Destino Lógico
O cheiro de ozônio preenchia o ar. Com um brilho e um som ríspido, uma fenda se abriu. A passos calmos, um kliren de pele clara, alto e esguio, saía daquela rachadura na realidade, ajeitando seu sobretudo. Encarou os arredores, franziu o cenho, ajeitou sua cartola e cofiou a barba fina e perfeitamente aparada enquanto pensava. Em seu encalço vinha uma pequena galinha com uma pata metálica, a qual atravessava o portal pouco antes dele se fechar.
— Senhor Lamp — era a galinha — , você está com aquela cara de novo.
— Que cara, Robsu? — os olhos dele encontraram os do animal. — E que papo é esse de “Senhor Lamp”, me chama de Melmer.
— Eu daria de ombros, se eu tivesse ombros. Agora, sobre a sua expressão, é a cara de “caramba, como é possível que meus cálculos estavam errados e não fui parar no topo da escadaria?”.
— Você quem está dizendo. Eu tenho certeza que as coordenadas geo-planares estavam corretas, inclusive — ergueu o braço e encarou o aparato preso ao antebraço — , checando aqui no emc-pad, as coordenadas que informei na matriz do cortex de sobreposição espacial não coincidem com os valores de planolocalização exibidos atualmente. Porém, o rastro de energia deixado pelo portal indica que a localização onde ele fendou o continuum estava exatamente no local que pretendíamos chegar. Algo causou uma oscilação na dobra espacial que acabou nos trazendo até aqui.
— Ou alguém.
Melmer levantou os olhos do aparato em seu braço e olhou Robsu com surpresa. Aquela hipótese não havia lhe ocorrido. Afinal, não deveriam haver muitas pessoas inteligentes como ele para, sequer, entender o que tudo aquilo significava.
Ergueu a cabeça e encarou a escadaria a sua frente, fazendo um muxoxo. Estava ali para agradecer a fênix e buscar sua bênção para sua nova invenção, mas o deus da profecia o havia levado até outro local. Logicamente pensando, se alguém tinha alterado o destino que ele havia calculado, só poderia ter sido o próprio deus dos destinos.
O inventor tinha decidido que era hora de se dedicar a sua obra-prima. Havia passado por problemasdemais, visto coisas demais — isso quando as chamas que ardiam no interior de sua íris o permitiam enxergar com clareza. Concluíra que era hora de pôr em prática seu mais audacioso plano. Klirian, a cidade que construíra para abrigar qualquer pessoa que prezasse pela inventividade, era seu maior orgulho; mas a vida de aventureiro o ensinou uma lição dura.
As pessoas morrem.
Seu corpo estremeceu ao lembrar do dia em que seus amigos confiaram, não só suas vidas, mas suas existências, nas mãos do inventor. Naquele dia, a Tormenta consumia tudo ao redor deles. Os cálculos eram imprecisos, as variáveis eram mutáveis e as distâncias oscilavam mais do que as batidas de seu coração ao lembrar daquele acontecimento. Quando definiu a rota para fora da realidade aberrante, não fora apenas lógico, também fora instintivo. Como num presságio.
Respirou fundo e iniciou a caminhada pela longa escadaria que se perdia entre as nuvens. Não demorou até que os passos assimétricos de Robsu o alcançasse dizendo:
— Andando?
— Esqueceu como se faz? — Melmer não conseguiu impedir um sorriso de pintar seu rosto.
— Somos o que agora? Desmiolados?
— Robsu, você é uma galinha.
Robsu parou de andar e, quando o inventor percebeu, se virou para encarar o animal. Após um breve silêncio, suspirou antes de dizer.
— E meu assistente. Foi mal.
O silêncio se estendeu, mas não por muito tempo. Logo o animal irrompeu em risadas voltando a caminhar.
— Você tinha que ver a sua cara.
Melmer balançou a cabeça com o sorriso voltando a estampar sua face. Caminhava ao lado de Robsu enquanto ia dizendo:
— Eu pensei que poderíamos dobrar novamente o espaço para pousarmos no lugar correto, mas é provável que fossemos sair no mesmo lugar de antes. Pensei em usarmos as mochilas foguete, mas concluí que a mudança na rota foi uma mensagem de Thyatis. Obviamente ele deseja que façamos essa caminhada e, provavelmente, que aprendamos algo com ela.
Um trovão ecoou e algumas gotículas de água começaram a marcar as escadas. Erguendo novamente o braço, encarou seu emc-pad e vasculhou dentre as funções que havia deixado pré-definidas para aquela viagem. Selecionou uma opção que exibia duas nuvens brancas e, em seguida, um aparato voador se desprendeu de sua mochila — soltando vapor enquanto uma hélice o sustentava no ar — e voou até as pesadas nuvens tempestuosas.
Não demorou até que sumisse entre os relâmpagos e uma sucessão de barulhos surdos e explosões se seguissem. Um vento muito forte soprou e as nuvens carregadas cederam espaço para mais brancas e tranquilas, sem qualquer sinal de chuva. O aparato retornou e acoplou-se novamente em seu lugar.
— Como as pessoas saem de casa sem um drone para alterar o clima? — o inventor indagava indignado.
— Nem todas são inteligentes como você.
— Ah, isso eu sei.
A subida foi longa e tumultuada. Melmer achava curioso que, à medida que avançava na escadaria, haviam muitos desafios. Não para alguém como ele, claro. Havia trechos onde a escada tinha ruído, mas que fora superado com um voo suave de sua mochila barulhenta. Houve desmoronamentos, dos quais ele só precisou acionar seu acelerador de partículas para tornar-se um feixe de energia pura, saindo do caminho dos pedregulhos antes que atingissem o solo. Até mesmo fora atacado por alguma espécie de ave luminosa, mas suas pequenas fênix de metal protegeram a dupla que seguiu escadas acima deixando o pássaro para trás.
Respirou fundo quando colocou o primeiro pé no topo daquela subida — que parecia que não teria fim — e franziu o cenho encarando o espaço amplo e vazio daquele planalto. Não havia nada além do que parecia ser uma grande fogueira apagada no centro, com suas cinzas sendo gentilmente carregadas de um lado para o outro sob o vento.
O inventor levou os olhos ao antebraço, um movimento praticamente instintivo. As coordenadas estavam certas, aquele era o local. Mas por que não havia nada ali?
— Sua jornada é longa, Melmer Lamp.
Com um sobressalto, o kliren voltou a atenção na direção da voz; o que era esquisito, pois ela não tinha vindo de alguém, apenas ressoava em sua mente. Contudo, no centro da fogueira, uma fênix repousava sobre o cabo de uma grande espada, a qual jazia enterrada no chão de pedra.
— Foi longa — disse se apressando em se ajoelhar. — Senhor da ressurreição.
— É longa — Thyatis enfatizou severo.
Melmer engoliu em seco. Havia planejado aquele momento em detalhes. Sabia o que precisava ser dito. O discurso que tinha preparado estava gravado em seu emc-pad e as informações organizadas didaticamente em sua cabeça. Mas não conseguia falar. Havia coisas que nem mesmo sua lógica conseguia por nos eixos, e encarar um deus nos olhos estava nessa lista.
— Seu amigo não tem fé.
Os olhos do inventor vasculharam o local, encontrando Robsu caído com as pernas apontadas aos céus. Um olhar de soslaio em seu emc-pad mostrou que a ave estava bem, apenas inconsciente pelo choque de encarar um deus.
— Foi a minha fé que nos trouxe até aqui, não a dele. Ele é meu assistente e jamais sairia do meu lado.
Observou a fênix que o encarava de volta, silenciosa. Decidiu que deveria continuar.
— Há mais de um motivo de eu ter vindo até aqui, senhor do destino. O primeiro deles, é para agradecer. Empenhei raciocínio, lógica e tempo em meus objetivos; e quando faltava uma pequena fagulha de inspiração, o senhor era meu guia. Graças as suas bênçãos, fundei Klirian, um local que oferece novas chances para quem está perdido ou que precisa de abrigo.
As palavras eram carregadas de orgulho, sob um sorriso largo e olhos que se forçavam a encarar a fênix enquanto falava.
— Klirian não existe por causa de minhas bênçãos — o deus apontou. — Seu destino sempre foi estar presente quando precisassem. Estender a mão a quem estivesse necessitado. Proteger seus companheiros e sua família. Klirian não é uma cidade, Klirian é você.
Um silêncio se estendeu, assim como o sorriso no rosto do inventor. A primeira parte tinha saído, e ainda havia mais por vir. No entanto, o nervosismo aumentava em seu peito e a língua se recusava a continuar.
— Você não é um de meus campeões, Lamp — a fênix proferiu rasgando o silêncio. — Eu vi o que você busca.
O kliren havia entendido o recado. O deus da profecia já sabia suas intenções.
— Eu jamais me veria como um de seus guerreiros santos. Eu não tenho a fagulha de austeridade que brilha em seus corações. Paladinos vivem pelo bem e, por mais que eu simpatize com isso, não busco a imortalidade para combater profanações. Eu tenho outros objetivos.
— O dom da imortalidade não serve a objetivos pessoais — a resposta fora imediata.
— Não são pessoais. Não existe ninguém que possa comandar Klirian em meu lugar. Ninguém conhece seus segredos, ninguém conseguiria manter sua complexidade operacional depois que eu partir. Eu quero poder cuidar da cidade para sempre.
— O dom da imortalidade não serve para cuidar — a resposta fora imediata novamente.
Aquilo pegou Melmer de surpresa. Sempre acreditou que a imortalidade servia para ajudar as pessoas ao redor. Para protegê-las renegando a própria morte. Havia uma forma de se obter a verdade sobre aquele dom; e sua curiosidade não poderia ser contida.
— Então pra que ela serve?
— Meus campeões não carregam dores, pois não há morte. Meus campeões não carregam fardos, pois não há morte. Meus campeões não protegem vidas, pois não há morte — uma longa pausa se fez antes que continuasse. — Meus campeões carregam falhas, mas não as próprias. A imortalidade não é um dom que eles usufruem, mas que distribuem. Todos merecem uma segunda chance, mas meus campeões tem infinitas; pois eles doam suas próprias chances para aqueles que já desperdiçaram as próprias.
— É sobre destinos — Melmer balbuciou para si mesmo.
— Destinos podem ser interrompidos. Há uma linha tênue entre profecia e casualidade, e é sobre esta corda que meus campeões caminham e guiam as pessoas à verdade.
O kliren encarava Thyatis. As chamas nos olhos do homem ardiam como nunca queimaram antes. Mas não era sua enfermidade, era a fagulha que faltava dentro de si.
— Se eu sou Klirian, eu estou disposto a falhar por todas as pessoas que habitam em mim. Tantas vezes quantas forem necessárias — sorria confiante, ardente.
— Você não é um campeão, Melmer Lamp.
A chama do inventor não vacilou.
— Você carregaria as falhas dos outros e o peso da própria verdade?
A chama do inventor não vacilou.
— Então adentre às chamas da verdade, encare seu fim derradeiro e tome para si seu próprio destino.
O fogo ardeu de Thyatis, incendiando a fogueira no centro do planalto. O calor era intenso e brilhava com a essência divina. Melmer caminhou para as chamas com o sorriso ainda impresso no rosto, sendo engolido pelas labaredas que ardiam ao seu redor. A cada passo que dava, ficava mais próximo a Thyatis. E a cada passo, tinha inúmeras visões de inúmeras mortes. Suas mortes.
A chama do inventor não vacilou.
Quando parou de frente a espada, encarou a fênix nos olhos. O fogo desenhava padrões que refletiam nos olhos brilhantes da ave. Nesses reflexos hipnóticos que as chamas produziam, Melmer viu mais uma de suas mortes, uma última morte. Sua verdadeira morte.
Quando a visão profética cessou, o inferno que o envolvia desapareceu junto. E tudo que restou, era uma pequena pluma que ardia em chamas.
Chamas que não vacilavam.
As portas do laboratório abriram sozinhas, ruidosas. O maquinário a vapor incomodava o kliren, mas ainda não tinha alternativas melhores. Caminhou pelo local repleto de cápsulas e parou de frente a uma delas. Examinou com cuidado o corpo que repousava em criogênico, congelado até que fosse o momento de despertar.
— Eu pareço inchado — reclamou para Robsu, que fazia algum ajuste em uma câmara próxima.
— É o congelamento, fica tranquilo.
Melmer caminhou entre os vários tubos daquela sala, cada um com uma cópia idêntica de si. Parou de frente a um maquinário central: uma espécie de torre interligada a vários cabos que se perdiam da vista, estendidos pelo chão, teto e conectando tudo que havia naquela sala. Um espaço amplo no subsolo de seu prédio em Klirian.
No interior daquela máquina, atrás de um vidro blindado, dentro de uma câmara selada, uma única pluma ardia em chamas. A luz que emanava dela se espalhava por todos aqueles cabos e cápsulas, como se o divino tocasse tudo que havia ali.
— Filactério Eletrônico de Neo-Imortalidade por Xerocópia? — Robsu caminhava em sua direção lendo o nome de uma prancheta. — Vai ser esse o nome?
— Ou Projeto F.E.N.I.X., chame como preferir — disse dando de ombros. — Esse é o verdadeiro coração de Klirian.