Capítulo 5: Despertar

Atravessaram o portal e, de repente, o frio das uivantes desapareceu. Enki, o último a entrar pela fenda dimensional, não conseguia distinguir o que era real do que era falso. Ângulos que não deveriam existir, luzes que na verdade eram sombras — uma miríade de bizarrices incomensuráveis. Seu cérebro não conseguia processar toda aquela insanidade, perversão e sensações que o local causava. Sentiu-se ser chacoalhado pelos ombros e logo sua visão turva clareava e a imensidão rubra começava a tomar forma. Su cérebro tentava criar formatos para as coisas indescritíveis tentando proteger sua sanidade. A voz de seu tio, abafada e distante, o despertou naquele lugar horroroso. Tudo era vermelho.
— Cara! Enki! Cê tá legal? — acenava em frente ao rosto do rapaz e parou quando percebeu que havia recobrado a lucidez. — Que chifres são esses, cara? E esse monte de escamas? E essas garras?! Aconteceu alguma coisa?
— Eu estou bem tio Mu, só acho que… — afagava o próprio rosto sentindo as escamas, o ar parecia corroê-las. — …que é meu lado dracônico, sei lá. Vamos, não temos tempo a perder.
O grupo seguia andando muito próximos uns dos outros. Caminhar ali era estranho, surreal. Andavam quase de mãos dadas, pois bastava desviar o olhar dos companheiros por um momento e corriam risco de se perder pelo local — ou pelo tempo. Além de sufocante, no ar também se formavam gotículas de ácido gosmento. A paisagem era abominável. O chão parecia ser uma mistura de cascas insetoides amarronzadas e carne apodrecida. O cheiro era igualmente desagradável. Onde deveria haver vegetação, ramos tentaculares se agitavam e onde corriam rios, uma mistura grotesca de gordura e sangue fluía. Era terrível e enjoativo e assombroso. Tudo era vermelho.
Não tinham avistado nenhuma criatura até o momento. Benthos liderava o grupo ladeado por Sedrywen, os dois tinham bons olhos e encontrariam Prunna se a vissem. Mu e Zanshin cuidavam dos arredores e não tinha visto lefeu algum. Enki vinha por último, prestando atenção se não estavam sendo perseguidos enquanto avaliava as formas distantes. Montanhas, ou assim achava serem, possuíam diversos olhos, bocas e espinhos. Pareciam se mover e mordiscar o próprio solo. As nuvens, não que pudessem ser chamadas assim, eram esponjas gigantescas, repletas de dentes e tentáculos que agarravam o próprio ar enquanto o devorava. Tudo era vermelho.
Estavam caminhando há séculos. Ou anos. Ou meses. Ou dias. Ou horas. Era difícil dizer. O tempo parecia correr da sua própria maneira, como se algo fizesse com que ele fluísse como bem entendesse. Já não sabiam mais se avançavam andando para frente, ou de lado, ou para cima, ou para dentro. As direções pareciam iguais, o caminhar era desajeitado, penoso. Pisaram em uma poça de gosma ácida e seus pés ferveram, mas quando olharam de volta, já não havia mais nada. Vasculhavam a imensidão e, depois do que pareceram semanas, Sedrywen viu algo diferente. Nem tudo era vermelho.
Uma silhueta ao longe chamava atenção. Destoava do que a cercava e, diferente de tudo, parecia estar ali, e não ser ali. Se aproximaram do ponto que diferia do carmesim que machucava seus olhos. Atravessaram uma bocarra que deveria ser uma fenda no solo e, logo, estavam a metros da mancha rosa que se destacava. Ajoelhada, com as costas arqueadas e o rosto apoiado entre as mãos, o coração de todos deu um solavanco.
— Prunna? — a elfa chamou receosa. — É você mesmo?
A dahlan se virou de supetão. O rosto tomado por uma expressão de horror e olhos nublados por uma loucura alienígena.
— Vocês de novo!? — levantando-se, ergueu uma das mãos na direção do grupo recém-chegado. — Sumam daqui!
Um relâmpago irrompeu da ponta de seus dedos, mas antes que atingisse Sedrywen, o dragão-rei se atira à frente. Seus cabelos se ouriçam por um momento e um gosto metálico se misturou ao ar ácido, nauseando a todos. Benthos caiu sobre um joelho já erguendo uma das mãos, sinalizando que não se preocupassem. Teria ficado irado, mas não conseguia se irritar — sua fúria havia ficado para trás.
— Que isso Prunna? Tá louca? Somos nós, cara! Seus amigos, a gente veio te tirar daqui — Mu tentava trazer sanidade a amiga.
— Vá pro inferno lefeu maldito. Vocês já tentaram inúmeras vezes me perverter a cair na insanidade daqui. Quantos Mus eu precisarei matar? Ver o verdadeiro morrer naquele dia não foi o suficiente? — sua voz trazia mais tristeza do que raiva.
— Somos nós mesmos — Zanshin tentou — , não estamos tentando perverter nada. Só queremos te levar para casa.
Balançando a cabeça e negando as afirmações do tamuraniano ela levanta a mão novamente, faíscas se formam em seus dedos, mas nada acontece. A magia falha.
— Querida, escute a razão — o dragão-rei falava com pequenas pausas se recuperando do raio. — Viemos de longe, adentramos o inferno. Estamos aqui com você, por você.
— Não me faça rir — desdenhou. — Benthos? Ele não deixaria seu reino desprotegido, não por minha causa.
— Você é meu reino, Prunna! — insistiu sem sucesso.
— Vamos, Prunna. Você tem que acreditar em nós, somos seus amigos e queremos seu bem. — a voz da elfa, abafada pela realidade aberrante, carregava seu desespero. — Não faça isso conosco, não faça isso com você. Não faça isso comigo… Esperei tanto pra te reencontrar.
A mulher cerrou os punhos e rilhou os dentes.
— Pare. De. Soar. Tão. Parecida. Com. A. Sedrywen! — a dahlan cuspiu a frase entre dentes, ergueu a mão em direção a elfa e gritou enquanto estralava os dedos. — Morte Estelar!
Por alguns instantes, o coração de todos parou. Energias arcanas fluíram através do corpo da dahlan, elevando seus cabelos rosados que ondulavam com o poder místico que emanava. Um feixe de luz partiu aos céus e então; Nada. A magia havia surtido efeito, mas não haviam estrelas ali. Tudo era lefeu.
— Mamãe — Enki começou com um sorrindo preocupado, se aproximando sob o protesto de todos — , sou eu, mãe.
Lágrimas escorriam pela face de Prunna enquanto ela balançava a cabeça.
— Usar o meu filho é baixo demais, até mesmo pra vocês!
Com um movimento rápido, ela desfere um tapa no rosto do rapaz, marcando seu rosto e o atirando ao chão. Por um breve momento, o contato com a pele do garoto a lança de volta a lucidez. De repente, não estava envolta pela insanidade aberrante e enxergava a verdade. Seus amigos, seu marido, seu filho. Eles realmente estavam ali. Nada era vermelho.
Prunna foi trazida de volta a não-realidade por uma sensação que já havia esquecido. Chorando, Enki abraçava a cintura da dahlan que finalmente voltava a sentir um calor em seu peito — sentia carinho. Amor. Devolveu o abraço de seu filho enquanto rios se formavam em seu rosto. O aperto não trazia apenas paz, ele realmente curava as cicatrizes que a tormenta havia deixado em sua mente.
O trauma daquele lugar e a felicidade de reencontrar sua mãe, tinha despertado o poder dracônico que estava adormecido em Enki. O dragão marinho de cerejeira, era uma fonte de vida.
Não havia tempo — literalmente. Muito menos para conversarem. A dahlan agradeceu, deu um abraço rápido em cada um e partiram. Mesmo sem saber para onde iam; ou quando. Agora que procuravam o portal de volta à Arton, criaturas surgiam a todo momento, de todos os lugares. Surgiam do ar, como se sempre estivessem ali, ocultas pelo próprio ambiente. Para não permitir que os lefeus atrasassem o grupo, Benthos assume sua forma verdadeira e Prunna invoca Sagara para ajudá-lo. O dragão-rei dos mares e o elemental de água mantinham as aberrações afastadas, abrindo certa distância entre eles e o grupo.
Sem ter certeza se seguiam a direção correta, corriam — até que uma voz familiar chamou a atenção. Aquela coisa que haviam encontrado da última vez que estiveram na Anticriação os alcançou. A cabeçorra da criatura era uma espécie de massa composta de carne, pelos e dentes. Não possuía olhos. Andava sobre duas pernas deformadas e seus três braços traziam cada um uma abominação diferente. Um parecia um grande ferrão, outra uma garra e o terceiro uma espécie de lâmina.
Como isso falava, não tinham certeza. Talvez apenas ressoasse em suas mentes tentando enlouquecê-los, mas a voz da coisa soava como a de um amigo de longa data. Trazia um tom casual e aberrante. Grotesco e indesejável. Tudo ali era igual, era a mesma coisa, mas essa criatura parecia singular, diferente. Nada fazia sentido. O monstro agradeceu por terem retornado, por terem aberto o portal — e prometeu que, dessa vez, não o impediriam de voltar a Arton.
Mas dessa vez, o grupo estava bem preparado. Mal a criatura havia citado a terra natal deles, Sedrywen já havia disparado seis flechas de seu arco. Zanshin e Kuraiga já eram um só, o tamuraniano brandia duas espadas e parecia envolto em chamas negras enquanto seus olhos brilhavam em vermelho. Prunna estava no ar, tocava uma marcha de batalha enquanto disparava um relâmpago com a ponta dos dedos. Mu desaparecia e reaparecia ao redor do inimigo e, a cada vez que piscava, cuspia uma bolha de ar cortante.
Golpeavam o oponente sem dar espaço para reações, a coisa apenas se protegia. Os ataques das espadas de Zanshin poderiam cortar até mesmo uma pedra, e a criatura não conseguia aparar todos eles. Enki avançava junto com o tio, arrancando pedaços conforme usava suas garras e dentes. De repente, como se nunca estivesse ali, o lefeu desaparece. Após um breve momento, ressurge atingindo o garoto com seu braço-lâmina e o chuta pra longe.
Imediatamente, Sedrywen e Zanshin pulam lado-a-lado — se colocando entre o rapaz caído ao longe e o monstro. Mu tenta se teleportar para Enki, mas a magia falha e ele começa a correr em sua direção. Prunna tenta criar uma esfera de proteção, mas seu poder arcano flui tosco e nada acontece. Acaba por recuar na direção de seu filho. Ao fundo, o dragão-rei lutava focado. Era movido pela paixão que nutria de seus amigos. Matava diversos lefeus menores — e outros do tamanho de montanhas.
— Você consegue segurá-lo por uns instantes, eu tenho um plano — o tamuraniano disse para sua amada sério, com a voz mesclada a de Kuraiga.
A elfa assentiu e saltou a frente, disparava flechas que acertavam como troncos numa correnteza. Cada impacto fazia a coisa dar passos para trás. Bom — ouviu a criatura dizer — gosto quando tem emoção. Com movimentos que pareciam desafiar a lógica, ou a anatomia, Sedrywen sentiu um impacto no ombro. Caiu sobre um joelho e instintivamente pôs o arco entre seu corpo e o oponente. Antes que pudesse se levantar, um ataque poderoso abriu um corte em seu peito e destruiu seu arco — que logo fora consumido pela realidade aberrante.
A criatura ria da mulher desarmada a sua frente, mas um som crescente de relâmpagos se misturando ao timbre ensurdecedor da não-realidade silenciou a risada. Como um raio, Zanshin avançou e se pôs entre a abominação e sua amada.
— Ougi ryumi no ken! — o golpe que aprendeu de seu pai, Lin-Wu.
O corte em formato de xis fora perfeito. Não só havia acertado o lefeu a sua frente, como também havia destruído uma das montanhas da paisagem — e uma nuvem esponjosa. Entretanto, o monstro continuava de pé. A coisa se debatia tentando se proteger enquanto o homem continuava a atacar gritando seus golpes do estilo kessen tanjou ryuu. Numa janela de oportunidade, a criatura revidou. Perfurou o abdome de Zanshin com seu braço-ferrão e o atirou para longe.
As coisas não iam bem. Mu e Prunna socorriam Enki, Benthos e Sagara afastavam os lefeu menores, Zanshin estava caído e sangrando com Kuraiga o auxiliando. Restava apenas Sedrywen desarmada e a coisa. Pedaços de carne caíam da cabeçorra do monstro no local onde o tamuraniano havia golpeado. As carapaças que envolviam as pernas e braços, também cediam pelos golpes recebidos. Aos poucos, traços humanoides iam se revelando.
Feições conhecidas.
O coração da elfa foi parar em suas botas. Balançava a cabeça devagar, seus olhos se arregalaram, suas pernas tremiam, sua voz fraquejou contra o ar aberrante.
— Não. Qualquer um, menos você…