Lágrimas Agridoces

Diogo Stone
6 min readJan 5, 2021

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Um doce de morango; simples, mas delicioso. Arte pelo @DiogoFerreiraC9.

Azgher brilhava brando pelas janelas, reluzindo nas bancadas metálicas da cozinha. Em um canto, uma gata amarela repousava abraçada à um autômato de mesmo formato. Um pequenino dormia com o rosto sobre a mesa suja de farinha, gorad e açúcar. Muitos haviam sido os protestos de que ele deveria descansar e dar tempo para assimilar a perda recente, mas o hynne teimou que era necessário o que fazia. Encontraria a receita correta para homenagear o amigo, e faria aquilo naquela noite.

Havia conseguido e, agora, dormia ruidosamente enquanto a manhã nascia calma lá fora. Depositado a sua frente, alguns doces recém feitos descansavam. Eram simples, mas saborosos e cheios de significado. Eram morangos envoltos em uma calda de gorad derretido, transformando-o numa iguaria suculenta. Doce como a voz do amigo que partira, ácida como sua despedida e simples como seu sorriso.

ANTES.

A paisagem, que também era o solo, parecia uma mistura de carne, cascas insetoides e muco. A chuva, que também era o ar, invadia seus pulmões e ardia como o inferno. Sentiam como se fossem morrer, mas até mesmo isso tinha um significado diferente ali. Estar vivo e ser vivo não tinha diferença alguma. Tudo é lefeu.

A criatura ria dos cinco aventureiros. Havia os enganado e os arrastado até aquela cena indescritível. Seres alados — que mais pareciam uma mistura de baratas e louva-deus — atacavam o grupo com adagas grotescas que pareciam apêndices dos próprios corpos. O grupo não tinha mais motivos para lutar mais, só precisavam sair dali.

— Fujam! Vamos sair logo daqui! — a voz de Seth soava abafada, como se a realidade brigasse para suprimir suas palavras.

Com uma sequência de cortes precisos e limpos de sua katana avermelhada, Dumas colocara a criatura que ria deles sobre um joelho. Deveria bastar para dar espaço à fuga.

— Não percam tempo! — o guerreiro bradava enquanto corria e tropeçava nas poças de ácido — Vamos!

A dupla se afastou da criatura enfadonha que se erguia. Com estalos e grunhidos, mais uma vez, colocou-se sobre as duas pernas. Não que ainda pudessem ser chamadas assim. Duas protuberâncias tortuosas num ângulo que não existia sustentavam seu corpo massudo. O que um dia pareceu um peitoral humano, agora era uma bocarra que lambia os lábios sentindo o gosto dos aventureiros que corriam por suas almas.

Um dos rapazes se virou e fixou o pé no chão. Puxou a corda de seu arco, o Barão Vermelho, carregando-o com duas flechas ao mesmo tempo. Um movimento fluido e ritmado, treinado a exaustão.

— Devon! Tá maluco!? Continua a correr — a voz aguda de Dumas gritou se perdendo na distância incalculável que separava os dois.

— Só existe um papai noel em Arton — o rapaz disse para a criatura — , e esse alguém sou eu!

As duas setas foram precisas. Uma em cada orifício onde, um dia, os olhos do monstro estiveram. Os vários cortes e ferimentos foram demais até para aquilo suportar. Cedendo sobre o próprio peso, a coisa corpulenta caiu com o estrondo de um trovão. O ambiente pareceu gritar de dor. O ar que preenchia seus pulmões e ouvidos reclamava. Mas não era hora de comemorar aquela pequena vitória; ou a vermelhidão ainda os engoliria.

— Vocês estão bem? — o sotaque esquisito do hynne era ainda pior de entender quando misturado a anti-realidade.

— Está tudo bem senhor Fingo, vamos dar o fora daqui o mais rápido possível — era Seth.

— Valeu pela mão lá atrás Yam, você tinha razão sobre onde acertar naquilo — Dumas agradecia ao bardo enquanto corriam. Ele apenas forçou um sorriso.

Não tinha sido fácil chegar ali e voltar não seria diferente. O espaço-tempo parecia distorcer à medida que corriam. Às vezes davam cinco passos e pareciam dez, as vezes corriam pelo que parecia horas, mas não se moviam. Chovia ácido vermelho dos céus e até mesmo as preces que Seth havia feito a Kallyadranoch pareciam não ter poder o suficiente frente a atrocidade lefeu.

— Pessoal dá um tempo aqui — o bardo parou o grupo em um dado momento — , eu posso me arrepender disso, mas vou dar meu melhor aqui por nós.

Tocou um acorde sofrido em seu alaúde, cantarolou baixo e a tatuagem mística em seu braço brilhou em um azul forte, contrastando com todo aquele vermelho. Clérigos restauravam a moral e ferimentos suplicando aos deuses; Fingo poderia tentar copiá-los com suas delícias culinárias; mas aquela luz acalentadora não vinha só da música de Yam. Vinha da alma do bardo. Da paixão pelos seus sonhos, por seus companheiros e pela vida.

— Isso deve nos manter de pé— todos entreolharam-se aliviados, a caminhada ainda seria longa e curta e rápida e demorada e quente e fria. Tudo ao mesmo tempo e em tempo nenhum.

Não demorou para que a sensação de estarem desorientados voltasse e, com ela, uma vermelhidão inebriante. Os pés enroscavam em tentáculos, pisavam em cavidades mucosas, escorregavam em gordura, queimavam as mãos em poças ácidas que pendiam de paredes invisíveis. Tudo que viam era vermelho e nem um palmo além disso. A temperatura oscilava e, a cada intempérie, era preciso colocar Devon de pé novamente e estancar alguma queimadura.

O grupo estava desistindo, definhando, falhando. O bardo respirou fundo. Precisava tentar agora, pois logo não teria forças para fazê-lo.

— Amigos. Não vou dizer que já estivemos em situações piores, pois nunca estivemos tão chafurdados em matéria-vermelha como agora. Mas eu já sobrevivi a tormenta e lhes garanto que sairemos daqui. Ilesos, seria errado dizer, mas eu lhes asseguro que conseguiremos. Confiem em mim. Enquanto eu respirar, posso nos guiar através desse mar de abominações e desgraça. Tenho convicção de que chegaremos a Valkaria mais uma vez. Dumas e Seth, vocês poderão ver sua filha mais uma vez. Devon, você já negou a tormenta uma vez, e fará isso novamente. Fingo, você ainda tem muito trabalho pela frente para desistir agora.

Um a um, os aventureiros foram sacudindo os devaneios para fora do corpo. Respiraram fundo e afastando a insanidade de suas mentes. Logo voltaram a a correr com intensidade renovada. Yam mentira, claro. Não tinha convicção de nada do que disse. Ele não fazia a menor ideia de como sairiam dali. Temia a morte e, seu maior medo — o de falhar e isso acabar matando algum de seus amigos — se aproximava cada vez mais.

Mas o importante é que havia dito tudo aquilo com convicção e que haviam acreditado nele.

Os aventureiros estavam correndo a uma década, ou assim pareceu naquela zona onde o tempo havia sido consumido e distorcido. Um frio intenso e a chuva forte e ácida desacordou metade do grupo, mas Seth e Fingo fizeram o possível para manter todos de pé. Então a tormenta esquentou. E esquentou e esquentou. Ferveu como uma coisa só — árida e implacável.

Quando não havia mais esperança, uma paisagem diferente despontou no horizonte. Verde e chamativa em meio ao breu vermelho.

— Finalmente! — a voz do bardo saiu tão baixa que nem pode ser ouvida.

Arrastando-se, Devon pôs Seth de pé novamente. Os dois ajudaram Dumas a se levantar e, então, o clérigo colocou Fingo — ainda menor do que o comum — em sua mochila. Por fim, tomou Yam nos braços e se dirigiram a passos penosos para fora daquele inferno.

O bardo assistiu à toda aquela cena dali mesmo, pairando nas bordas da insanidade lefeu. Já podia sentir a matéria-vermelha começando a tomar conta de seu espírito, destruindo-o. Viu seu antigo corpo inerte e mole sendo carregado para fora, mas já não lhe pertencia mais.

Sorriu triste, pois nunca poderia se despedir de seus amigos. Contudo, havia superado seu medo. Suas ordens e palavras encorajadoras, mesmo que não fossem verdade, inspiraram o grupo a deixar aquele lugar com vida. Mesmo que, para isso, sua alma tivesse que ficar para trás. Condenada a tornar-se uno com a realidade aberrante.

Sua forma espectral, cada vez mais vermelha, franziu o cenho frente aquele pensamento. O que era sua alma? O que era seu, afinal? Balançou a cabeça fantasmagórica e avermelhada. Não importava mais.

Pois agora, ele era tudo. E tudo é lefeu.

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De Magika, Wynna observava um grupo sair às pressas de uma área de tormenta enquanto um homem carregava o corpo morto de um de seus filhos. A deusa, triste, olhou uma última vez para a alma de sua criança, que se fragmentava e deixava a realidade artoniana.

Naquele dia, ela derramou duas lágrimas: uma doce, como a voz do bardo; outra ácida, como a tormenta.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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