Cartas Avulsas
Queridos amigos, a saudade é um sentimento complexo e, mesmo depois de tantos anos vividos, eu ainda não sou capaz de suportá-lo como eu gostaria. Sinto falta de nossas aventuras, da franqueza de Lauss, da simplicidade da Sho e das maldades do Sinistro.
Sobre mim, eu estou ótima. Quer dizer, estou atolada em trabalho e tenho ajudado Vladislav com novas formas de entender a morte. Eu ainda escuto ecos da vez em que eu fui marcada. Me dói dizer isso, mas acho que foi por uma boa causa. Finalmente temos amparo para estudar com mais detalhes os mistérios que envolvem o que acontece entre a nossa partida de Arton e nossa chegada nos planos dos deuses. Apesar de amedrontada — e de não saber o que essa marca simboliza — eu sei que posso contar com vocês se for necessário.
Sobre o Osbion, fiquem tranquilos. Não, ele não tentou me dar outra facada, Sinistro, e você não precisa cortar o nariz dele. Eu ficara muito chateada de você estragar o rosto dele, aliás. E ele provavelmente ficaria ainda mais chateado. Ele jamais vai confessar, mas ele se tornou bem apegado a você e suas maldades no tempo que passaram juntos. Sempre que chega uma carta de vocês ele as lê por cima do meu ombro e disfarça que não se importa. Eu acho fofo.
A respeito de Izolda, Lauss, nós ainda não temos certeza sobre o que aconteceu com ela. Aquele necromante que a fez de marionete por um tempo estava pesquisando algo muito fora do comum. Achamos relatos sobre um morto-vivo diferente, que encaixa em partes sobre o que ela se tornara. Alguém capaz de sentir todos os sentimentos com intensidade, mas sem respirar, se alimentar ou se expressar apropriadamente. No entanto, ela não possui o prazer sádico em causar dor e sofrimento aos outros, característico desse caso isolado do que fora chamado de meio-morto-vivo.
Escrevam com mais frequência! Eu fiquei encantada de saber que vocês estão andando com uma pessoa ligada a natureza e que tem uma capivara gigante! Só de imaginar isso já me abre um sorriso.
Um beijo carinhoso e cheio de saudades, Daeniel.
Celene! Que felicidade! Saber que o templo de Aharadak tem ajudado na reabilitação de criminosos e na alimentação dos necessitados é muito bom. Os Benthosi terem aderido aos ritos vermelhos certamente colocou o templo sob bons olhos com a população da ilha.
No entanto, acredito que erguer um local de adoração no continente terá de esperar. Alqueran é pequena se comparada a imensidão da Academia Arcana, Valkaria e outras metrópoles. Especialmente Valkaria. A rainnha-impreatriz sofreu uma grande perda por conta da Tormenta e, você sabe, nem todo mundo está pronto para o abraço rubro. E quando não estão prontas, as coisas costumam ser sanguinolentas.
A forma como você trata sua fé é diferente, e eu acho isso muito doce. No entanto, precisaríamos de um exército de Celenes para que Arton visse o bem que você é capaz de fazer. Talvez isso fizesse com que as pessoas mudassem de ideia, talvez não. Quem sabe?
Sou obrigada a perguntar: meu necrotério está inteiro? Perder ele uma vez foi traumático o suficiente, então desculpe ser insistente com notícias sobre ele.
Fico muito feliz toda vez que uma de suas cartas perfumadas chega, mesmo você dizendo que não põe essência alguma nelas! O cheiro é tão doce quanto você e espero que eu possa dar um pulinho em Alqueran logo.
Um grande beijio, Daeniel.
Amigos, digo, espero que sejamos amigo ainda, pois vocês custam a escrever!
Se fossemos um só, isso não seria problema, mas nós não somos. Então, por favor, escrevam mais! Eu estou maravilhada de saber que vocês encontraram mais companheiros, em especial uma amiga de fé. Tive medo de que, sem eu estar por perto, não tivesse ninguém para cuidar de vocês, pois vocês certamente precisam de cuidado.
Isso pode ter soado meio mal, então explico: eu tenho medo de perder vocês! Vi vocês sangrarem, desmaiarem e até morrerem! Toda noite oro para Aharadak, para que ele, em sua onipresença, extenda seus tentáculos abençoados até vocês e os envolva na segurança que ele me envolve.
Lauss, os Presas de Coral estão lidando bem com a segurança em Alqueran. Você havia perguntado sobre a criminalidade e, bem, eles e eu estamos lidando com o problema. Criamos uma força de reabilitação aqui e têm dado muito certo. Muitos ficam apavorados por serem “trancafiados em um antro de sadismo”, como dizem. É só um templo de Aharadak, sabe? Nós rezamos missas matinais e depois ajudamos quem precisa para que possamos viver em paridade, igualdade e união. Acho que de cada quatro presos, três saem fiéis ao devorador, e isso me enche de felicidade! Não enche vocês também?
Sho, eu recebi a garrafa junto da outra carta, mas como ela veio pela metade, eu concluí que você tomou parte dela no caminho entre a estalagem e o serviço de correio. Confesso que as risadas que dei foram muito melhores do que receber uma garrafa cheia. Que saudade imensa, amiga. Olhar a imensidão do mar e imaginar a distância que nos separa é de apertar o peito. Mas, no fim, tudo será lefeu e estaremos sempre juntos. Em todos os lugares.
Sinistro, você tinha razão. O amor é a maior das maldades, pois dói lembrar de vocês e não poder dividir piadas, histórias e risadas. Venham me visitar se puderem. E tragam Moira para eu conhecê-la. Adoraria saber mais sobre a pessoa responsável por mantê-los vivos.
Um por todos, e tudo por um. Celene.
O hynne, sentado na mesa da taverna, balançou o papel na direção da guerreira que segurava seu copo de bebida próximo ao rosto enquanto apoiava os cotovelos na janela.
— Aí, Sho, vem dá uma olhada na carta da Celene aqui pô.
— Não precisa Lauss.
Uma borboleta vermelha, com veios laranja e preto adornado suas asas, pousou na mão da mulher e ela sorriu.
— Eu tenho todas as notícias que eu preciso da Celene bem aqui.