Honra
Era uma tarde amena, mas o firmamento encoberto denota a chuva se aproximando. O tamuraniano caminha calado pelas terras, enquanto sua mente invoca fantasmas de um passado não muito distante. Podia ouvir a voz esbaforida de seu amigo à porta, arfando enquanto tentava explicar do que fugia.
— Armaram para mim, Zanshin! — a voz repetia em sua mente — o senhor Takahashi colocou minha cabeça a prêmio!
Myuamotto era seu amigo de infância. Duvidava que o homem tivesse feito qualquer coisa contra a honra de seu mestre. Para samurais como eles, o dever e os ensinamentos de Lin-Wu eram mais importantes do que qualquer coisa. Mesmo assim, lembrou da promessa que fez ao amigo.
— Deixe sua katana comigo. Direi que quando você ficou desarmado, saltou de um penhasco por medo da morte pela lâmina, assim você será um homem morto. Porém, será livre. Lin-Wu pode não perdoar essa desonra, mas eu acredito em você, e não poderão rejeitar a minha palavra.
Sorriu ao lembrar do acontecido. Desde que retornou a Tamu-Ra — e fora acalmado como filho legítimo do deus dragão de jade — poucas pessoas tinham mais influência na ilha do que Zanshin. Essa lembrança atingiu-o como uma flecha. Pois recordara que o retorno a sua terra foi a seis verões, e que essa foi a última vez que tinha visto a dahlan Prunna, e que até hoje não sabe o que aconteceu com ela. Mas preferiu afastar a terrível lembrança daquele dia rubro se perguntando: como a elfa Sedrywen ou o falastrão do Mu estavam lidando com o pequeno Enki? Semi-deuses têm o costume de tornar as coisas mais difíceis, pensou acusando a si mesmo.
Um trovão ao longe atraiu a atenção do tamuraniano, seus olhos amendoados encararam o céu que começava a chorar suas primeiras lágrimas nesse dia triste. Faziam quatro dias desde que um camponês trouxe a notícia de que seu amigo havia falecido. Zanshin havia conseguido um local para que Myuamotto pudesse viver escondido, já que para desgosto do filho de Lin-Wu, ele se negou a deixar Tamu-Ra. Depois que a poeira havia baixado, eles haviam se encontrado uma última vez. Na ocasião, devolvera a katana do homem, sob a promessa de que jamais a utilizasse novamente. Pois isso poderia colocar em risco a integridade de todos que amam.
Aproximava-se lentamente do túmulo que havia sido erguido para Myuamotto. Um local bonito, próximo a uma encosta íngreme que dava para o mar. Num dia limpo, certamente teria uma vista maravilhosa. À distância, avistou a pedra que provavelmente trazia um sobrenome falso incrustrado, mas notou a katana depositada junto a lápide.
Curiosamente, havia uma criança próxima ao túmulo. Conforme se aproximava, notou que não era uma criança, mas sim um goblin. Apertara o passo por instinto, e quando o goblin pegou a katana em suas mãos, Zanshin já estava correndo antes mesmo de perceber.
*****
— Ei! — bradou o tamuraniano com os músculos retesados e a mão sobre o cabo de sua espada. — O que faz tomando algo que não lhe pertence?
Calmamente o goblin ajoelhado deposita a katana embainhada distante de si e lentamente se volta para o recém-chegado.
— Perdão, nobre senhor — clamou com uma voz grossa e séria demais para um goblin, que após uma longa reverência tornou a dizer. — Estava prestando minhas últimas homenagens a meu sensei, que Lin-Wu o receba de braços abertos.
Zanshin perdeu uns segundos examinando o pequenino. Tinha um nariz exageradamente avantajado e um cabelo cortado no estilo tradicional dos samurais. Em seu pescoço e ombros, onde suas vestes não cobriam, podia ver algumas escamas esverdeadas. Nada de excepcional para um goblin.
— Myuamotto não tinha aprendizes — cuspiu.
— O senhor conhecia o mestre, então você só pode ser… — os olhos do goblin se arregalaram antes de enterrar sua face contra o chão. — Perdoe-me! Não sou digno de falar na presença do filho de Lin-Wu! Perdoe-me Himekawa Zanshin, senhor de…
— Não, para. Para com isso — mesmo depois de anos, o tamuraniano ainda ficava envergonhado quando desconhecidos o tratavam de maneira tão cordial. — Se você era amigo de Myuamotto, também é meu amigo. Como você se chama?
Desenterrado a face do gramado, o pequenino se ajeita e pigarreia antes de começar.
— Douglas. Douglas Myuamotto. Um nome incomum é o que todos dizem. Por isso me chamam de Do-Myu. Mas foi o nome que meu mestre escolheu, e farei tudo que estiver ao meu alcance para honrá-lo. Assim, quando morrer, talvez eu renasça em um corpo digno de servir ao grande e único imperador, o dragão de jade. Pois hoje, não sou digno desta honra.
Uma garoa fina servia de música de fundo para o silêncio que se instalou entre os dois.
— Morrer para ser digno? Isso não faz o menor sentido — concluiu balançando a cabeça.
— Era o que mestre Myuamotto dizia. Goblins não podem ser servos do imperador dragão. Por isso, levar uma vida justa e correta é o único caminho que posso seguir. Pois na próxima volta da roda celestial, o destino poderá me prover do corpo necessário para servir ao grande Lin-Wu.
— Por que morrer para provar algo!? — incrédulo, Zanshin acaba vociferando sem querer. — A morte não traz a honra, nunca trará! Por que essa ideia medíocre segue profunda no ideal do bushido? Eu livrei o pescoço de Myuamotto por saber que a honra não seria encontrada em sua morte!
— Perdoe-me se lhe irrito com os ensinamentos de meu mestre, mas ele deixava bem claro que a roda celestial gira para que possamos buscar a redenção pelos erros que cometemos. E em cada ciclo, uma nova vida nos é dada para corrigirmos nossas falhas — o goblin seguia impassível.
— É a morte que você busca — a face do tamuraniano enrijeceu. — Então pegue a katana de Myuamotto e duele comigo. Até a morte.
Os olhinhos de Do-Myu se arregalaram mais uma vez.
— Perdoe-me, Himekawa-sama. Mas eu não sou digno de enfrenta-lo em um duelo — comentou enquanto encarava o chão novamente.
— Cometerias a desonra de recusar um duelo de alguém de uma casta superior? Myuamotto Douglas, levante-se e duele comigo. Isso é uma ordem — a voz de Zanshin soando firme.
Lentamente o goblin se pôs de pé. Pegou a katana que havia deixado de lado e encarou de volta o tamuraniano. O pequenino desembainhou a espada, uma obra prima feita por um artesão local. A lâmina curva começava em um belo punho feito de couro com uma guarda adornada no formato de um dragão de jade. Segurando-a com ambas as mãos, aproximou-a do rosto dizendo.
— Finalmente chegara o dia de minha morte. Mas irei lutar com a bravura digna de Lin-Wu.
O samurai mantinha uma postura firme, com as costas retas e a mão repousada sobre uma de suas katanas. Do-Myu iniciou seu avanço contra Zanshin, que se manteve imóvel. Estoico.
A chuva agora caía farta, uma torrente sobre os ombros dos homens que iniciavam o duelo. Conforme se aproximava, era possível ver a espada sendo imbuída por algum tipo de poder místico. Relâmpagos cobriam a lâmina reluzente da katana e — sobre o som água acoitando o gramado — a voz grave do goblin ressoava recitando o golpe que aprendera de seu mestre.
— O imperdoável julgamento tempestuoso verdejante do único e verdadeiro imperador, o grande dragão de jade!
Parando a centímetros do tamuraniano, o pequenino empertigou-se, brandiu a arma acima de sua cabeça e cortou em linha reta para baixo. Forte, imponente, preciso. Mas no último segundo, Zanshin balançou o corpo para o lado — espaçando as pernas e firmando a mão no cabo de sua própria espada — preparando seu ataque ao mesmo tempo em que escapava do de seu agressor. Um relâmpago irrompeu do golpe de Do-Myu, perdendo-se na direção de onde o samurai estava a uma fração de segundos. O estrondo pode ser ouvido à distância, mas o ribombar os envolveu em um curto silêncio que nem a chuva ousava quebrar. A voz de Zanshin soou como uma sentença de morte.
— Kessen Tanjou Ryuu - Inazuma — o golpe infalível de sua técnica. A lâmina saltou da bainha como um raio. Percorrendo uma curva perfeita em direção ao pescoço do goblin, mas parando a milímetros de sua garganta. O som da chuva enchia novamente seus ouvidos.
Com um balançar tradicional para limpar a lâmina, o samurai embainha sua arma.
— Você disse que seria até a morte! — reclamou Douglas.
— Mas eu mudei de ideia — Zanshin sorria.
— Lin-Wu não perdoaria uma desonra como essa.
— Os problemas com meu pai, eu resolvo quando me encontrar com ele.
Como se fosse atingido por uma pedrada, Do-Myu se lembrara que enfrentou um semi-deus. Filho do único e verdadeiro imperador, o grande dragão de jade, o deus que tanto amava.
— Se você acredita que sua existência na roda celestial o levará à honra somente na sua morte, fique sabendo que aos meus olhos você é uma das pessoas mais honradas e dedicadas ao seu código que já vi, Douglas-san — o tamuraniano estendeu a mão para o goblin, um gesto amistoso comum no continente de Arton. Boquiaberto o pequenino a apertou.
Juntos, prestaram suas últimas homenagens a Myuamotto e partiram em direção ao porto.
*****
O sol brilhava alto, iluminando um novo dia e novas esperanças. Zanshin caminhava livre pelo porto lotado, pois as pessoas se afastavam para dar passagem ao filho de Lin-Wu. Alguns se perguntavam por que alguém tão nobre estaria procurando um mero goblin. Um servo que havia fugido, ouviu cochicharem, mas preferiu ignorar. Finalmente avistou, sentado em uma cerca no cais, a figura esverdeada que buscava.
— Aí está você! Achei que iria embora sem se despedir — um sorriso largo pintava seu semblante.
— Perdoe-me, Himekawa-sama. Mas eu não sou dig…
— Para. Só, para com isso — os olhares dos locais estavam fixos sobre eles. — E voltem aos seus afazeres — concluiu em voz alta.
Num passe de mágica, os transeuntes voltaram às suas tarefas. Incomodava-o chamar tanta atenção. Preferia as estradas com seus amigos, onde podia ser só mais um aventureiro lidando com problemas de aventureiros. Problemas que ele próprio tentava esquecer.
— Só vim me despedir e lhe dar um presente — comentou entregando o estandarte de Lin-Wu que carregava.
— Perdoe-me, Himekawa-sama eu não sou dig… — mas o tamuraniano o interrompeu novamente.
— Se você dizer que não é digno de novo, eu terei que amarrar esse estandarte às suas costas — riu.
— Eu agradeço — o goblin sorria — de coração. Choro de alegria ao lembrar como esta terra me foi boa. Contudo, choro de tristeza por ter que deixá-la para encontrar a derradeira honra que busco.
— Pois não se sinta assim — dizia retribuindo o sorriso. — Arton pode lhe fornecer as melhores alegrias, as melhores histórias. E os melhores amigos — concluiu se lembrando dos seus.
O goblin se despediu e rumou para o navio que partia em direção ao continente. Deixando para trás Zanshin — que perdido em seus pensamentos — imaginava onde e como estariam seus queridos companheiros.