Déjà-vu

Diogo Stone
6 min readJan 7, 2021

--

Era uma noite tranquila em Khubar. O manto de Tenebra refrescava o ambiente e as estrelas de seu véu enfeitavam o céu negro. Na janela da pequena casa, Benthos admirava aquela beleza com preocupação. Sentado à mesa, o pequeno Enki comia uma refeição simples. O deus-rei dos dragões marinhos tinha aprendido a apreciar mais a simplicidade da vida, mas sempre que Prunna precisava sair para resolver algo por Arton, seu coração pesava.

— A mamãe vai demorar muito?

Benthos suspirou. Não sabia como explicar para seu filho, com pouco mais de quatro verões, sobre as aventuras da mãe. O garoto tinha uma inteligência muito superior a qualquer mortal para sua idade. Mesmo assim, era um assunto delicado.

— Não há como saber, meu filho. Às vezes, ela tem problemas para resolver que envolvem a segurança do mundo, noutras, do universo. Espero que não seja nada envolvendo seus tios novamente.

— Eu gosto do tio Hydora! — o menino sorria, o dragão revirou os olhos.

— Eu já disse. O seu tio azul é maluco e tem mais autoconfiança do que bom senso. Uma vez, ele matou Zanshin e ele continuaria morto se não fosse Pru… Prunna? É Prunna.

Enki franziu o cenho por alguns instantes e ficou encarando seu pai. Os dois sentiam algo estranho dentro de si. Por um lapso de segundo, pareceu que a imagem da dahlan se apagou de suas memórias. Como se jamais tivessem a conhecido.

— Você também sentiu, não é?

O garoto assentiu em resposta. O que estaria acontecendo?

**********************************************

O grupo caiu, mais uma vez, em uma cratera invisível.

— De quem foi a ideia de atravessar aquela droga de portal? — Prunna soava irritada, mas sua voz parecia abafada por almofadas invisíveis.

— Essa vermelhidão… ela não é como a que choveu em Tamu-Ra, ou como a que enfrentamos antes de confrontar Lamashtu — Zanshin berrava, mas seus amigos ouviam apenas um sussurro.

— É galera, parece que a gente se deu mal — até Mu parecia estar perdendo seu otimismo.

— Pessoal, para onde fica o caminho do qual viemos? — todos olharam para Sedrywen, depois para os arredores.

Vermelho.

Aparições estranhas haviam surgido em Samburdia e, quando foram identificados como lefeu, o grupo foi chamado pela coroa. Seria necessário grandes heróis para lidar com aquelas abominações. Vasculhando a mata, no entanto, não encontraram um criadouro de aberrações, mas sim, um portal.

O grupo já havia perdido a noção de tempo e, aos poucos, perdiam a de espaço também. Aquele lugar queimava, congelava e ardia. Tudo ao mesmo tempo. Os caminhos eram feitos de rocha seca, cascas, carne podre e outras coisas com cheiros indescritíveis

Caminharam por mais uma década — ou sete minutos — não sabiam dizer. Decidiram dar as mãos, pois em um momento estavam a passos um do outro e, de repente, viam apenas a sombra uns dos outros a uma distância incalculável.

Logo, criaturas avermelhadas assemelhadas a baratas começaram a surgir aos montes. O grupo lutava com fervor e força. Contudo, não era incomum que as magias de Mu e Prunna falhassem ao serem lançadas. Para piorar a situação, Zanshin não sentia a presença de Thyatis e a dahlan não conseguia canalizar o poder de Kallyadranoch. Não sabiam onde estavam, quando estavam, nem se estavam.

Uma criatura bizarra os seguia durante todo o percurso. Ela não atacava, apenas ordenava. Era difícil distinguir aquela forma mutável que feria a vista. Às vezes, podiam distinguir uma silhueta humanoide com três braços. Um deles parecia uma grande estaca de matéria-vermelha, outro uma garra e o terceiro carregava uma espada grotesca. Ficava cada vez mais difícil repelir os lefeus que vinham em hordas para cima dos aventureiros e, sem as bençãos de seus deuses, logo estariam em sérios apuros.

Para piorar a situação, aquela coisa começava a investir contra eles também.

— Mas que porcaria é essa? — a voz de Mu soava abafada. O ar parecia consumi-la.

— Esta criatura é estranha demais, forte demais. Tem uma sagacidade sobrenatural — Zanshin completamente machucado e sangrando, constatou.

— Minhas magias ficam falhando nessa merda de lugar — Prunna estava indignada, suja e cansada. Até havia invocado Sagara para ajudá-los.

— Temos que sair daqui, é perigoso demais — concluiu Sedrywen.

Zanshin avançou sobre a criatura estranha que parecia uma massa de bocas, dentes, olhos e de carne pulsante. Não era fácil mirar os golpes de sua katana, tudo parecia ser diferente, mas idêntico. Um golpe que parecia preciso, errava, pois, a distância não existia como deveria. Um ataque do tamuraniano envolto em trevas acertou em cheio a criatura. Podia jurar que a viu sorrir, se é que isso fosse possível. O golpe mal arranhara suas asas usadas como escudo e, com força e brutalidade, trepassou o peito do homem com seu braço-espinho.

Mu gritou e saltou sobre o amigo, golpeando o monstro com sua espada. Sedrywen atirou uma saraivada de flechas, forçado a coisa a recuar. Sagara pegou o homem caído e Prunna entoou uma marcha que, mesmo distorcida pelo ar, fazia com que Sedrywen conseguisse abater os lefeu menores enquanto corriam e procuravam o portal.

A criatura ria, guinchava, teleportava e os atacava. O grupo não desistiu e, quando sentiam que seus corpos terminariam de definhar, encontraram um brilho verde de esperança em meio a imensidão rubra. Tinham chego ao portal que levava de volta a Arton.

— Finalmente — a voz aberrante da criatura quase enlouqueceu a todos quando falou. Suas bocas não me mexiam e osom parecia emanar do solo, das nuvens e de todas as criaturas. A voz parecia uma coisa única que não vinha de nada, mas era tudo. — Cheguei até um dos portais que levam a Arton. Poderei pintar seu mundo de vermelho e me deleitar de sua desgraça, mas primeiro, irei matá-los para que não possam apreciar os ácidos ventos da mudança.

A criatura arrancou de seu dorso uma espécie de lança óssea grotesca e a arremessou na direção de Prunna. Ela tentou desviar, mas suas pernas já não aguentavam o próprio peso. Sob um grito de protesto, Mu lançou-se na frente e foi perfurado no peito, caindo de joelhos com o ferimento vertendo sangue.

— Por que você parou? — a voz do homem saiu sofrida, mas vencendo o ar aberrante. — Vamos logo!

A dahlan deu alguns passos se colocando entre a criatura e seu amigo ferido.

— Essas coisas não podem passar o portal. Vão! Eu vou distraí-las — Prunna estava resoluta.

— Nada disso senhora! Ninguém fica para trás! — as palavras doíam para serem ditas, sangue vertia farto da ferida em seu peito.

— Eu sabia que dirias isso, então me desculpa…

Com um movimento súbito, a mulher lançou seus amigos pelo portal. Sagara largou Zanshin para que fosse levado pela lufada de vento e voltou para o lado de sua mestre. Diversos lefeu, incluindo a criatura que falara, tentaram passar pela dupla. Com muito esforço, todos foram barrados e numa questão de poucos segundos, a fenda dimensional se fechou.

Sedrywen fez um curativo o mais rápido que pode em Zanshin. A presença de Glórienn já não existia mais desde sua queda e, sem Prunna, não haveria a benção de nenhum deus para ajudá-los. Estancou o ferimento de Mu logo em seguida, mas o buraco em seu peito era terrível e não sabia se ele sobreviveria.

Abraçou-se no chão e chorou.

Prunna se fora.

***************************************

Enki acordou num susto terrível, sentando-se na cama. Era aquele pesadelo mais uma vez. Suspirou, passou as mãos por sua cabeça desnuda e coçou o farto bigode. Desde que havia ido até o Heladarion e recebido as visões de quando sua mãe foi dragada pela anticriação, suas noites vinham sendo duras.

— Enkizinho, querido, algum problema? — Linriénn chamou, sentando-se também.

— Não, digo, sim. É aquele maldito pesadelo — deu de ombros. — Desculpe lhe acordar. Amanhã vamos reencontrar Mu e Rufo, vamos descansar.

Linriénn o beijou, sorriu e voltou a se deitar. O meio-dragão imitou o gesto, torcendo para que o pesadelo não retornasse.

--

--

Diogo Stone
Diogo Stone

Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

No responses yet