Erros
A mulher abriu os olhos devagar. As cobras vermelhas, que eram seus cabelos, sequer se mexiam tamanho o cansaço. O sol a forçava a franzir a testa enquanto sua visão desembaçava, até dar forma ao céu azul. Algumas aves voavam em formação e ela permaneceu imóvel as observando por um tempo.
Seu corpo doía como o inferno, parecia que tinha sido atirada dentro de um triturador. Tentava se lembrar do motivo de estar ali e sua mente foi invadida por vários lampejos. Docas, cheiro do mar, raio, pó.
Sentou-se de repente, arfando e com o peito doendo. Notou que estava no topo de algum tipo de montanha e, a única coisa ali além dela, era uma enorme pira que ardia a sua frente. Ou assim achou até ouvir uma voz forte soando as suas costas, chamando sua atenção. Tateou ao seu redor procurando pela Segunda Chance, sua espada de madeira — mas não teve sucesso.
— Até que enfim você acordou, eu já estava ficando preocupado!
Enquanto o homem gargalhava de maneira exagerada, ela torcia o corpo para olhá-lo. Não conseguiu esconder parte da surpresa ao ver um tritão alto, sem camisa, de cabelos púrpuras presos por uma bandana e cego de um dos olhos. Ele estendia algo em sua direção.
— Tome uma empada, você vai se sentir melhor.
A medusa recusou a oferta dele erguendo a mão em sinal de desaprovação. Mas antes que pudesse falar, ele já continuava.
— Poxa vida, é verdade. Nem todo mundo gosta de empadas, como eu sou descuidado — ele gargalhou de maneira exagerada mais uma vez.
— Não? É que eu nem sei quem você é — a voz da medusa era rouca.
O tritão levou a mão até a testa, como se lembrasse de algo.
— Verdade. Mil perdões. Eu sou Tempestus Bonicandra, é um prazer conhecê-la Tsu… não, pera. Como foi que a General Arwan me ensinou? Yamada Tsuruko? É assim que fala?
Mais instinto do que bom senso, Tsuruko se pôs de pé e se afastou dois passos do tritão.
— Como você sabe meu nome? Foi o Pata Esquerda que te mandou aqui?
Suas palavras eram sérias e agressivas, mas Tempestus gargalhou mais uma vez. A medusa podia sentir uma veia pulsando em sua testa. Aquele costume estava começando a aborrecê-la.
— Eu nem sei quem é esse tal de Pata Esquerda, mas é um nome bem interessante. Já o seu foi um passarinho que me contou seu nome.
Tempestus deu as costas a medusa e começou a procurar algo em uma bolsa. Se ele não percebeu que ela estava pronta para atacá-lo, ou se ele não se importava, era difícil dizer. Quando voltou a se pôr de pé, um tapa olho escondia seu olho cego e, queimado no couro do apetrecho, podia se ver a silhueta de uma fênix. De Thyatis.
Tsuruko relaxou um pouco o corpo. Só podia ser coisa do deus da profecia — e ela não gostava disso.
— Que lugar é esse?
— Aqui é… sabe que eu não sei — mais uma vez a gargalhada. — Só sei que é pra cá que a gente vem quando tá morto.
Os olhos de Tsukuro denunciavam sua confusão sob o cenho franzido.
— Ah, é sua primeira vez aqui? Isso explica por que eu não estou sozinho — mais uma gargalhada. — Normalmente a primeira vez é bem confusa mesmo.
— Espera um pouco. A primeira vez? Tá me dizendo que você é um abençoado da codorna de fogo também?
Mais uma gargalhada veio, mas a paladina não conseguiu suportar e desferiu um murro no alto da cabeça do tritão.
— Ei! Isso doeu!
— Então para de gracinha!
— Mas foi você que chamou o pássaro vidente de codorna, eu só achei engraçado… — ele disse fazendo um muxoxo.
Tsuruko revirou os olhos.
— Pra um deus da profecia ele faz escolhas bem ruins mesmo.
— Ei!
— Eu não estava falando só de você.
A expressão indignada de Tempestus deu lugar a confusão.
— De que adianta nos escolher se viemos parar aqui? Não sabia que mortos podiam ajudar a trazer redenção para Arton — a afirmação parecia mais um desabafo.
Irritada, a medusa sentou-se próxima a pira, alcançou uma das empadas recém preparadas e a enfiou na boca. Acabou percebendo tarde demais que tinha um papel dentro e acabou cuspindo. O bilhete trazia a frase “Assim como os ventos mudam, é hora de uma nova jornada”. Ela torceu o nariz para a frase, mas não mais do que para o fato de que ele havia colocado aqui dentro da empada.
— Não há morte — Tempestus dizia sentando-se ao seu lado. Ele parecia muito mais sério agora. — Você fez o que era certo. Eu sei disso pois Thyatis te escolheu. Muitas vezes achamos que as decisões dele são ruins, mas ele sabe o destino de todos. Nosso dever é guiar as pessoas para encontra-los, assim como ele nos guia para os nossos.
— Ele me disse que eu deveria trazer redenção — a mulher concluiu triste.
Tsuruko se surpreendeu consigo. Não parecia certo falar disso com um estranho, mas ela sentia que o homem sentado ao seu lado tinha algo que ela via em si mesma.
— Isso é bom. As pessoas se desvirtuam quando esquecem da redenção.
Medo. Dor. Instinto. Tudo isso passava pela cabeça dela enquanto tentava descobrir o que conectava os dois àquele lugar. Lentamente, uma a uma, as cobras — que também eram seus cabelos — começavam a se agitar refletindo sua busca por uma revelação.
— Aconteceu comigo uma vez. Meus amigos quase morreram por minha causa naquele dia, mas eles me ajudaram a sair de lá e eu jurei nunca mais agir sem pensar. Acho que naquele dia foram eles que me deram uma segunda chance.
O sorriso triste que o tritão lançou para ela foi como uma pedrada. Vergonha. O sentimento que os unia era o gosto amargo que sentia ao se lembrar de como morreu da primeira vez. Uma tentativa tola de buscar uma vingança que jamais repararia as feridas que foram abertas.
— Tempestus — ela começou devagar — , como você morreu?
— Agora? Bem, de onde eu vim, existe uma cidade no deserto ao norte de Arton; um verdadeiro paraíso. Mas um verme gigantesco, com patas a se perder de vista, avançava pra lá. Ele não era mau ou sequer parecia inteligente, mas era magnífico e raro. Tentamos impedir seu avanço, mas seu corpo era massivo demais, forte demais. Não conseguimos pará-lo. Mas antes que ele destruísse a cidade, eu juntei a maior quantidade de explosivos que Zimbro e a Kera conseguiram me arrumar. E foram muitos. Muitos. Sério. Então eu fui fazendo uma trilha com eles e causando explosões para atrair o monstro. Deu certo, ele desviou da cidade e foi pro meio do deserto, só que ele aproveitou e me levou pro lanche da tarde.
Tsuruko apenas concordava com a cabeça, ficando um tempo em silêncio. Quanto mais recordava dos acontecimentos que a levaram até ali, pior ela ficava. Não havia sido algo heroico ou grandioso — fora só estúpido. Mesmo assim, após algum tempo, ela resolveu falar.
— Nós entramos numa briga que não deveríamos. Nosso inimigo disse que poderíamos ir pra casa sem problemas, mas nós insistimos. Então ele me desintegrou e aqui estou. E eu não sei o que houve com meus amigos depois disso.
Ela apertava os punhos involuntariamente pensando no que Pata Esquerda poderia ter feito com seus colegas.
— Olha, eu não fui desintegrado ainda, mas conheço um bardo que foi e ele não recomenda.
O som oco de outro soco acertando o alto da cabeça de Tempestus sobressaiu o crepitar da fogueira.
— Eu tô falando sério!
— Ai, ai, tá bom, desculpa, calma. Olha, por que você não pergunta pra ele — o tritão gesticulava para as chamas. — Thyatis nos dá o Dom da Profecia por um motivo.
A medusa e suas cobras, fecharam os olhos e se concentraram. Uma pequena auréola de fogo surgiu no alto da cabeça de Tsuruko enquanto ela indagava ao deus fênix sobre seus amigos. Não demorou para que sua mente fosse inundada por uma visão.
Seus companheiros estavam ao redor de uma mesa. Todos pareciam bem, apesar de visivelmente abalados. O bardo da equipe questionava se paladinos de Thyatis retornavam a vida caso virassem pó, mas isso só o fez receber olhares furiosos dos outros enquanto se desculpava.
Tsuruko sorriu.
— Veja só. Ao julgar pelo seu sorriso, parece que eles estão bem — o sorriso do tritão se alargou ainda mais. — E parece que você gosta muito deles!
A última coisa que Tempestus se lembra, foi de ter levado outro soco antes de apagar.
Já era tarde quando o tritão voltou a abrir os olhos. A medusa continuava sentada no mesmo lugar, encarando as estrelas. Suspirou assim que ouviu o homem se aproximando mais uma vez, mas se apressou em falar antes que ele começasse.
— Desculpa por aquilo.
— Não esquenta com isso, eu já estou acostumado. Eles estão mesmo bem? Seus amigos?
Ela acenou positivamente com a cabeça, não parecia afim de conversar.
— E tudo graças a você.
Tsuruko soltou uma risada debochada.
— Ei, é sério! Ninguém morreu, não é?
Ela o olhava com uma sobrancelha erguida.
— Você acha que nós somos imortais pra que?
— Pra lutar. Levar a redenção. Fazer o certo. Essas coisas assim.
Tempestus balançava a cabeça negando as afirmações.
— É pra podermos errar sempre.
— Quer apanhar de novo? — ela respondeu rilhando os dentes e erguendo os punhos.
— Calma, não, pera. Eu não sei usar palavras bonitas, mas é que enquanto a gente errar, tá tudo bem. Nós sempre voltamos, assim as pessoas que não voltam têm outras chances, por que nós erramos no lugar delas.
— Você é realmente péssimo com as palavras — a medusa interrompeu outro protesto do tritão erguendo a mão para silencia-lo. — Então quer dizer que Pata Esquerda ter desintegrado logo eu não foi ao acaso. Thyatis sempre soube que esse era meu destino e que, assim, meus companheiros estariam protegidos e eu retornaria?
— Não é bem isso, mas é por aí.
— Que pássaro arrogante do car… — Tsuruko se interrompeu quando notou que o corpo do tritão começara a pegar fogo. — Mas que porr…
— Ah, fica tranquila. Isso aqui é só a carona pra casa, não dói nada. Foi um prazer te conhecer.
— Já vai tarde — ela grunhiu deixando escapar um sorriso enquanto o tritão desaparecia com sua gargalhada espalhafatosa.
Voltou a se sentar e relaxar. Sozinha — sem o ronco ou falatório do seu antigo companheiro de morte — podia pensar melhor sobre tudo aquilo. Apenas o crepitar da pira acompanhava os pensamentos que giravam em sua cabeça.
Se ela havia sido escolhida por não ter medo de errar, Thyatis parecia ainda mais inconsequente do que ela achava antes. Contudo, por mais irritante que Tempestus fosse, ela conseguia sentir que ele faria qualquer coisa para ajudar quem estivesse desorientado ou perdido. Não que ele não parecesse um desorientado.
— O papel na empada da sorte mais cedo dizia “É hora de uma nova jornada” — comentava para o fogo, como se ele pudesse entendê-la. — Isso foi sorte ou o meu destino?
Após um breve momento, Tsuruko sorriu para as chamas que lhe mostravam a verdade.
— Pois você nunca mais vai encontrar alguém que erra como eu.