Chama da Vida
O hynne estava sentado, balançando as pernas e imerso em seus próprios pensamentos — ou apenas distraído. Seus cabelos verdes, com as raízes vermelhas brotando, chamavam atenção de quem olhasse, mas não mais do que as cascas rubras que o denunciavam como um lefou. Havia acabado o treino ainda a pouco e descansava antes do próximo evento.
Um qareen, cambaleando, chamou atenção dele. O recém-chegado atirou-se sobre o banco, completamente suado e ofegante. Ele tinha a pele escura e os cabelos púrpuras completamente bagunçados.
— Você está bem? — o pequeno perguntou.
— Eu tô bem, Findo Campinadourada — falou arrastando o olhar para cima do hynne, que notara a cegueira no olho esquerdo do rapaz.
— Eita, você sabe quem eu sou?
— Um passarinho me contou — ainda recuperando o fôlego, lançou um sorriso largo ao menor, exibindo seu colar que ostentava uma fênix antes de se aprumar e lhe oferecer a mão. — Hinjo Joji. Mas, por favor, me chame só de Joji.
Findo respondeu ao aperto de mão e começou a se apresentar, então riu percebendo que não havia necessidade.
— Você também veio pra se tornar um cavaleiro da ordem da Chama da Vida?
— Eu?! Não, Thyatis me livre. Já basta essas aulas cansativas de balançar armas feito um brutamontes. Sem ofensas, tá?
Findo riu do gracejo. O rapaz não aparentava ser um exímio combatente e parecia cansado demais para o treino leve que acabara ainda pouco.
— Ah, eu vim pra cá pra me tornar um cavaleiro, né? Aprender sobre o clero de Thyatis e o de Lena também. Minha irmã é uma acólita de Lena, né? Aí eu vim pra cá pra dar orgulho pra minha família e pra poder ajudar meus amigos. Você é um clérigo também? É que eu vi você reclamando que não gosta dos treinos de combate, né? Aí isso me lembrou da minha irmã, que também não gostava muito disso, sabe?
Joji riu da enxurrada de informação que o pequenino despejava. Era bom ter com quem conversar sobre qualquer coisa que não fosse didática, postura, juramentos ou virtudes.
— Eu já fui um clérigo, mas descobri que isso não era pra mim. Não sou capaz de ficar só na pregação da palavra de Thyatis. Eu prefiro agir.
— Ah, então você não tá estudando pra ser da ordem da Chama da Vida?
O rapaz coçou o queixo. Findo notou que ele tinha uma tatuagem com um padrão de relâmpagos púrpuras por todo o braço esquerdo. O mais curioso é que elas eram saltadas da pele, criando um relevo que parecia rígido como metal.
— Acho que eu não tenho o desejo de matar, nada e nem ninguém. Esse é o princípio da ordem, né? Mas não, eu tô aqui por obrigação.
— Não entendi — Findo confessou baixinho.
— Venha, Findo — Joji disse se colocando de pé. — Vamos caminhar e conversar antes que minha professora me encontre pra falar mais sobre virtudes que eu nunca terei.
O hynne riu, mas pegou sua alabarda que repousava ao seu lado e seguiu o homem. Caminharam até a área externa onde o sol aquecia o pátio e alguns acólitos treinavam. Joji apontou para as pessoas se batendo com armas de madeira.
— Eu ainda estou aprendendo sobre o que é ser um escolhido, mas tenho certeza de que não vim aqui pra aprender aquilo ali.
— Escolhido?
— Abençoado, algo assim. Não gosto de dizer paladino — a palavra saiu com certo escárnio. — Normalmente te olham com um moralismo exacerbado e eu odeio isso.
— Ah, então você não gosta de chamar atenção?
Joji parou de andar e olhou Findo com uma sobrancelha erguida. Olhou pra si mesmo — vestindo uma capa felpuda rosa e com um croped de couro aberto, que deixava seu torso a mostra — então voltou a encarar o hynne. Proferiu algumas palavras estranhas e uma tatuagem brilhou rosa em suas costas. Seu cabelo, bagunçado e sujo, tornou-se limpo e bem penteado. O pequenino observou maravilhado.
— Eu gosto de chamar atenção, Findo. Eu não gosto é que me achem chato só porque eu fui escolhido por Thyatis ou algo assim.
— E dá muito trabalho? Você deve ser importante! Digo, o senhor deve ser importante. É que você, digo, o senhor, foi escolhido por Thyatis, né?
— Por tudo que você considera mais sagrado, não me chama de senhor. Eu sou jovem demais pra isso. — O qareen o olhou sério, mas antes de continuar, voltou a abrir seu largo sorriso. — Ainda não sei se dá trabalho, mas definitivamente eu não sou tão importante assim. Você, que está aqui porque quer, é muito mais importante do que imagina.
A dupla voltou a caminhar, parando em frente a uma capela com o símbolo da fênix sobre a porta.
— Você acha que eu posso ser um escolhido também?
— Bem, depende. Você tem medo de errar, Findo?
O hynne balançou com a cabeça afirmativamente de imediato e efusivamente.
— Toda vez que eu erro, meus amigos podem se machucar. Então eu devo ser cuidadoso e errar o mínimo possível.
Joji apertou os lábios e franziu a testa, dando de ombros.
— Então não, você nunca vai ser um escolhido.
Observou os ombros do pequenino encolherem, após sua afirmação. O qareen abriu seu sorriso novamente.
— Vamos fazer uma aposta, uma brincadeira. O que me diz? Assim podemos ver se você realmente não tem medo de errar.
— Ah, brincadeiras são legais. O que seria?
O abençoado gesticulou rápida e graciosamente, como se embalasse uma melodia para si. Proferiu algumas poucas palavras que o hynne não entendeu e, em seguida, oito Jojis estavam ao redor de Findo.
— Acredito que você esteja familiarizado com essa magia, já que vi que você carrega algumas poções dela em sua bolsa.
— Quando você viu isso na minha bolsa?
— O jogo é o seguinte — continuou ignorando a pergunta que não queria responder, pois teria que dizer a verdade — , você pega essa sua alabarda e bate em mim. Digo, em nós, até você me acertar. Se me acertar antes de acabarem as copias, você ganha.
— Mas isso vai te machucar!
— Findo… — as copias disseram esticando o nome do pequenino. — Vamos lá! Se você vencer eu fico te devendo um favor, um desejo. Se eu vencer, eu posso zoar da sua cara, já está de bom tamanho.
O hynne vacilou, mas concordou com a cabeça e brandiu sua alabarda. Encarou as copias com a certeza de que apenas um daqueles qareens sorridentes e dançando sem sair do lugar era o verdadeiro. Após alguns segundos, Findo bradou e atacou. A copia que ele acertou desapareceu. As outras bateram palmas e falaram em uníssono:
— Muito bem Findo! Nós ficamos felizes de saber que você está tentando. E falhando.
O pequenino analisou as copias mais uma vez. Com uma menos, ficaria mais fácil. Após algum tempo, atacou novamente.
— E falhando — os Jojis falaram em uníssono quando outra cópia desapareceu.
Após alguns golpes, o lefou já suava vermelho, agora encarando os dois últimos Jojis a sua frente.
— Vamos Findo! Cinquenta, cinquenta! É pegar ou largar!
Sem pensar muito, agora animado pelo calor da batalha — ou jogo — , o pequenino atingiu o qareen, que desapareceu no ar como os outros antes dele. Ele suspirou e baixou os ombros. Derrotado.
— O que está fazendo? Eu ainda estou aqui! — falava batendo palmas rápidas e curtas, como se estivesse com pressa.
— Mas… acabou. Eu perdi, se só tem você, o efeito da magia acabou.
— Eu disse que você iria bater até me acertar.
A alabarda vacilava na mão de Findo. Não havia como errar agora. Havia apenas um Joji e ele sabia que seria o verdadeiro. No entanto, o qareen seguia encorajando-o. Em dado momento, o hynne balançou a cabeça, gritou e girou a alabarda. E, mais uma vez, a imagem de seu oponente desapareceu no ar.
Findo ouviu palmas empolgadas à suas costas e, quando se virou, viu Joji sentado no banco em frente à capela de Thyatis.
— Você perdeu senhor Findo Campinadourada!
— Mas, pera, como você…
— Soava aí? — a voz do qareen soou ao lado do hynne enquanto ele podia ver a tatuagem dele brilhando rosada. — Magia, Findo. Ora essa — riu.
Arrastando os pés, o pequenino se aproximou e se sentou no banco. Ainda suava um pouco. Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, ouvindo apenas os sons do treino ao longe. Findo parecia triste, mas Joji nunca tirava o sorriso do rosto.
— Você hesitou em cada ataque — o qareen quebrou o silêncio.
— É que eu podia acabar te machucando.
O abençoado soltou um riso despreocupado.
— Isso não seria um problema. Você não vê, Findo? É isso que nos diferencia. Hesitar nos faz errar, e só quem tem medo de errar, hesita.
— Eu poderia ter te matado! — o pequenino não parecia entender como ele parecia tão tranquilo com aquilo.
— E você teria aprendido uma importante lição, não acha? Eu disse pra me bater, não pra me matar. — o qareen pensou uns instantes antes de continuar. — Foi um exemplo bobo, eu sei, mas somos escolhidos e recebemos infinitas chances pra isso. Pra que as pessoas possam errar e eu arcar com as consequências de seus erros. Minhas vidas não servem a mim, elas servem a todas as pessoas que precisarem.
Um silêncio se estendeu sobre os dois novamente. Findo parecia pensativo enquanto Joji apenas sustentava seu sorriso enquanto encarava o céu e aproveitava o ar fresco que soprava. Dessa vez, quem quebrou o silêncio foi o hynne.
— Você acha que eu vou deixar de hesitar um dia?
— Eu não sei — disse sem olhar o amigo ao seu lado. — Mas eu sei quem sabe.
O olho sem íris do qareen ardeu em chamas enquanto seu medalhão emanava uma luz dourada. A mente de Joji foi inundada por visões do pequenino e seu grupo. Viu eles se divertindo na taverna do Arco e do Martelo. Viu eles ajudando moradores de rua na forja do Adamante. Viu eles conversando com Ezequias sobre minas anãs abandonadas. E, então, ele viu fogo.
Viu morte.
Viu um velório simbólico para alguém que não deixara sequer um corpo físico para trás. Viu Findo brandindo uma grande espada, uma réplica da que a falecida usava. Ouviu a voz do pequenino dizer que aquela arma se chamaria “Falha Final”, pois ninguém mais teria o destino da amiga. Ele não falharia mais.
Não hesitaria.
O sorriso de Joji enfraqueceu quando as chamas em seu olho se dispersaram e a visão terminou. Sabia que não deveria mentir, que deveria renegá-la e estar compromissado com a verdade. Então, olhou Findo com tristeza enquanto sustentava um sorriso frágil.
— Sim, Findo. Você vai aprender a deixar de hesitar — concluiu omitindo o restante da visão.