Capítulo 3: Sombras

ATENÇÃO! O conto a seguir pode conter informações de algum romance de tormenta.
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Caminhavam pela mata vasculhando com atenção. Fazia cerca de vinte dias desde que haviam deixado o feudo de Zanshin para trás. Mu e Sedrywen partiram em busca da elfa anciã para obter respostas, mas o amigo tamuraniano ficou para cuidar de Enki. O jovem meio-dragão insistiu que gostaria de aguardar lá, e apesar de terem estranhado, dividiram-se para iniciar suas buscas.
— Essa é o que? A quarta eremita que procuramos? — Mu soava exausto.
— É a sétima — respondeu dando de ombros.
Haviam visitado várias senhoras que viviam isoladas, todas tamuranianas, nenhuma elfa. Buscavam a mulher que Sedrywen tinha visto quando presenciou a queda de Glórienn, doía-lhe lembrar o rosto da mulher, pois muitas outras memórias assombravam aquele momento.
Chegaram até uma clareira com um casebre no centro e a fumaça que saía da chaminé indicava que alguém vivia lá. O aspecto externo era horrível. A cabana estava mal-cuidada, com limo subindo pelas paredes e havia um fedor que não quiseram investigar a origem. Havia também um buraco no teto de palha.
— Não há lugar como nosso lar — brincou Mu.
A elfa ignorou o comentário e a dupla se aproximou da casa em estado lastimável, chamaram por alguém. Nada. Entreolharam-se, e como tinha feito em tantas outras visitas a alguma eremita, o homem avançou até a porta e a abriu com discrição.
Internamente, a cabana era ainda pior. O cheiro era ainda mais forte e tudo estava revirado, sujo de uma gosma esverdeada e com crostas avermelhadas em alguns pontos. A cama, se é que poderia ser chamada de tal, era apenas um revirado de palha e fezes. No canto, próxima a um forno acesso onde algo fumegava em uma panela, uma senhora élfica estava sentada. Com as costas arcadas, o rosto muito enrugado, os cabelos apenas fiapos grisalhos e as roupas desfazendo-se no corpo.
Ela sorriu sem dentes e um calafrio percorreu Sedrywen.
— Ela parece ter uns quinhentos anos — Mu sussurrou para a amiga.
A elfa senil riu, um guincho agudo e fino.
— Meus olhos podem não estar nas melhores condições, mas meus ouvidos estão inteiros — sua voz era estridente, marcante. Mas o que chamou mais atenção foi a mão coberta por uma carapaça vermelha. — Eu esperava por você, filha de Glórienn.
Sedrywen ficou sem reação. O lugar, a elfa, as lembranças. Tudo se misturava em um redemoinho de horrores.
— Legal, legal — Mu se apressou dizendo — , mas a gente não quer saber o motivo disso aí não. Queremos saber da Anticriação. Temos uma amiga pra resgatar de lá.
A elfa senil riu.
— Por favor — era Sedrywen se recompondo — , nós precisamos de toda a informação que tiver. Qualquer coisa, por mais insignificante que possa parecer. Nós já estivemos naquele lugar asqueroso uma vez, mas estávamos despreparados. Dessa vez vai ser diferente — tentou soar confiante.
— Por que eu ajudaria uma elfa que se parece tanto com a deusa que odeia os elfos? — havia rancor em sua voz.
— Os erros de nossa mãe são apenas dela.
— Apenas dela? — cuspiu no chão — Eu dividi a dor dos nossos irmãos que chegavam aos montes quando Lenoriénn caiu, eu vivi os horrores rubros quando Igashera chegou a Nivenciuéen, meu lar. Eu enlouqueci com a tormenta, fui devorada pela tempestade, e quando Crânio Negro se foi, fui cuspida daquele lugar aberrante aqui nessa Arton maldita.
Sedrywen ficou sem palavras.
— Criança, eu vi Lenórienn cair, Nivenciuén corromper, Tamu-Ra ruir; tudo por culpa de Glórienn. Vê-la passar por tudo isso que ela deixou cair sobre nós, foi um júbilo para meus olhos cansados — uma sombra cobriu o rosto da elfa. — Estava cansada de ser sempre a vítima. Sem culpa, sem opções. Apenas sobrevivendo e me arrastando pelo inferno enquanto os deuses brincavam conosco, como peças em um medonho tabuleiro de xadrez. Num terrível jogo onde todos perdem.
Um longo silêncio caiu sobre os três. Um tempo depois, a elfa senil continuou.
— Vocês querem saber sobre a Anticriação? — estendeu à frente a mão que tinha uma crosta quitinosa — venham, toquem e vejam. Aquilo não pode ser explicado em palavras. Vejam o que me assombra, enfrentem o que os amedronta e terão a verdade.
Entreolharam-se. Parecia perigoso e insensato, podiam ler essas palavras de preocupação no olhar um do outro — algo que apenas amigos de longa data conseguem fazer. Assentiram com a cabeça ao mesmo tempo, avançaram e tocaram na mão deformada da elfa.
Como se fossem acertados por uma marreta, a dupla se sentiu sendo arremessada para trás. Viram seus corpos caírem de joelhos enquanto suas mentes eram arrancadas de seus corpos e mandadas ao passado. Depois de voltar cem anos, Mu se perdeu e não conseguiu mais juntar os fragmentos de lembranças. Era tempo demais para um humano.
Sedrywen velejou por um rio de lembranças e sombras de seu passado. Viu um guerreiro carregando um machado que lhe deu esperança, viu Cuthalion, viu Lenórienn. Viu vermelho. Agora, era apenas uma espectadora de numa cena que já havia vivido.
— Mas que porcaria é essa? — a voz de Mu soava abafada. O ar parecia consumi-la. Tudo era vermelho.
— Esta criatura é estranha demais, forte demais. Tem uma sagacidade sobrenatural — Zanshin completamente machucado e sangrando constatou. Tudo era vermelho.
— Minhas magias ficam falhando nessa merda de lugar — Sedrywen se assustou quando ouviu a voz de Prunna. Entristeceu-se de constatar que havia esquecido como soava doce e bela sua amiga dahlan. Tudo era vermelho.
— Temos que sair daqui, é perigoso demais — sua própria voz trouxe de volta sua atenção, tentava ver algo que desse novas informações sobre aquele lugar. Mas tudo era vermelho.
Enquanto tentava se concentrar e ver algo além da imensidão aberrante, disforme e de ângulos impossíveis — a cena se desenrolava como acontecera daquela vez. Zanshin atacou a criatura que era uma mistura esquisita de bocas, dentes, olhos e carne. Tinha a silhueta de uma pessoa, mas não podia ter certeza. Tudo ali parecia igual, indiferente. A espada do tamuraniano, envolvida em labaredas negras cortou o monstro, mas se sentiu algo, não pareceu. Protegido por cascas insetoides, com diversas asas e três braços, a coisa carregava uma espécie de espada bizarra enquanto seus outros dois membros terminavam em uma garra e uma espécie de espinho.
Sedrywen observou com horror pela segunda vez seu amado ser trespassado por aquele terrível braço pontiagudo. Viu Mu se enfurecer, Sagara pegar o aliado caído enquanto ela própria disparava flechas que atrasavam a criatura. Prunna tocava uma marcha empolgante. Começaram a correr, procuravam o portal por onde entraram. A besta os seguia, teleportando-se, atacando, enfraquecendo-os — até alcançarem o portal. Aquilo agradeceu, disse que finalmente achara a entrada de Arton, e que agora iria mata-los. A criatura arremessou uma espécie de lança em Prunna, mas Mu lançou-se na frente e foi perfurado no peito, caindo de joelhos com o ferimento vertendo sangue.
— Por que você parou? Vamos logo! — a voz sofrida de Mu vencia o ar aberrante.
A dahlan dá alguns passos se colocando entre a criatura e seus amigos.
— Essas coisas não podem passar o portal. Vão! Eu vou distraí-las — Prunna concluiu.
— Nada disso senhora! Ninguém fica para trás! — as palavras doíam para serem ditas, sangue vertia farto da ferida.
— Eu sabia que dirias isso, então me desculpa…
Com um movimento súbito, a mulher lançou seus amigos pelo portal. Sagara largou Zanshin para que fosse levado pela lufada de vento e lutou lado a lado com sua mestre. Diversos seres tentaram passar pela dupla, mas todos foram barrados. A fenda dimensional se fechou, a Sedrywen do passado fez um curativo o mais rápido que pode em Zanshin, a presença de Glórienn já não existia mais. Estancou o ferimento de Mu também, mas era terrível e não sabia se ele sobreviveria. Abraçou-se no chão e chorou. Prunna se fora.
Viajava de volta pelas memórias. Uma mistura das lembranças suas com as da senhora élfica. Era realmente indescritível, as criaturas, o local, as fendas dimensionais. Era tudo confuso, igual e diferente. Viu um tamuraniano e uma elfa — uma devota de Lena pelas vestes — que juntos lutavam naquele lugar horrível. Voltou mais e os viu com os diabretes que havia lido sobre. Eles tiraram algo de um rapaz corajoso, e isso abrira um portal idêntico ao que entraram naquela floresta em Sambúrdia. Retrocedeu ainda mais e viu as Montanhas Uivantes, viu a entrada do que parecia ser uma forja, uma dimensão de bolso, a voz estridente da elfa senil disse. Era isso. Sabia onde encontrar os seres infernais que os levariam até Prunna, até o local onde tudo era a mesma coisa e ao mesmo tempo parecia não ser nada. Onde tudo era lefeu.
Sedrywen queria mais, foi mais longe. Estava em Nivenciuén. Tudo era belo, a elfa decrépita que lhe mostrava o passado, ali, era linda e sorridente. Trabalhava como clériga de Glórienn, recepcionando as almas que chegavam de volta à terra natal de sua raça. Avançou pelas memórias com rapidez e tristeza, acompanhando as amarguras da mulher. A tormenta a enlouquecera, a fizera adoecer. Precisava de ajuda.
Abriu os olhos e estava de volta a cabana fedorenta. Mu esfregava os olhos semiconsciente e resmungando sobre não ter visto nada de útil. As elfas choravam, o homem não entendia. Sedrywen estende a mão até o rosto da senhora e, falando em élfico, disse para todos.
— Sua vida foi sofrida, ninguém merece isso. Você precisa se livrar de todo o estrago que a tormenta lhe fez, precisa sentir como é viver de verdade uma última vez.
Sedrywen sentiu a presença de Glórienn como não experimentava a anos e uma energia tênue e brilhante emanou de sua mão. A senhora élfica fechou os olhos e seu rosto se torceu em um sorriso. Sua expressão suavizou, fechou os olhos e deu uma risadinha — estava tranquila.
— Obrigado, filha de Glórienn.
— Descanse Marilinaviuncen, você merece paz.
A cabeça de Mari pendeu a frente, chegara ao fim de sua jornada.
— Sedrywen? Isso foi… — Mu começou, mas se interrompeu quando a amiga o olhou chorando copiosamente.
Abraçou-a e não disse mais nada. Até ele havia ficado sem palavras.