Dia e noite

Diogo Stone
5 min readApr 22, 2021

Os raios de Azgher iluminavam a sala. Não tanto quanto poderiam, já que o deus sol agora olhava a janela enquanto restringia seu brilho para que não cegasse — ou desintegrasse — seu visitante. Uma ideia tentadora considerando a proposta que o mesmo trazia até ele em Solaris. A dupla conversava a quase uma hora enquanto caminhavam pelo palácio do deus da luz e, agora, observavam uma fonte de água límpida que decorava um dos jardins internos dali.

— Eu ainda tenho dificuldade em acreditar que o filho de Lin-Wu, servindo a Thyatis, veio até aqui me pedir uma coisa dessas. Você mais do que ninguém deveria saber sobre nós. Sobre como somos imutáveis, representando conceitos. Não podemos mudar. —Era difícil distinguir as intenções dele, pois a máscara com a marca do sol ocultava-lhe a face.

— Eu não estou aqui para contrariar a palavra de um deus, eu nem acho que sou digno de proferir tal heresia. Eu estou aqui cumprindo um dever, uma promessa. É uma questão de honra, mas devo confessar que as palavras que trago fazem sentido.

Azgher encarou o tamuraniano e o estudou mais uma vez. Ele não carregava malícia na voz e parecia sincero. Demais, até.

— Zanshin, você é um homem bom, mas eu não consigo simplesmente aceitar isso. Eu não posso, eu não sou isso. Sou a luz e a verdade incontestável. Como eu me tornaria os segredos e a escuridão?

O visitante apertou os lábios. Era difícil olhar Azgher por muito tempo, era como encarar o próprio sol. Contudo, ele sustentou o olhar do deus dourado escondido por trás da máscara enquanto pensava. Estava ali pois ela havia pedido e, como o Panteão estava, parecia a coisa certa a se fazer.

Allihanna havia caído, mesmo que sua essência divina tivesse sido salva por Prunna, a deusa da natureza tinha deixado seu posto. Igashera havia ascendido e, se isso não bastasse, haviam reintegrado Tauron a sua força total. Vinte e um deuses compunham O Panteão e o universo estava desequilibrado. Valkaria enlouquecia cada vez mais com a ascensão da tormenta e eles estavam sem um líder.

— Eu não entendo. Por que a grande roda celestial criaria duas entidades de poder igualmente supremo, mas contraditórias? Quando foi que houve a separação da total capacidade de iluminar ou obscurecer o universo.

— As coisas sempre foram assim, desde o princípio. — Azgher desviou o olhar e suspirou. — Saia das sombras, eu notei sua presença já tem algum tempo.

Zanshin acompanhou o olhar do deus sol e, de trás de um pilar do palácio, uma mulher alta e de pele branca como um cadáver apareceu. Ela trazia consigo uma sombrinha de tecido escuro para se proteger dos raios de sol. O sorriso de lábios negros pintava seu rosto com uma beleza exuberante, mas o coração do tamuraniano não acelerou por conta disso — mas sim do que poderia acontecer desse encontro entre os dois.

— Oh, Azgher. Sempre enxergando a verdade, não é mesmo?

— Se você iria aparecer aqui, Tenebra, por que mandou um lacaio na frente?

— Não, espera. Eu não sou um laciao — Zanshin protestou.

— Silêncio — os deuses bradaram em uníssono.

Tenebra se permitiu um leve riso.

— Parece que concordamos em algo.

Os dois ficaram se olhando em silêncio. Talvez estivessem se julgando, talvez escolhendo as palavras certas. Era difícil dizer, mas Zanshin decidiu que não iria ficar ali observando até tomarem alguma iniciativa.

— Vocês não percebem a importância disso, não é mesmo? — As duas entidades olharam-no, como se despertos de algum transe. — Cinco deuses do Panteão decidiram que a tormenta é a única verdade e se separaram. Quantas outras cisões precisarão existir para que vocês percebam que isso não é mais uma disputa de poder? É uma guerra. Toda guerra tem lados e decisões difíceis de serem tomadas. Tudo bem se vocês se odeiam. Às vezes é preciso se aliar a quem não gostamos por um bem maior.

O calor no local aumentou. Azgher se enfurecia, mas antes que pudesse retrucar — ou queimar Zanshin quantas vezes sua imortalidade permitisse — Tenebra disse.

— Você tem razão, servo. É uma guerra, mas você não veio até aqui propor uma aliança entre nós, isso não é sequer possível. — Azgher balançou a cabeça negativamente, Zanshin olhou confuso. —Nós somos extremos opostos. Não podemos escolher unir forças para lutar contra algo, nem podemos ficar muito tempo no mesmo local.

O olhar do homem foi puxado para fora do palácio, para longe. Era dia, podia sentir o calor do sol ardendo. Mas também sentia um vento gélido e notava as sombras do lado de fora. Os dois não podiam coexistir, pois um afastava o outro. Não podiam ficar lado a lado, não podiam se ver. Olhou a dupla boquiaberto, mas antes que falasse Tenebra pousou um dedo gelado em seus lábios enquanto dizia.

— Não. Não fale, esse será nosso outro segredo — ela voltou a atenção para Azgher antes de continuar. — Não há, hoje, deus mais poderoso que nós dois. Talvez essa seja nossa única chance de ser... — deixou as palavras morrerem num sussurro.

O deus sol a olhou e se aproximou. O esforço que ambos faziam para estar ali era tangível. Era possível ver o suor escorrendo por seus rostos e as energias divinas quase saltavam para fora de seus corpos. Eles não deviam estar juntos, mesmo que quisessem.

A princípio, Zanshin ficara confuso com o pedido que ela fizera quando pediu para salvar a alma de seu irmão. Contudo, finalmente compreendera o motivo da deusa da noite tê-lo feito. O deus sol enfraqueceu seu brilho para que o tamuraniano não fosse desintegrado e, sem sua luz ofuscante, as sombras poderiam existir ali. E onde há sombra, há Tenebra.

Eles nunca foram inimigos, nunca se odiaram. Eles apenas eram o que eram, desde a criação do universo. Um era a luz, a outra as trevas. O brilho e a sombra, a verdade e os segredos, o dia e a noite, o ouro e a ônix. Aqueles dois deuses eram as duas metades de um todo, pois um não poderia existir sem o outro.

— Um antigo e inventivo amigo — Azgher começou, dando mais um passo e ficando à centímetros da deusa — , esquecido pelas águas do tempo e por seus crimes, dizia que “as estrelas do céu noturno, são uma lembrança dos sóis que brilham longe”.

Tenebra levou as mãos à frente e removeu a máscara do deus sol. Zanshin semicerrou os olhos. A face de Azgher ardia com a intensidade do céu diurno e era quase impossível de presenciar a cena. Aturdido pelo clarão repentino, observou os deuses se aproximarem mais, tocando seus rostos um no outro no que pareceu uma espécie de carinho. Talvez até mesmo um beijo, mas não conseguiu enxergar mais quando a luz se intensificou.

Após um breve momento, o brilho diminuiu. Solaris agora não ardia mais com a intensidade de um dia infinito, pois agora teria noite. Zanshin não sabia, mas Sombria — fria e úmida — começava a ter os primeiros sinais de prados verdejantes, pois agora também tinha sol.

Parado a sua frente a silhueta de Tenebra o encarava com olhos brilhantes e totalmente brancos. A pele de tom cadavérico havia cedido espaço para o bronze de Azgher, mas os longos cabelos negros permaneceram intactos. O manto da noite ainda adornava seu corpo, mesmo sendo dia. A nova divindade fechou a sombrinha que carregava e colocou a máscara do deus dourado no rosto. O símbolo nela mudou; o sol entalhado recebeu um novo detalhe e, em seu interior, agora havia uma lua crescente.

— Tenebra? — Zanshin chamou, ainda aturdido.

— Eclipse. É bom estar de volta.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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