Equalizar

Diogo Stone
8 min readJun 28, 2021

O garoto serviu a aguardente e ficou olhando o homem em silêncio. A pele negra dele, marcada pelo tempo, brilhava graças ao suor. Não contendo sua curiosidade, o jovem começou a falar, atraindo a atenção de todos os presentes.

— Por que você faz isso? Por que enfrenta essas aberrações? Por que luta por uma humanidade que te vê como um monstro?

O homem pegou o copo com sua única mão, bebeu a cachaça e rilhou os dentes. Olhou o rapaz nos olhos por longos segundos. Aquilo incomodou quem os observava, deixando todos inquietos e tensos — prontos para fugir ao menor sinal de ameaça dele. Mas ele apenas sorriu, levantou e pegou sua mochila sobre a mesa. Permitiu-se um riso frágil.

— Pra que vocês possam viver e continuar a falar asneiras.

Atirou uma moeda para o menino, fechou a cara e encarou os outros presentes no bar. Saiu com passos pesados pela porta e encarou o céu coberto.

O dia estava uma merda, como todos os outros dias.

Já não lembrava a quanto tempo o sol brilhava fraco. Os dias de céu encoberto eram constantes e o seu azul já era tão raro que, aos poucos, tornava-se apenas mais um mito. Contudo, a aparição das aberrações aumentava a todo momento. Ele era só mais um dentre os tantos outros que tentavam sobreviver ao inferno que o dia-a-dia tinha se tornado.

Pôs um cigarro na boca enquanto andava e, tapando o vento com o antebraço, ascendeu-o e sentiu o calor ferver seu interior. Um acalento fraco para a rigidez da vida. A fumaça espessa espiralou e ele desejou que a próxima noite fosse banhada pela luz das estrelas; pois caçar monstros no escuro era sentenciar a própria morte.

Estava escuro. Muito escuro. Para cada passo que o homem dava dentro do depósito abandonado, recitava uma praga para si mesmo. O chão estava coberto de terra e outros detritos e ele sofria para se deslocar sem fazer barulho. Podia ouvir ao longe o som grotesco da criatura. Uma espécie de silvo misturado a um guinchado. A melodia horrorosa que havia sido a marcha fúnebre de tantas pessoas desde o surgimento deles.

O lugar lembrava o homem da primeira vez que enfrentara uma daquelas coisas. Na época, fugiu e se escondeu sem saber o que eram. Animais comuns ou pessoas, ninguém estava a salvo. Qualquer um podia tornar-se uma aberração — a qualquer momento. Se os cientistas descobriram o que causava as mutações nos corpos, os meios de comunicação caíram antes disso ser divulgado. Governos tentaram enclausurar e acabar com todas as monstruosidades, mas as tentativas apenas conseguiram destruir a própria terra e afogar o mundo em escuridão.

Um barulho de uma lata rolando o despertou de seu transe. Colocou o facão que carregava à frente do corpo e andou a passos calculados até uma porta. Por fim, investiu rápido e levou a mão a boca da pessoa que estava escondida ali, sinalizando para que ficasse calada. Era quase impossível distinguir qualquer forma naquele local, mas os olhos treinados dele enxergavam melhor que o da maioria no escuro. Quando a mulher se acalmou, disse baixinho:

— Eu quase atirei em você, caralho!

— Você teria errado — advertiu. — E atraído a criatura. E morrido. E talvez me matado, o que seria a pior parte. Saia daqui.

O homem já se virava para partir, mas ela o interrompeu segurando seu antebraço e notando a falta da mão direita dele.

— Você é um caçador, não é? Eu quero ir contigo. Aquela coisa levou minha mãe, quero ver ela morrer.

Os olhos dele foram do rosto da mulher para a mão que o segurava e de volta À face dela; que o soltou, percebendo que apertava seu braço.

— Assim, é mais fácil eu te ver morrer. Essa criatura não é uma aberração qualquer, é uma abominação.

O corpo da mulher enrijeceu. Ouvira histórias sobre, mas nunca imaginou que veria uma.

— Mas… — sua fala foi interrompida pelo silvo-guincho ao longe. Contudo, a mulher continuou, sua voz não mais que um sussurro. — As lendas sobre… são reais?

— Não envelhecem, nem adoecem. Invulnerável, tem a pele dura como titânio. Não precisa se alimentar, mas gosta de degustar carne. Sim, tudo real.

— Mas e o núcleo? O ponto fraco deles? Uma esfera brilhante que surge em algum local aleatório do corpo da abominação quando fazem esforço? Aquele que só pode ser perfurado por uma lâmina equalizadora?

O homem permitiu-se um leve riso enquanto balançava a cabeça.

— Essas histórias não passam de mitos. Estou aqui para aprisionar essa coisa. Agora vá antes que você morra.

— Não. Eu vou ajudar — disse resoluta.

— Foda-se então.

Dando as costas a mulher continuou sua caminhada silenciosa pelo local. Ouvia os passos ruidosos dela atrás de si e tentava abafá-los em sua mente para escutar a criatura. Mas não precisou de muito tempo para encontrá-la, pois assim que reiniciou a procura, a coisa saltou sobre ele.

A abominação tinha três braços alongados, um deles tinha uma mão, outros dois apenas uma garra na ponta. Possuía apenas uma perna, grossa e que se dobrava mais vezes do que pôde contar. Sua cabeça era apenas uma bocarra gigantesca e, se possuía olhos, não sabia onde ficavam. A criatura guinchou e tentou apunhalar o homem com seus braços-garras, mas o ribombar de dois disparos de uma arma distraíram a criatura.

A mulher tremia dos pés à cabeça quando o monstro se ergueu do chão e caminhou tortuosamente em sua direção. Mais dois estrondos do revólver ecoaram pelo depósito. O clarão revelou mais alguns traços grotescos de sua anatomia, capazes de enlouquecer mentes menos treinadas. O homem tateou o chão e praguejou ao não encontrar seu facão. Pegou uma enxada próxima e esfarelou o cabo contra o corpanzil da abominação, que voltou sua atenção à ele novamente.

Antes da criatura se virar, ele já corria para uma escada que levava a uma espécie de mezanino daquele galpão, tirando a monstruosidade de perto da mulher.

— Corre, caralho! Sai logo daqui! — gritou arfando enquanto fugia.

Como se desperta de um pesadelo, iniciou sua fuga pelo caminho de onde vieram, mas tropeçou em algo e caiu. Levou a mão até o pé e percebeu o facão caído. Ao tocá-lo, sentiu o braço formigar. Era como se estivesse recebendo um choque da ferramenta, mas não conseguiu soltá-la. Viu a lâmina brilhar um lilás suave e, ainda tremendo pelo medo, ergueu-se e subiu as escadas atrás da criatura.

O homem corria de costas e atirava o que chegasse ao alcance de sua mão contra o monstro. Cadeiras, mesas, panelas. A cada baque, a coisa parecia mais irritada e guinchava mais alto e mais próxima. Quando finalmente alcançou a parede, mais um disparo de revólver iluminou o local e a abominação voltou a encarar a mulher, virando apenas a cabeça-bocarra, mas não o corpo.

— Você não quer devorar o resto da família, seu inútil?!

Outro disparo foi dado e, em seguida, o único som que se ouvia era o clique da arma batendo em seu tambor vazio. A criatura urrou e avançou contra a mulher, mas o homem se agarrou na única perna da criatura, derrubando os dois no chão. Os braços da cosia se dobraram de um jeito esquisito e atingiram uma das pernas dele, que se afastou rolando. Mesmo assim, ele foi acertado mais uma vez, abrindo um ferimento extenso em seu braço.

Levantando os olhos, o homem viu seu facão nas mãos da mulher. Praguejou. Viu a criatura inflar o peito urrando e um brilho púrpura surgir no seu único pé. Percebeu que a mulher também notara. Praguejou mais uma vez. Com sua única mão, a criatura atravessou o chão do mezanino e arrancou o pilar que o sustentava — derrubando os três no chão do depósito. A coisa se aproximou da mulher caída, mas o homem saltou em suas costas, segurando-se o melhor que podia enquanto os braços-garra se entortavam para alcançá-lo novamente.

Com a criatura distraída, a mulher pegou o facão, sentiu o braço formigar mais uma vez e golpeou o tornozelo da criatura. O golpe foi limpo e suave, cortando a pele impenetrável do monstro como se fosse manteiga quente. Separou o pé da criatura de seu corpo e, instantaneamente, o guincho da abominação perdeu força e seu corpo ficou mole. Entretanto, ao mesmo tempo, ela sentiu uma dor lancinante no próprio tornozelo e, horrorizada, viu o sangue lhe escapando do local onde seu próprio pé havia sido decepado.

O medo, o choque e a perda de sangue foram demais e a última coisa que viu antes de perder a consciência, foi o homem cambaleando para ficar de pé.

Acordou com uma sensação estranha no rosto. Sua visão estava turva, o corpo doía e estava muito cansada. Demorou para que seus olhos se acostumassem com a… luz? Sentou-se com esforço, praguejando diversas vezes.

— Vai com calma. Você perdeu muito sangue — o homem falava casualmente enquanto mexia em algo numa pequena panela.

A mulher olhou ao redor e percebeu que estava em uma pequena clareira de uma floresta. Olhou para cima e percebeu a origem da sensação estranha no rosto: era um dos raros dias de sol.

— Achei que nunca mais veria o azul do céu — disse com uma voz rouca antes de começara tossir.

O homem se aproximou e entregou-lhe água. Após se recuperar, ela disse em tom acusatório.

— Você mentiu.

— Menti.

Um silêncio se fez entre os dois. Ele estava sentado ao lado da fogueira encarando o céu azul. Mesmo com diversos ferimentos atados e visivelmente cansado, ele ostentava um sorriso no rosto. Ela pensou em vários questionamentos, mas o ronco de seu estômago falou mais alto. Após algum tempo, o homem serviu um ensopado para ambos, e só então ela reuniu coragem para questionar.

— O que houve lá?

— O formigamento no braço indica que a lâmina é feita de metal enóquio. Tem esse nome pois um bando de crentes na salvação divina deu esse nome. Alguns dizem que ela brilha na mão de escolhidos por Deus, mas isso é só mito. Ela não brilha.

— E aquele brilho que vimos na abominação?

— É o tal núcleo que você perguntou outro dia. Nós, caçadores, chamamos de coração. Quando você o destrói, ou separa do corpo da abominação, ela morre instantaneamente.

A mulher ficou em silêncio um tempo encarando as próprias pernas cobertas por uma espécie de colcha. Puxou-as para o lado e viu seu tornozelo enfaixado, as gazes ainda estavam carmesins e ela fez um muxoxo.

— E meu pé?

— A lâmina enóquia, ou Equalizadora, como você chamou, cobra um preço de quem a usa. Você pode cortar qualquer coisa viva, mas quando o faz, é cortado no mesmo lugar de volta. Você tem sorte que aquele pé era um pé mesmo. Pela natureza aberrante dessas criaturas, as vezes o que é uma mão, pode ser um pescoço. E nós só descobrimos quando é tarde demais.

— Foi assim que perdeu a sua mão? — agora ela própria olhava o céu azulado quase esboçando um sorriso.

— Claro que não — mentiu. — Eu não sou um amador.

— Pelo menos você é canhoto, poderia ser pior.

— Eu não era — disse a verdade.

Um silêncio se fez entre os dois novamente. Ambos desfrutando o raro momento em que podiam se banhar com a luz do sol.

O dia estava bom, como os outros dias nunca estiveram.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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