Ego e Respeito
Suspirou mais uma vez, tamborilando os dedos impacientemente. Prunna não aguentava mais olhar o quadro gigantesco à sua frente — que exibia o corpo seminu de Sckhar. Esperava na antessala em silêncio, acompanhada somente de uma cavaleira, um escriba e som inquietante do metal da armadura toda vez que a mulher se ajeitava na cadeira. Não sabia por que o dragão-rei vermelho havia solicitado sua presença ali, mas a dahlan começava a se irritar com a espera.
Havia estudado a mulher vestida de aço duas ou três vezes, mas sempre que seus olhos se encontravam, desviavam o olhar. Era engraçado como ambas se comportavam de maneira similar. Prunna notou que a cavaleira tinha um ar obstinado e, seja lá o que à trouxera ali, ela não parecia temerosa. Perdeu-se mais de uma vez olhando os tons castanhos dos cabelos dela, nem percebeu que a mesma admirava suas madeixas rosadas. O som alto da porta se abrindo chamou a atenção de ambas. A mulher encouraçada levou a mão à cintura, um reflexo vasculhando por sua arma.
— Senhorita Prunna — o escriba chamou. — Entre, por favor.
Sem demora, apressou-se até a sala do trono. Era uma visão magnífica que esbanjava riquezas além do imaginável. Era um contraste gigante com o palácio de coral de Benthos. Tapeçarias, obras de arte, artefatos. Para qualquer lado que olhasse, havia alguma demonstração de dinheiro e poder. Foi preciso mais de trinta passos para chegar próxima ao centro da sala, onde um trono de ouro maciço repousava sobre uma pilha de joias e moedas. Sckhar estava de pé, com uma das mãos apoiadas no encosto do assento. Seu olho bom a encarava com certa malicia, intensificada pelo sorriso de dentes afiados.
— Seja bem-vinda à Sckharshantallas, Prunna, arquibarda, heroína de Arton, vitoriosa contra Lamashtu, campeã de Kallyadranoch — ocultou o título de rainha dos mares de propósito.
— É uma honra, vossa majestade, Sckhar, dragão-rei, deus dos dragões vermelhos, soberano de Sckharshantallas — havia praticado a saudação algumas vezes, sabia que o regente gostava de ter o ego inflado e não queria confusão com outros irmãos de Benthos. — A que devo a honra deste convite?
A pergunta pareceu surpreender o dragão. Estava acostumado a mandar e ser obedecido, não a responder perguntas, mas tinha que se conter para realizar seu plano.
— Direto ao assunto então? Gosto da sua maneira de agir, Prunna — o esforço que fazia para falar seu nome era tangível.
O dragão-rei descia da pilha de tesouros e ia se aproximando da dahlan.
— Eu tenho uma proposta. Você superou limites que vários mortais apenas sonham, conquistou vitórias que deuses almejam e outros reis invejariam. Imagine o poder que um descendente do grande Sckhar não teria se fosse filho da maior arquibarda de Arton! — falava com o punho erguido, com convicção.
Prunna riu.
— Um neto para você? De mim? Desculpe, mas acho que você está me confundindo com alguém, vossa majestade — o tom dela beirava o deboche, não conseguia manter o respeito frente aquela proposta.
— Neto? Não, claro que não. Que absurdo. Você não merece nada menos do que Sckhar.
O dragão, que em sua forma humana se parecia com um elfo, era belo e convincente. Ele poderia encantar qualquer pessoa com suas palavras e voz melodiosa. Poderia ordenar o que quisesse e obedeceriam. Controlava aquelas terras com garras de aço e hálito flamejante. Qualquer um se curvaria à seus desejos, mas não Prunna.
— Ah, quer dizer que eu mereço você — ela o encarava séria, incrédula. — Eu já tenho dois dragões pra cuidar, e um reino, assim como você. Eu mereço é respeito. Você pode ser o senhor de Sckharshantallas e da droga que quiser, mas não ache que pode ter quem você quiser, quando estiver a fim. Não seja ridículo.
O silêncio pairou na sala do trono por uns instantes. O dragão-rei a encarava com a boca entre aberta e os olhos arregalados. Ela apenas o olhava com raiva, desprezo. Sckhar jogou a cabeça para trás e gargalhou, cessando o riso de maneira abrupta e retomando com um tom sério.
— Faz eras que eu não via meu pai errar tanto numa escolha… — desdenhou.
— Que bom que você lembrou disso. Kallyadranoch me escolheu, pois viu em mim alguém que carregava grande poder e sabedoria. Já você, só tem isso por que é filho dele — a dahlan sorriu. Estava degustando daquela troca de ofensas. — No fim das contas, você é só um nobre mimado.
O dragão-rei se aproximou ainda mais, ficando com o rosto a centímetros do de Prunna. Conforme avançava, as feições de Sckhar mudavam, embruteciam. O rosto fino tornando-se uma bocarra, chifres crescendo em sua fronte. Seus olhos eram fogo. A voz, antes melodiosa, agora era gutural.
— Eu sou um deus, caso tenha esquecido, Prunna — o escárnio tornava-se mais evidente. — Eu comando legiões de dragões e dragoneiros. Tenho riquezas além de sonhos de qualquer mortal como você. Conquistei tudo isso com minhas garras, não com minha linhagem. Eu sou o sonho de muitos, mas também posso ser seus pesadelos quando sou confrontado.
A dahlan engoliu em seco. A proximidade e o bafo quente a fizeram fraquejar por uma fração de segundos, e Sckhar percebeu. Mas antes que ele pudesse continuar suas ameaças, a joia da coroa de Prunna começou a emanar uma luz azulada. Sentiu o corpo arder e seus olhos piscaram involuntariamente. Seu rosto começou a mudar. Ela mesma tinha uma bocarra, escamas e chifres. A Ira de Benthos brilhava na coroa, e o sentimento do dragão-rei marinho era dela.
— Afaste-se de mim — sua voz era um misto grave e agudo. — Nunca mais me chame para essa espelunca que você chama de reino, nunca mais ouse falar de mim como um objeto e, mais do que isso, nunca questione as decisões de nosso senhor Kallyadranoch, deus do poder, dos dragões e seu pai.
Sckhar deu alguns passos para trás, tropeçando nos tesouros e caindo sentado no trono — arfando e com uma expressão mista de ódio e medo. Prunna sorriu, se despediu com uma mesura debochada e deselegante e saiu do salão enquanto seu rosto voltava ao normal.
As portas se abriram com um barulho enorme, assustando o escriba e colocando a cavaleira — que brandiu seu escudo rapidamente — de pé. As mulheres se olharam por uns instantes, uma troca silenciosa de palavras.
— Ele é todo seu, senhorita — disse enquanto se dirigia a porta que levava para fora do castelo.
O escriba suspirou aliviado, pois acreditara que era seu senhor saindo irritado da sala do trono após incinerar mais um de seus visitantes. Voltou-se para a cavaleira que guardava o pesado escudo com o símbolo de Arsenal estampado.
— Senhorita Thalyandra, entre, por favor.