Essência
A criança ajoelhada chorava inconsolável. A mulher se aproximou da senhora que estava de pé, observando o sofrimento da menina. Juntas, elas representavam todas as fases da vida. Uma muito jovem, não mais do que seis anos; a recém-chegada, na flor da idade, vestindo uma armadura pesada e carregando equipamentos de viagem; e a terceira, idosa e paciente — aguardando a menina parar sua lamúria.
Quando parecia que as lágrimas cessariam, mais um grito e o choro voltava com força.
— Cento e setenta — a senhora contou em voz alta.
— Isso é sádico — a mulher comentou.
O berreiro da criança abrandou, mas logo voltou a gritar e bater com suas pequenas mãos no chão.
— Cento e setenta e um — ergueu o olhar para encarar a mulher.
Cada vez que a idosa piscava, o semblante da recém-chegada mudava — assim como a cor de sua pele, de seus olhos e de seus cabelos. Ela era movimento. A criança as olhou com o beiço tremendo, levou as mãos aos olhos e voltou a berrar.
— Cento e setenta e dois, e isso não é sadismo, é a verdade — sua expressão era estoica. — É a natureza de Lena, a deusa criança sofrerá enquanto houver sofrimento.
— Chame como quiser Tanna-Toh, você ficar olhando e contando seja lá o que; é bizarro.
A criança choramingando agarrou a barra das vestes da deusa do conhecimento, que afagou a cabeça da pequenina. Em meios aos seus soluços voltou a soltar um grito sofrido, agora abafado contra a roupa da mais velha.
— Cento e setenta e três, e não é bizarro, são as páginas da história sendo escritas. É conhecimento. É minha essência, não posso mudar.
— Eu mudo o tempo todo, nunca entendi por que você insiste em dizer que somos imutáveis — cruzou os braços colocando o peso sobre uma perna, aguardando uma resposta. Estava inquieta, como sempre.
— Essa é a sua forma de ser estática. Sempre querendo algo novo e nunca ficando satisfeita. Você nunca terá o que deseja, Valkaria, pois você sempre estará desejando algo. Essa é sua essência.
Lena se recompôs por uns instantes e encarou a deusa da ambição. Fez menção de falar, mas as palavras se enrolaram em sua língua. Voltou a enterrar o rosto nas roupas de Tanna-Toh e a soluçar. Algo a deixava triste e desolada.
— Cento e setenta e quatro — a senhora continuava a contar.
— Eu sou a rainha do Panteão! — vociferou irritada, com o choro e com a deusa das bibliotecas.
— E agora? Qual é o próximo passo? — um sorriso malicioso pintava os lábios da deusa do conhecimento.
— Não sei ainda — mentiu. Valkaria sempre sabia o que queria, e sempre queria algo diferente.
A criança secou suas lágrimas com a manga de seu vestido e encarou a deusa da ambição novamente. Falou com uma voz doce, mas embargada. Seu rosto estava vermelho de tanto chorar.
— Por que ela não para tia Val? A moça lá em baixo, por que ela não para! — gritou e voltou a chorar.
— Cento e setenta e cinco — Tanna-Toh cantarolou, acariciando a cabeça da deusa da vida.
— O que deu nela?
— São suas devotas, ela chora pelo que está acontecendo com elas.
— Estão sendo mortas? — para Valkaria, deusa dos aventureiros, a pergunta soava cotidiana.
— É claro que não é por isso — divertiu-se. — Se fosse, ela aceitaria. Afinal, a morte faz parte da vida. Início, meio e fim. É o ciclo da vida e ele não amedronta a criança da lua.
Com um último choro alto, Lena começou a se acalmar. Ela fungava e reclamava baixinho. Limpou parte da sujeira do rosto nas roupas de Tanna-Toh, que pareceu não se incomodar, e sentou-se no chão. Respirou fundo várias vezes, retomando o controle de suas emoções. Sua expressão era triste e logo ela começou a remexer na terra com graveto próximo, distraindo-se.
— Cento e setenta e seis, então — a deusa do conhecimento anotou o valor em um pergaminho que surgiu a sua frente, tão logo quanto surgiu, ele se desfez em uma nuvem de poeira mágica.
Valkaria começava a ficar impaciente. Balançava a perna e passava a mão pelos cabelos que agora eram de um rubro intenso. Era difícil ficar parada, não era de sua natureza. Balançou a cabeça afastando esse pensamento, não queria concordar com Tanna-Toh.
— Quando alguém morre, ou é morto, Lena se entristece — a deusa professora começou — , mas isso não a desespera. Quando suas filhas ferem e tiram vidas, aí é que Lena conhece o verdadeiro medo. Morrer, todos morrem, e disso ela bem sabe. É preciso estar vivo para morrer, afinal. Mas quando suas acolitas machucam e matam, a sensação de abandono e traição que ela sente é demais, não consegue suportar e sofre.
— Se ela não desse bola para isso não sofreria! — a conversa irritava a líder do Panteão.
— Ela é a vida, Valkaria. É a clemência, o perdão, a redenção. Ela alivia a dor, não a causa. É isso que ela é, e isso não pode ser mudado.
— De novo isso? Você é persistente, viu?!— virou de costas para as outras deusas, olhando-as por cima do ombro, sua coroa brilhando. — De qualquer forma, só vim até aqui por que o choro de Lena podia ser ouvido de todo o universo. Até mais criança da lua, nos vemos por aí, Chata-Toh.
A deusa da ambição se afastou enquanto sua armadura mudava para um gibão de peles e seus cabelos ficavam castanhos. Tanna-Toh a observava e sorria, pois Valkaria jamais aceitaria que ela também era imutável.
Pois ela, era desafio.
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A terra estava arrasada. Os sobreviventes se ajudavam e procuravam por qualquer pessoa que ainda respirasse. Os heróis daquela batalha estavam vibrantes e festejavam aquela vitória. Não imaginaram que conseguiriam resistir por tanto tempo, ainda mais contra tantas tropas. A ordem da luz havia trazido a alvorada e, com ela, a vitória. Contudo, um membro desse seleto grupo de elite, que havia resistido a noite inteira, não estava ali.
Afastada, em meio a destroços de madeira e com dezenas de duyshidakks mortos a seu redor, a dahlan abraçava o próprio corpo. Chorava inconsolada, com frio e as mãos tremendo.
Ela havia traído Lena e sua deusa tinha a abandonado.