Capítulo 4: Fúria

ATENÇÃO! O conto a seguir pode conter informações de algum romance de tormenta.
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Azgher se despedia de Tamu-Ra. Seus raios alaranjados decoravam a paisagem de cerejeiras enquanto um serviçal acendia os lampiões do jardim. Enki e Zanshin bebericavam chá enquanto repousavam na varanda e trocavam palavras sobre estilos de luta.
— O kessen tanjou ryuu parece insensato tio, você deixa sua guarda completamente aberta!
— Se você derrota seu inimigo antes dele sacar a arma, você não precisa se preocupar com isso — falava com seriedade.
A conversa foi interrompida por uma comitiva de guardas que se aproximava. No meio dos homens havia uma figura alta e esguia. Sua pele era um misto de azul pálido e escamas esverdeadas. Os olhos amarelos encaravam a dupla sentada a distância — e quando se aproximou — abriu um sorriso de dentes afiados.
— Papai! — Enki disparou na direção de Benthos e o abraçou. A expressão do tamuraniano que se colocava de pé era de perplexidade.
— Dragão-rei dos mares, seja bem-vindo — Zanshin cumprimentou com uma mesura.
— Himekawa-sama — seu tom era de respeito — , filho de Lin-Wu, é um prazer estar em seu domínio. Um pirata e um passarinho me contaram que foi descoberta uma maneira de trazer minha amada de volta — ainda sorria.
O tamuraniano olha para Enki, o rapaz sorria de orelha a orelha.
— Mu e Sedrywen estão colhendo mais informações, mas sim, é possível que tenhamos descoberto seu paradeiro — fez uma pausa escolhendo as palavras certas. — Com todo respeito, estou surpreso que esteja aqui por isso.
Benthos afagou a cabeça de seu filho, que de olhos fechados aproveitava o carinho.
— Eu passei tempo demais longe — falava sem olhar o samurai — , protegendo meu filho e vendo-o crescer. Não houve um dia que não senti saudades de Prunna. Se existe a chance de salvar minha esposa, eu iria até o inferno atrás dela.
— Que bom! — a voz de Mu pegou todos de surpresa. — Pois é exatamente pra lá que nós vamos.
Um pouco de fumaça saía dele e de Sedrywen, indicando que tinham recém-chegado com seu teleporte. A elfa tinha o rosto marcado pela maquiagem borrada, podia-se notar que ela havia chorado ainda a pouco.
— Sedrywen?! — Zanshin preocupado se aproximou — Está tudo bem? O que houve?
— Muita coisa — disse baixinho abraçando seu amado. — Vamos para dentro, depois eu te conto.
Envolvendo-a pelos ombros, disse para que ficassem todos à vontade e partiu com ela em direção a casa.
— Você veio então — a voz de Mu tinha um tom de deboche — , quem diria?
— Eu disse à vocês que viria procurar Prunna. Não poderia deixá-los tentar sozinhos, vocês são meus amigos — Benthos se esforçava para fingir que não se irritava com a maneira que estava sendo tratado.
— Não diga isso — balançava a cabeça. — Você foi embora, cara! Pegou sua viola, botou na sacola e meteu o pé! Eu cuidei do Enki esse tempo todo, e você nem pra visitar? — estava visivelmente alterado.
O dragão-rei apenas encarava o homem a sua frente. Todos esses anos esteve observando do mar e protegendo-os de adversidades e perigos. Não aparecia fisicamente, pois olhar seu filho de perto o lembrava de Prunna, e isso doía muito. Mas tinha seus motivos e não era justo ser tratado dessa forma.
— Eu fiz o que tinha de fazer. Nunca deixei de olhar pelo Enki, ou por você. Não julgue aquilo que você não compreende mortal — a última palavra soou mais soberba do que gostaria.
— Ah agora cê é o pai presente então? Onde tava esse cara sentimental quando a Prunna sumiu num lugar cheio de abominações aberrantes? Não vi uma lágrima nessa sua cara escamosa! — Mu gesticulava e apontava o dedo bem próximo a face do dragão-rei.
A discussão fez o jovem se afastar do pai e observar de longe. A tensão era tangível. O rosto de Benthos moldava-se aos poucos, suas feições se tornavam mais bestiais, seus olhos brilhavam.
— Eu vivi por anos sem dar chance a vocês bípedes de se aproximarem de mim. Eu lutava quando precisava, protegia quando era necessário. Eu defendi meu domínio com garras e dentes, confrontei o dragão da tormenta sozinho e quase triunfei. Eu sou um dragão-rei, eu sou um deus! Meça suas palavras quando se dirige a mim.
Mu riu.
— Não me vem com essa, cara. Você pode ser o que quiser, vangloriar-se dos títulos que quiser, ter enfrentado qualquer coisa. Só não vem dizer que é meu amigo. Você deixou a gente na mão, e amigo nenhum faz isso!
As mãos de Benthos já eram garras, sua ira crescia junto com a do homem a sua frente. Agarrou-o pela camisa e puxou-o para perto. Seus olhos se arregalaram. Percebeu que havia algo errado em Mu, mas havia algo pior em si. A raiva havia o dominado novamente e isso não poderia mais acontecer. Afrouxou o aperto e permitiu que se soltasse.
— Você percebeu… não fale disso… — Mu começou de olhos arregalados, mas foi interrompido pelo dragão-rei.
— Desculpe-me — suas feições voltavam a ser apenas a de um elfo-do-mar — , eu jurei a Prunna que não deixaria minha fúria tomar decisões por mim. E eu quase falhei — fez uma pausa. — Eles não sabem disso?
Desviou o olhar na direção de seu filho, que olhava a cena com aflição.
— Ninguém sabe.
O dragão concordava com a cabeça em silêncio e abriu os braços na direção do jovem, que veio andando devagar e abraçou o pai.
— Não tema, está tudo bem, não é tio Mu — Benthos o olhava de soslaio enquanto afagava Enki, mas o homem não respondeu. — Todos ficamos arrasados com o sumiço de Prunna — falava para o homem que havia se calado de repente — , mas nenhum de nós ficou mais abalado do que você. Por isso deixei meu filho para que cuidasse dele, você precisava dele, e ele precisava crescer em meio ao povo comum. Era o desejo de sua mãe.
— Afinal, somos todos iguais, não é mesmo? — Mu disse hesitante.
— Alguns de nós somos especiais, como vocês dois. Não se preocupe, não tocarei mais nesse assunto.
— Vamos encontrar o Zanshin e a Sedrywen então, precisamos nos preparar.
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Concordaram em relaxar aquela noite. Não havia motivos para saírem correndo e Mu e Sedrywen precisavam de um tempo para se recuperarem. O encontro com a elfa senil ensandecida pela tormenta fora chocante para ambos. Apesar da noite tranquila, o sono foi incômodo para a maioria, menos para Mu — sequer havia dormido
Na manhã seguinte, juntaram suas armas e alguns mantimentos. Zanshin carregava suas espadas e o estandarte de Lin-Wu que recebera de Je-To, aprendiz de Do-Myu e seu amigo. Quando estavam todos prontos, com uma tragada no cachimbo e uma estalar de dedos, Mu os enviou para as Montanhas Uivantes.
Estavam em uma catedral feita inteiramente de gelo. Era frio e o choro de Belugha podia ser ouvido cortando o ar do lado de fora. Os ouvidos sensíveis de Enki captaram logo o ruído de metal ao longe.
— É por aqui — disse seguindo o som com os outros em seu encalço.
Logo o som das batidas ficou mais evidente e não demorou até avistarem uma porta entreaberta. Uma luz avermelhada e bruxuleante emanava do cômodo, o grupo hesitou, mas não Mu. Tomou a frente e entrou chutando a porta.
Os outros se apressaram a entrar no local que era uma espécie de forja. Havia uma fornalha, uma bigorna e várias armas, armaduras e outros artefatos espalhados pelo local. Os diabretes eram peculiares e caóticos. Pequenos, mas cabeçudos e com olhos esbugalhados. Voavam, guinchavam, riam, se batiam, arrancavam os próprios olhos — e novos cresciam no lugar.
— Eu vim barganhar — a voz de Mu silenciou o pandemônio.
Os demônios se entreolharam e voltaram a gargalhar e cuspir e dançar e se bater. Um deles esfaqueava outro enquanto um terceiro se aproximou do grupo dizendo entre risadas.
— Você vai nos dar a verdade que esconde deles? — apontava um dedo fino e torto na direção do grupo.
Mu rilhou os dentes, seus amigos não entenderam o que a criatura quis dizer, mas despertou a curiosidade deles.
— Que história é essa, Mu? — a voz de Sedrywen era preocupada.
— Não temos tempo para as besteiras que essas bestas proferem — era Benthos. — Eu vim barganhar um portal para a Anticriação.
Novamente os seres pararam. Dessa vez eles sorriam maliciosamente, esfregando as mãos ansiosos encarando o dragão-rei que se colocava a frente.
— Já sabemos como funcionam as coisas por aqui, vocês querem algo de mim, certo? E quanto mais poderoso, mais energia é gerada. Correto?
— Talvez sim — a voz estridente do diabrete incomodava os ouvidos — , talvez não. Quem sabe o que o aguarda, rei dos mares?
Todos estavam apreensivos. Sabiam o que tinha acontecido com o rapaz que deu tudo de si nas histórias narradas pelas cartas de Masato Kodai.
— O que vai ser? — uma segunda criatura disse antes de uma terceira continuar. — Sua divindade? Seria delicioso fazer um amuleto que transforma qualquer um em um deus! — um quarto diabrete cortou a garganta do que acabara de falar.
Benthos sorriu.
— Eu lhes darei o que tenho de mais precioso. Um sentimento que orientou todas as decisões em minha vida. Uma coisa que nos deixa cego quando precisamos enxergar, que aflora com pessoas que não queremos e que nos torna tolos quando precisamos usar a razão. Algo que prometi a uma pessoa que iria resguardar. Meu único pedido, é que guardem o que for forjado até nosso retorno — apontou uma garra cerúlea para o diabrete e estreitou o olhar. — Pois iremos voltar.
Os diabretes assentiram, babando de antecipação.
— Eu lhes entrego minha Fúria.
Um estardalhaço de gargalhadas se iniciou entre as criaturas que começaram a trabalhar freneticamente, assoprando os foles, fazendo as chamas crescerem enquanto outros abanavam o fogo. Um brilho azulado saiu do peito de Benthos e se acumulou sobre a bigorna, onde as criaturas martelavam com vontade o artefato que se formava — e também acertavam uns aos outras.
Quando o som das batidas terminou, restava apenas uma joia azul com ondas verdes dançando em seu interior. Um dos diabretes a pegou, e pôs em uma espécie de pedestal.
— Ela ficará aqui até seu retorno, dragão-rei dos mares, mas para onde vai? — os diabretes irromperam em risadas novamente, o portal não havia se aberto de imediato, mas foram silenciados quando o som de uma fenda no espaço-tempo se abriu.
— Vocês não conhecem nosso amigo aqui — era Mu, que sorria para Benthos.
O grupo se apressou em passar pela fenda, não sabiam por quanto tempo ela ficaria aberta. Enki fora o último a passar e perdeu alguns segundos olhando a gema que continha a ira de seu pai. Sua expressão endureceu, chifres rosados cresceram em sua cabeça, seu corpo se cobriu de escamas esverdeadas, seus olhos brilhavam. Era um dragão, afinal — e usaria sua própria fúria contra a tormenta.
Respirou fundo e entrou pelo portal.