Guardião

Diogo Stone
6 min readOct 29, 2021

Calor. Foi a primeira coisa que pensou quando acordou. Abriu os olhos com dificuldade e, ainda de bruços, moveu os braços com esforço. Suas costas ardiam como o inferno e, em meio a reclamações abafadas, finalmente conseguiu se colocar de joelhos. O rosto comprido do homem estava sujo de terra e seus cabelos castanhos, meticulosamente aparados, estavam revoltos. Levou as mãos às costas e o chacoalhar de metal roçando metal soou alto. Não havia sangue e sua armadura estava intacta — impecável, na realidade. Levou a mão até o peito, até a medalha de Khalmyr, baixou a cabeça e fez uma prece rápida. Suspirou.

Levantou o olhar e deu um sobressalto, assustando-se com a presença de alguém que não estava ali antes.

— Opa, eita. Calma aí, tá tudo bem — o jovem dizia sorrindo. — Joji, Hinjo Joji. É um prazer Gale. — Completou levando a mão à frente para cumprimentá-lo.

O paladino encarou a mão estendida do qareen e o olhou de cima abaixo. Usava roupas leves, mas vestia um corselete de couro rígido. Seu braço possuía diversas tatuagens púrpuras que formavam um padrão de relâmpagos, mas o que mais chamava atenção era seu rosto. As feições delicadas, finas e belas, eram adornadas por cabelos roxos e uma cicatriz que esbranquiçava o olho esquerdo. Sem contar o chifre solitário que se erguia no alto esquerdo de sua cabeça. Contudo, como um bom servo dos deuses, não pudera deixar de notar que o rapaz carregava um brasão de Thyatis pendurado ao pescoço.

— Gale — disse aceitando a mão de Joji. — Gale Harvey, servo de Khalmyr.

— Eu sei, as chamas me disseram.

O cavaleiro virou para trás e se perguntou como não havia notado a enorme pira que queimava ali. O fogo balançava e crepitava e notou que via a si mesmo refletido nas labaredas. Mais especificamente, via seu corpo inerte sendo carregado.

— E-eu morri? — sua voz soou preocupada, mas não espantada.

— Não há morte — o rapaz respondeu com seriedade. — As chamas são lindas, não é? Digo, não só por que são a representação viva de Thyatis, mas elas dançam e pintam a nossa vida lá em Arton; como um verdadeiro artista.

Artista. O paladino lembrou de um amigo ligado à música, um que insistia que a honra era a única forma de se manter a ordem. Sua cabeça latejou enquanto se lembrava do que acontecera antes de acordar ali e visões embaçadas povoavam sua mente. Magos, um homem traído, assassinos.

— Duas facadas nas costas devem doer pra cacete — Joji disse, arrancando Gale de seu transe.

— Como você sabe disso?

— Um passarinho me contou — o rapaz falava sorrindo. — Mas nem tudo está acabado. A ressurreição é uma dádiva que meus irmãos de fé fornecem de bom grado. Digo, alguns tem a cara de pau de cobrar, né? Mas eu jamais julgaria as decisões que as pessoas tomam para sobreviver.

— Somente o julgamento de Khalmyr é inexorável — Gale concluiu.

Joji deu de ombros. O paladino apertava as mãos inquieto, faltava um peso sobre elas — uma montante de peso. O qareen olhava para o homem de soslaio enquanto ele tentava compreender o que aquilo tudo significava. Logo, começara a ouvir prantos e um coro de vozes conhecidas.

— Veja só, o ritual não está dando muito certo.

No fogo, podia-se ver a imagem de um elfo irritado gritando com um acólito da igreja de Thyatis. Ele bradava algo inaudível, mas Gale podia ouvir em sua mente as palavras com exatidão: “Por que?! Por que ele não volta?!”

— Eeeentão — o rapaz começou. Atrapalhando a concentração dele mais uma vez, impedindo-o de ouvir mais vozes. — Você não vai voltar, não? Digo, as súplicas e as vozes vão parar se você ficar aqui também, mas essa é a sua chance. Sua segunda chance.

— Eu — mordeu os lábios pensativo — não devo. É a ordem natural das coisas. Seria justo com aqueles que não tem a oportunidade dessa dádiva?

Joji fez um muxoxo.

— Nem todo mundo recebe uma segunda chance assim — gesticulava para a imagem do clérigo nas chamas, falhando em trazer Gale de volta. — Nem todos precisam passar pelo trauma da morte. Quem sou eu pra dizer quando Thyatis concedeu uma nova oportunidade?

— Quem sou eu para me julgar digno de uma nova oportunidade?

O qareen fechou a cara.

— Todos são. Do mais simples camponês até o mais honrado herói. As chamas não veem credo, intenção ou objetivos. Elas queimam todo mundo por igual; e assim é a dádiva da fênix. Seu destino era mesmo morrer esfaqueado por um bando de ladrões covardes numa mina anã abandonada?

Silêncio. Gale ficou encarando a expressão dura de Joji por um longo momento. O bruxulear da pira despejava sombras sobre seu rosto e, em qualquer intensidade de luz, a face dele era impecavelmente bela. E isso o incomodava por algum motivo. Ouviu mais uma vez uma reclamação vinda de uma voz conhecida: “O que vamos falar pro Joca?!”. Cerrou os punhos.

— Não importa.

— Ah, pronto — disse revirando os olhos. — Veja bem, seus —

— Já chega. — Uma terceira voz, altiva e austera, interrompeu Joji. — Harvey tem razão. É a ordem natural das coisas e você não deveria tentá-lo além de seus anseios, Thyatis. A alma dele pertence a Ordine, surpreende-me ter que vir até aqui lembrá-lo disso.

O qareen ergueu as mãos em sinal de trégua. Seu rosto, agora, estava mais sério do que jamais estivera.

— Eu jamais desafiaria as leis do universo, Khalmyr. Contudo, devo salientar que eu sou a ressurreição. Você mais do que ninguém entende que não podemos negar aquilo que somos. Se nossos filhos bradam pelo retorno de uma alma, é meu dever certificar-se de que ela ainda não cumpriu seu destino.

O homem tentava formular palavras, mas não conseguia. Estivera falando com um deus todo aquele tempo? E agora seu patrono estava ali? Por fim, o paladino apenas conseguiu cair de joelhos enquanto suplicava de cabeça baixa.

— Pe-pe-perdoe-me, ó cavaleiro dentre o-os cavaleiros; Juiz entre os d-deuses. — Suspirou. — Eu falhei em minha missão.

Apenas o crepitar das chamas se ouviu até que Gale tomou coragem para erguer a cabeça. As duas figuras continuavam ali, olhando-o.

— Fique de pé, meu filho. Aceito sua falha como um ato de bravura. A vitória a todo custo é um preço que os bons corações não estão dispostos a pagar.

Joji, que também era Thyatis, andou até as chamas. As imagens do fogo não haviam cessado e, nesse momento, o corpo de Gale era queimado numa pira funerária. Colocando as mãos entre as labaredas, o qareen sacou uma montante de adamante, soprou-a e esticou seu cabo na direção do paladino.

— Creio que precisará disso. — Harvey aceitou-a com uma reverência ao deus da profecia. — Seu destino não está mais em Arton. Ainda não.

O homem franziu o cenho, mas antes que pudesse perguntar, Khalmyr começou:

— Você irá para Ordine comigo. Há muita coisa em jogo no momento; coisas que põe em xeque a ordem não só em Arton, mas em toda a realidade. Sua partida foi feita sob prantos e lamúrias pois foi precoce, admito. Mas não é um momento para nos atermos as frivolidades da vida. Será preciso os melhores campeões entre os melhores heróis, como você. Seu dever de agora em diante será treinar como nunca o fez antes para se tornar um membro da elite de guerreiros mais importantes do universo. Para se tornar um guardião da nossa realidade.

Um calafrio percorreu o corpo do paladino. Gale tinha uma missão divina, mas, dessa vez, não fora proferida por uma ordem de cavaleiros; ou por presságios; ou em forma de parábolas. Era direta, incisiva e vinha de seu próprio patrono. Haveria um conflito e ele seria um soldado.

Era difícil resistir ao impulso de cair em prantos pela força massiva dos dois celestiais que o observavam enquanto ele desviava o olhar para as chamas. Podia ver o rosto de seu amigo élfico contorcido e em prantos. Fechou os olhos e respirou fundo antes de voltar a encarar Khalmyr.

Assentiu.

O juiz estendeu a mão para ele, mas pouco antes de Gale tocá-la, Thyatis disse:

— Não se preocupe com seus amigos, eles ficarão bem até você voltar.

— Pera, volt- -

Um clarão interrompeu a pergunta do paladino e despertou Joji de seu sono, que sentou arfando em sua cama. Olhou para os lados e viu que o rapaz e a moça, com quem aproveitara a noite anterior na taverna — e no quarto — ainda dormiam. Atirou a cabeça para trás, suspirou e escorregou para fora da cama com o corpo ainda dormente. Parou em frente ao espelho e viu que — além de estar vestindo apenas seu medalhão da fênix — o interior de seu olho esquerdo brilhava com uma pequena chama. Abrindo um sorriso, riu dizendo a si mesmo.

— Se quiser me usar, Thyatis, pelo menos paga a janta, né?

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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