Dívida e dádiva

Diogo Stone
6 min readJul 8, 2021

A jovem respirava fundo e sorria. Finalmente estava indo para o arquipélago; finalmente se afastava da intolerância religiosa que sofria. O ar gelado que soprava do mar invadia seu corpo e ela se sentia uma só com Arton, e era esse sentimento que a fazia crer na unicidade de todos. De tudo.

Seus cabelos dourados serpenteavam com o vento e a embarcação já singrava as águas do dragão rei. Voltou-se para o convés, onde vários marujos sujos limpavam um chão que parecia ficar mais sujo a cada esfregada. Ela andou entre eles e, a cada passo, eles se afastavam mais um pouco. Mas isso não tirava o sorriso do rosto de Celene. A ignorância não deveria ser combatida com raiva.

Um ranger alto de fechaduras arrasadas pelo ar salino soou alto e dragou a atenção de todos, inclusive o da jovem que caminhava na direção oposta. Virando-se rapidamente, viu a cabeça de uma mulher com um chapéu tricórnio despontar para fora. Seus cabelos ruivos, um tanto arruinados, escondiam sardas e um par de olhos que brilhavam em um verde esmeralda deslumbrante. Sua voz, no entanto, rouca de álcool, soava como o grasnar de um corvo.

— Oh bonita. Vem cá, preciso falar contigo.

Celene olhou em volta, mas como era a única outra mulher a bordo, obviamente se tratava dela. Suspirou, seguiu para a porta e adentrou na sala da capitã. O local era pequeno, mas ostentava várias riquezas e garrafas de bebida. No canto da sala havia uma mesa com um mapa preso por pequenos pregos. A ruiva estava estirada sobre uma poltrona ao lado da mesa, com uma garrafa na mão enquanto observava a garota fechar a porta atrás de si e sentar-se em uma pequena cadeira.

— Fala. — Bebeu da garrafa. — Fala, vai.

— Como? — a jovem torceu a cara em confusão.

A capitã revirou os olhos.

— Eu aceitei te trazer pra cá, mas, acredite, eu vi essas aberrações que você cultua com meus próprios olhos e elas não pareciam nem um pouco com você. Estamos velejando juntas a mais de uma semana e você é um doce!

A mulher abriu os braços em negação, com os olhos verdes arregalados. Celene sorriu.

— Apenas um tolo acha que seus olhos mostram a verdade. Um sábio compreende que as verdadeiras intenções estão escritas nas nossas ações.

— Os homens temem você, sabia? — outro gole. — Acham que você blasfema atoa, mas que cultua Lena ou até mesmo Marah. Quando o velho Bill torceu o pé e você cuidou dele, os homens trocaram moedas apostando se você iria devorar o coração dele.

— Por que eu faria isso? — estava visivelmente chocada.

— Homens são idiotas, Celene — outro gole. — Especialmente os que tem olhos pretos.

A garota apertou os lábios. Aquilo parecia pessoal, mas não era o momento de indagar sobre.

— Izzy, eu…

— Capitã Tarante! — cuspiu emburrada.

— …eu creio que as pessoas não enxergam a tormenta como ela é, mas como elas querem. Se vocês querem que ela seja uma força invasora que arrasará tudo e todos e engolirá Arton, ela será.

Enquanto a jovem falava, Izzy via as feições dela se torcendo. Por uns instantes pode jurar que ela sacava uma lâmina de ferro retorcido e matéria-vermelha.

— Se vocês querem que ela seja uma aberração disforme, com ângulos impossíveis e feições insetóides, ela será.

Agora, a capitã via Celene adquirir feições oblíquas e inexistentes. Perdia o rosto, falava pelos ouvidos; com olhos bulbosos e presas por todo o corpo.

— Se vocês querem que ela seja a salvadora, que irá unir a todos e a tudo como uma única força capaz de vencer todos os desafios e acabar com a mesquinhez e com o egoísmo, ela será. Pois a tormenta se adapta para abraçar a todos. Sua maior dádiva é a união; o amor.

A mulher encarava a loira, que já não tinha mais cabelos dourados e sim vermelhos. Ela se levantava lentamente e caminhava na direção da capitã. As palavras eram apenas um chiado, letras contorcidas em sílabas inaudíveis das quais era possível sentir o gosto azedo do que ela dizia. Sua visão, logo tornou-se um vermelho intenso e deixou de sentir o chão sob seus pés.

Em meio a sinestesia que sofria, podia jurar que ouvia uma garotinha chamando-a, mas, se havia uma garota, ela fora engolida pela escuridão rubra também. Acordou suada e se sacudindo de forma exacerbada, acertando um murro no joelho de alguém sentado ao lado de sua cama.

— Ai! — Celene reclamou do soco repentino. — Cuidado!

— O que você… quem que… onde…

Conforme vasculhava o local, notava que estava deitada em seu aposento privativo. Havia apenas ela e a garota que, agora, tinha as mesmas feições doces de sempre. Exceto pela expressão de preocupação estampada em seu rosto.

— Você bebeu demais. — Celene começou explicando. — Tem que se controlar melhor. Quase saiu gritando convés afora sobre algum monstro, e que eles haviam voltado, e que era o nosso fim. Por sorte você apagou antes de seus homens verem essa cena toda.

Izzy apoiou a cabeça nas mãos. Parecia que seu crânio havia sido usado de boleadeira por um gigante. Vasculhou o quarto e encontrou a água nas mãos de Celene. Tomou o copo para si e bebeu tudo, quase se afogando no processo.

— O que foi aquilo que eu vi? — perguntou ainda rouca.

— A sua verdade, provavelmente.

— Você fez aquilo?

Parecia um interrogatório. E talvez fosse.

— De forma alguma. As mentes mais fechadas tendem a se proteger com violência. Talvez esse baque, e a bebida, tenham agido juntos para te derrubar. O que me surpreendeu, não achei que alguém como você cairia.

— Como eu? — a mulher perguntava enquanto começava a se vestir. Quando havia se despido?

— Forte, resoluta, inteligente; mas acima de tudo, deu ouvidos a quem é tido como pária onde quer que vá.

— As párias devem se unir, creio eu. Nós somos piratas. Vagabundos do mar que saqueiam e roubam de nobres gordos e sebosos. Seu crime, às vezes, parece que é só amar demais.

Celene riu e Izzy gostou do que ouviu.

*****

O mar balançava calmo e seu som havia se tornado uma música que a jovem acólita aprendera a apreciar. Ela observava os homens carregando a embarcação enquanto a capitã terminava de negociar algo com um mercador pequenino.

Quando os dois se deram por satisfeitos, se despediram e ela se aproximou de Celene.

— Parece que os idiotas daqui não sabem quem somos e isso é ótimo. Poderemos voltar outras vezes.

Um silêncio se manteve entre as duas. Izzy torceu a boca antes de conseguir continuar.

— Eu pensei muito sobre o que você disse. Sabe, sobre a — olhou ao redor para se certificar de que ninguém as ouvia — tormenta.

A expressão de Celene mudou de uma doçura tênue para surpresa.

— Não me olhe assim, não creio que eu esteja pronta para aceitar tudo que você diz. Eu vi com meus próprios olhos o que aquelas cois- — interrompeu-se. — O que os lefeu podem fazer.

A pirata se aproximou da clériga, olhando-a de cima. De perto.

— Mas acho que estou disposta a ver as coisas de outras perspectivas. De mente aberta.

A jovem sorriu e respirou fundo algumas vezes. Pode sentir o aroma que Izzy exalava: uma mistura de perfume de rosas e conhaque fedido.

— Então, isso é um adeus?

Um grande sorriso pintou o rosto da capitã, deixando-a ainda mais bela.

— Tá maluca? Você me deve muita coisa ainda. Voltaremos para cobrar, não se preocupe.

Passando as mãos pelas madeixas loiras da garota, Izzy se afastou, fez um gesto de despedida com a mão e gritou estridente com os homens, ofendendo-os de diversas coisas. Todos pularam para dentro do barco e partiram logo em seguida.

Agora, Celene estava sozinha.

De novo.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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