragão de jade atraem muitos olhos para esta casa.
Uma risada feminina interrompe a conversa. Logo, um Zanshin sorridente surge ao lado de uma moça altiva e bela. Sua pele clara e longos cabelos roxos lembravam uma Sedrywen de tempos passados. Seu rosto fino, adornado por um sorriso malicioso e um olhar afiado, esbanjava olhos claros e amendoados. Os dois se olhavam enquanto conversavam e não notaram a elfa e o mordomo que estavam na sala.
— Então, quando vou poder te ver novamente? — sua voz doce a tornava ainda mais bonita.
— Tenho assuntos a resolver, mas creio que logo, lady Saori. Sua companhia é… — a voz do tamuraniano falhou ao ver sua ex-companheira e seu mordomo constrangidos. — Sedrywen? — gaguejou.
— Sedrywen? — a moça comentou surpresa antes de notar que haviam outros presentes.
— Perdoe-me senhor Himekawa — o homem comentou seguido de uma longa reverência. — Seus amigos chegaram a poucos instantes. O senhor Mu e o jovem Enki foram caminhar pelos jardins.
— Desculpe senhor Saori, digo, Kido, er… — as palavras se atropelavam e precisou de alguns instantes para não falar mais besteiras. — Perdoe-me Saori. Esses são meus melhores amigos e eles vieram de muito longe. Devem ser algum assunto muito importante para tratar. Senhor Kido irá lhe acompanhar até a saída.
Os olhos da moça passaram de Zanshin para Sedrywen e então voltaram para o tamuraniano.
— Tudo bem Shin-chan — disse fazendo um muxoxo — , digo Himekawa-tono — corrigiu-se corando e pondo a mão sobre a boca. — Até breve.
Com uma mesura profunda se despediu e partiu com Kido. Deixando a elfa sozinha com o filho de Lin-Wu.
— Shin-chan? — foi tudo que conseguiu dizer.
— Eu não sou mais fã de tantas formalidades. Senti saudades de você — disse sem cerimônia.
— Mas você esteve tão bem acompanhado — sorriu insinuando a moça que se afastava. — Adorei o cabelo dela.
— Saori é uma boa companhia — o homem sorria, mas sua voz parecia casada. — Você não faz ideia do horror que é ser visitado a todo instante. Lordes com suas filhas, camponeses com problemas. Sempre tem alguém precisando de algo.
Os dois ficaram quietos por algum tempo. Por maior que fosse a vontade de ambos dizerem o que pensavam, nenhum dos dois sabia se deveria tomar iniciativa. Contudo, Sedrywen encerrou o silêncio que os separava cada vez mais.
— Foram seis anos, né? Quem diria que tanta coisa mudaria?
— Mas muita coisa se manteve intacta — Zanshin a olhava nos olhos. — Você não envelheceu um ano sequer. Continua a mulher mais bela que já vi — disse se aproximando.
Corada, a elfa balançava a cabeça negativamente erguendo as mãos.
— Não faz isso comigo, por favor. Você tem uma reputação, um feudo, obrigações. Eu… nós — corrigiu-se — tomamos rumos diferentes. Não deu certo porque não era pra dar.
— Não?! — o tamuraniano soava abalado. — Achei que só tínhamos assuntos a resolver, caminhos distintos a percorrer. Mas eu esperava que eles se cruzassem de novo. E eu quero acreditar que eu estava certo. Você está aqui agora — com mais um passo, Zanshin tomou a mão de Sedrywen entre as suas. Ela desviou o olhar.
— Mas aqui as coisas são diferentes. Tem toda uma tradição — o lado racional da elfa tentava encontrar uma desculpa para não se abrir.
— Tradições foram feitas para serem mudadas, já dizia o Mu — Sedrywen voltava a olhá-lo nos olhos. — Não teve um dia em que eu não pensei se deveria voltar. Largar tudo aqui em Tamu-Ra e correr até você onde quer que estivesse. Nem que fosse só para poder te dizer o que eu não consegui naquele dia — suspirou. — No fim, acho que acabei aceitando meu destino aqui e esqueci de caminhar para onde eu queria — concluiu desviando o olhar ao chão.
Sedrywen afagou o rosto de Zanshin, fazendo-o a encarar novamente. A chama que ardia nela, mantinha-se viva nele.
— Naquele dia, acho que decidimos caminhar por estradas diferentes, mas acabamos seguindo o mesmo rumo. Cada um do seu jeito, mas juntos — pousou a mão sobre o peito do tamuraniano antes de concluir. — Nós seguimos juntos aqui dentro.
— Desculpe por não ter dito o que você significa pra mim — lamentou.
— Desculpe por…
— Não, não peça — disse interrompendo a elfa e pousando a mão em seu rosto — , você não tem defeitos para se desculpar.
Num abraço forte, os dois se envolveram num caloroso beijo. Sedrywen chorava pela saudade que deixava seu peito; enquanto o Zanshin derramava uma lágrima singular de felicidade. Os dois permaneceram assim por um bom tempo, aproveitando o fogo que voltava a arder com força dentro deles. Mantiveram-se abraçados de olhos fechados, aproveitando o momento.
— Eu disse — exclamou uma voz conhecida — , era só deixar eles sozinhos um tempinho — era Kuraiga.
O casal se separou de supetão, ela corada, ele constrangido — mas impassível. Debruçados sobre o assoalho com as cabeças apoiadas nas mãos estavam Mu, Enki e o próprio demônio das sombras.
— Sabe, eu até tava bravo com você cara, mas de repente eu tô de boas — Mu comentou alegre.
— A quanto tempo vocês estão aí?
— O suficiente, Zanshin, o suficiente — seu sorriso quase não cabia no rosto.
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A tarde foi acalentadora para todos. O tamuraniano dividiu com seus amigos como era sua vida em Tamu-Ra, enquanto Mu e Sedrywen relataram o que viveram em Arton durante os últimos anos. Enki contara empolgado sobre todos os poderes que vinha descobrindo, desde sua telepatia com a vida marinha até um olhar assustador que conseguia usar para espantar alguns animais selvagens — e pescadores, para o desespero de seu tio.
Tenebra se ergueu nos céus e depositou seu aconchegante manto de escuridão sobre os campos. Tiveram uma janta farta com comida típica de Tamu-Ra — como um macarrão com legumes refogados e peixe cru com arroz enrolado em alga. Enki se recusara a saborear o peixe, o jovem se negava a comer qualquer tipo de carne.
Após a ceia, o rapaz foi até as cerejeiras acompanhado por Kuraiga. Contava para o demônio sobre como lembrava de sua mãe, de sua bravura, bom humor e de como aquelas árvores traziam tantas memórias dela. A sombra que caçoava de todos tinha uma simpatia enorme pelo garoto, nunca fazia comentários sarcásticos e prestava atenção em cada detalhe.
Os três amigos ficaram sentados no chão ao redor da mesa. Sedrywen com a cabeça aconchegada no ombro de Zanshin, que sorridente apreciava o momento. Mu estava radiante como não fora a muito tempo. Finalmente estava reunido com seus companheiros de tantas aventuras, mas faltava algo. Faltava alguém.
— Zanshin, viemos até aqui por causa de um assunto importante — Mu interrompeu o silêncio tranquilo.
Sedrywen se ajeitou para que todos pudessem olhar uns para os outros antes de entrarem no assunto delicado.
— É sobre a Prunna. Precisamos encontra-la — a elfa complementou.
— Eu imaginei que esse dia chegaria — suspirou reunindo coragem — e eu busquei tudo que pude daqui sobre a tormenta nesses anos. Tamu-Ra se reergueu após a queda de um lorde rubro que chamavam de Crânio-Negro. Mas todas as descrições sobre a ilha, sobre o que houve aqui, nada chegava perto do que vimos.
Mu balançava a cabeça decepcionado. Esperava mais.
— Mas eu encontrei escrituras de um tamuraniano, da época em que a tempestade chegou até aqui. Masato Kodai era seu nome. Ele descreveu um local idêntico ao que fomos parar — a expressão estoica de Zanshin foi tomada por uma sombra de pesar. — Contudo, três de seus amigos não sobreviveram a investida. Eles caçavam um homem, ou melhor, uma das aberrações da tormenta. Chegaram através de um portal como nós, mas não um instável que surgiu do nada. Um aberto propositalmente por diabretes negociantes, nas Montanhas Uivantes.
Mu se pôs de pé, bateu o pó das roupas e ergueu o braço sorrindo.
— Beleza, o teleporte está pronto. Quem vem comigo?
— Não podemos sair assim, precisamos de mais informações sobre esse local. Sobre essas criaturas, o que eles negociam? — Zanshin enfatiza.
Os dois começaram uma discussão. Um defendia que deveriam sair imediatamente para o local desconhecido e resolveriam o resto no caminho; o outro optava por fazerem uma abordagem mais cautelosa e investigar mais antes de partirem.
— Quando Glorienn caiu — a voz de Sedrywen interrompeu a briga de imediato — , nós elfos vimos um abismo. Um fim que se parecia com um começo. Tudo parecia igual e também diferente. As coisas aconteciam rápido e devagar e tudo ao mesmo tempo. Era Confuso, como uma vastidão de lembranças que coexistiam a todo momento e em momento algum. No meio desse turbilhão de mentes, eu vi uma elfa senil e ela me viu também. Eu não sei explicar, mas sinto que ela está aqui nessa ilha. Ela parecia desprezar o que via, mas ela sabia exatamente o que era.
— Então vamos atrás dessa velhota aí! — Mu bradava impaciente.
— Isso é ótimo, podemos localizá-la e obter mais informações. Mas como você sabe que ela conhecia aquilo.
Sedrywen desviou o olhar dos amigos. Lembrar das cenas que presenciou durante a ascensão de Aharadak era terrível.
— Por que ela me olhava, ria do que acontecia com Glórienn e Tauron e chamava aquilo por um nome.
Um calafrio percorreu a espinha dos três.
— Ela a chamava de Anticriação.