Estranho

Diogo Stone
6 min readSep 3, 2021

As areias escaldantes do deserto eram palco de uma perseguição implacável. O menino, com não mais que dez verões, de pele escura e cabeça raspada, arfava e corria aos tropeços. Sua visão saltava entre o oásis a frente, salpicado por carroças e pessoas, e seus perseguidores — uma dupla de rapazes que, apesar de aparentarem ter a mesma idade que o garoto, deveriam ter em torno de um metro e setenta de altura. Os dois riam e se puxavam para ver quem chegaria até a presa primeiro.

Faltando pouco menos de cinquenta metros para chegar a primeira carroça, um dos caçadores saltou sobre o garoto. Caíram e rolaram pela areia como cães se engalfinhando, deixando um rastro de pó que se erguia por onde passavam.

— Porcaria! Perdi de novo! — Exclamou o grandão que chegava correndo no encalço dos dois caídos.

— Mennar, o rápido, venceu mais uma vez! — Vangloriou-se o outro grandalhão se levantando.

— Ai minhas costas — reclamou o garoto menor.

Mennar tinha a pele cinza-azulada, cabelo grosso e volumoso rente a cabeça e riscos azuis percorrendo o comprimento de seus braços; agora erguidos, clamando sua vitória naquela perseguição. O outro, se não fosse os braços cobertos por pinturas em padrões espirais, seria praticamente impossível de distinguir do primeiro.

— Você quase chegou na caravana antes da gente, Lo-Gal — o grandalhão que perdeu a corrida falava enquanto oferecia a mão para que o menino levantasse.

— Obrigado, irmão — agradeceu aceitando o auxílio e se colocando de pé. A diferença de altura entre eles era gritante. — Você é Gauth, o incansável. Não deveria estranhar perder pro Mennar.

— O estranho é seu título, não o dele — caçoou o vencedor, que agora era fuzilado por um olhar irritado.

— Eu não sou estranho, cacete!

O rapaz, agora aparentando ter em torno de dezesseis verões, se encontrava sentado em uma pequena mesa. Olhava através de uma janela, cansado e maravilhado. Havia deixado o calor das areias do deserto para trás quando completou quinze ciclos, pois assim tinha decidido o acaso. Criado por uma tribo de golias, a imprevisibilidade do acaso foi o que os levou até ele quando ainda era um bebê — sozinho em meio aos destroços de uma carroça. E esse mesmo destino, agora, o trouxera até aquela grande cidade.

Por mais esforço que fizesse, não conseguia se recordar do nome dali. A língua local era esquisita, sibilante e bruta. Dracônico ou algo assim, não tinha interesse em aprender. Sua atenção foi dragada por passos pesados de botas metálicas adentrando a sala. Seu mentor, um senhor de pele enrugada, fronte preocupada e uma espessa barba grisalha, estava acompanhado de um oficial pesadamente equipado.

O soldado removeu seu elmo, exibindo um rosto quadrado, salpicado de escamas vermelhas e adornado por olhos púrpuras vibrantes e cabelos castanhos cortados perfeitamente alinhados.

— Então este é o pupilo estranho — sua voz era como um rosnado — , como ele se chama?

— Estranho o caralho, e você pode perguntar pra mim, sabia?

— Indisciplinado… — o soldado resmungou devagar, se aproximando do rapaz a passos lentos.

— Lo-Gal, ele se chama Lo-Gal — o senhor de idade disse se apressando a ficar entre o oficial e seu aprendiz.

O homem de armadura parou, encarando o idoso com seriedade. Seus olhos ardiam como chamas que incendiariam uma cidade, tamanha sua ira.

— Pois trate de domesticá-lo! — Vociferou. — Um desgraçado que foi acolhido moribundo nas ruas, e dado um emprego sagrado em nossa cidadela Draxin deve, no mínimo, aprender a respeitar os escolhidos de Tiamat!

— Perdão, Sir Vorkax. — O mais velho suplicava com uma reverência. — Ele é jovem e tolo, todos somos nessa idade. Garanto que ele não repetirá o erro de permitir que os filhotes vermelhos brinquem com os brancos.

O garoto olhava a dupla discutindo com a cara emburrada, mas prestou-se a não reclamar. O soldado, colocando novamente o elmo, virou-se para partir. Mas antes disso, falou em tom de ameaça:

— Ensine-o seu local em Draxin, agora ele pertence a cidade.

Mal o oficial havia se retirado da sala, a dupla mestre e aprendiz também partiu. Draxin era uma cidade erguida sobre uma montanha. Um local forjado em pedra, metal e sangue. Os cavaleiros, as pessoas escolhidas pelos dragões, eram a alta sociedade local. A nobreza. Comandavam tudo e todos. Decidiam quem vive, quem morre e com o que cada um trabalha.

Ao menos, essa era a lição que o senhor tentava ensinar ao jovem Lo-Gal. Desde que fora resgatado, passava seus dias em um monastério afastado do centro barulhento e fedido de Draxin. Lá, monges como seu mentor tratavam doentes e treinavam suas mentes, corpos e espíritos.

Muitos dedicavam suas vidas a cuidar das pessoas dali em nome de Tamara, uma deusa dracônica de luz, perdão e piedade. O que era um contraste gritante entre as renomadas casas nobres da cidade, servas de Tiamat. Contudo, Lo-Gal não procurava entender a política daquele local, pois um dia o acaso o levaria para onde seu destino apontava e tudo aquilo seria irrelevante.

— Espero que você pare de procurar problemas, rapaz. O oficial Vorkax não costuma dar segundas chances.

— Então aquele babaca que não me chame de estranho de novo. Só por que ele anda por aí enlatado e foi escolhido por um dragão ele acha que é o que? Deus do sol e da terra? Calimsha de Draxin? Senhor da montanha? Pois ele pode lamber a caralha das minhas botas! A gente brinca o dia inteiro com os filhotes! Nós que alimentamos, cuidamos e damos carinho pra depois vir um imbecil, idiota e arrombado, que nem ele, e transformá-los em máquinas! A sua verdadeira forma e esplendor — as últimas palavras saíram com a voz rasgada, tentando imitar o rosnado de Vorkax.

O senhor abriu um sorriso, rindo baixinho enquanto era alfinetado por um olhar confuso do rapaz.

— Seu coração reside no lugar certo, mas sua língua precisa de uma rédea! Ninguém leva a sério alguém que perde a linha desse jeito. Lembre-se. Corpo, mente…

— …e espírito como um só. Um corpo saudável, uma mente limpa e um espírito leve. — O jovem completou.

Caminharam por cerca de uma hora. Não falaram muito no caminho, Lo-Gal tinha muitas dúvidas e muito no que pensar. Finalmente alcançarem as portas do monastério, onde um árduo trabalho os aguardava dia após dia. Era cansativo, começava cedo e acabava muito tarde. Os filhotes de dragão eram de diversas cores e, por mais que as aulas teóricas insistissem em ditar personalidades específicas que cada um teria dada sua escala cromática, o jovem reconhecia os trejeitos únicos de cada um.

O monastério dedicado à Tamara era, além de tudo, um berçário de dragões.

O vento rugia como um leão. As tapeçarias balançavam com intensidade e flocos de areia saltavam para dentro da taverna vez ou outra. Entretanto, nada daquilo parecia intimidar qualquer presente.

Sentada em uma mesa, uma mulher de longos cabelos negros, com o rosto adornado por uma argola dourada no nariz e lábios finos, ria alto.

— Ah, Shin. Aí eu não consigo acreditar, não.

— Yshna — o homem calvo, a olhava de braços cruzados e olhar indignado — , algum dia eu menti pra você?

— Uma cidadela de cavaleiros de dragão — ele assentia a cada afirmação — , construída em uma montanha, por devotos ao panteão dracônico e que convenientemente fora arrasada em uma guerra sem deixar rastros? Se eu não te conhecesse, diria que está tentando me impressionar.

Levando as mãos ao rosto, Shin respirou fundo e soltou um longo suspiro. Balançando a cabeça negativamente e pegando o copo a sua frente, deu de ombros antes de continuar.

— Você quem perguntou por que eu escolhi meu nome. A história é essa aí, quer você acredite, ou não.

Bebeu antes de voltar a sorrir e encarar a amiga. Contudo, notou que o semblante risonho dela havia se tornado taciturno. Antes que pudesse perguntar, ela já dizia:

— Por que tudo sempre termina com guerras e destruição? Por que aqueles que podem resolver as coisas e dar dignidade as pessoas, nunca o fazem? Por que não há conversas? Ou entendimento? Inclusão? — Encarou o amigo antes de terminar. — Por que todos no palácio me acham estranha por pensar assim?

A cada pergunta, o sorriso do monge ficava mais sereno.

— Com o tempo, você irá perceber que, por estar certa, normalmente será vista como uma estranha.

Os lábios finos da mulher se torceram em um riso entristecido.

— Você é estranho.

— Eu sei.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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