Lei, ordem e poder

Diogo Stone
5 min readFeb 18, 2021

Num piscar de olhos, a visão turva de Enki foi ofuscada por um brilho muito forte. O gosto de sangue deixara sua boca e a dor nas costelas também cessara. Quando se acostumou a claridade, tudo que via era uma grande mesa, repleta de papeis perfeitamente organizados em pilhas equidistantes. Podia jurar que cada uma delas tinha exatamente a mesma quantidade de folhas, mas quando tentou alcançá-las, não conseguiu mover um músculo. Franziu o cenho confuso.

Passos vinham ecoando às suas costas, mas quando tentou se virar, também não conseguiu. Algo o confinava aquela cadeira. Alguém. Os passos pararam apenas para dar lugar ao som de uma maçaneta girando. A porta abriu e fechou e o cavaleiro de armadura com longos cabelos negros passou por Enki e sentou-se do outro lado da mesa. Um pergaminho com dezenas de metros se materializou em suas mãos e ele começou a ler em silêncio. As pernas do meio-dragão queriam balançar, estavam ansiosas para se mover e partir. Ato comum entre os devotos de Valkaria — mas ele não conseguia se mover.

— Caralho, Khalmyr. Fala alguma coisa, porra!

O juiz entre os deuses o encarou com olhos totalmente brancos e expressão dura.

— Essa foi a educação que sua mãe lhe deu, Enki?

Por algum motivo, era difícil para o cavaleiro cerúleo segurar sua ira dracônica.

— Não, né? E você sabe disso. Por que lá no meu tempo, ela morreu quando eu era um bebê. Mas você não deu uma foda pra isso — após um curto silêncio, concluiu: — E se ela tivesse me criado talvez o repertório de ofensas fosse ainda maior seu monte de m…

— Chega — a voz de Khalmyr soava altiva. Não era um brado, mas carregava autoridade. — A morte dela em quaisquer dimensão não é culpa minha ou de qualquer outro deus. Você está aqui, agora, pois lutou contra Edauros e caiu pelas garras daquele inconsequente. Esta longa lista com todos os seus crimes contra a ordem é o suficiente para lhe mandar para o vazio, e eu já a li pelo menos quatro vezes. Eu nem precisaria estar conferindo tudo mais uma vez.

Enki teria se mexido na cadeira, se pudesse.

— Me manda pra lá então! E aproveita, também, e vai pra pu…

— Entenda— o juiz o interrompeu novamente — , essa era a responsabilidade dos probos. Manter a ordem no multiverso está acima de meus desígnios. Veja bem, eu sou o juiz, eu não faço as leis.

— Quem que faz essas merdas então?

Khalmyr teria suspirado se não estivesse habituado as reclamações das almas que são julgadas. Não devia explicações àquele mortal, mas algo no grande cavaleiro simpatizava com o meio-dragão.

— O universo faz as leis. O nada e o vazio assim proclamaram. Meu dever é manter a ordem.

— Nem vem! Eu só pulei esse tal multiverso aí por que vocês largaram a gente lá a própria sorte. Isso aí que você tá falando não é nem um pouco justo.

O juiz se levantou e deu as costas ao meio-dragão. As reclamações dele não eram infundadas.

— Eu nunca disse que eram leis justas, eu disse que as faço serem cumpridas. Eu prezo pela ordem. A lei é a lei.

— Se há uma lei, existe uma brecha, meu querido irmão. Minha existência é a prova disso — uma terceira voz se uniu a conversa.

O pescoço de Enki doeu tentando se virar para trás, sem sucesso. Uma mão pousou em seu ombro e, com o canto dos olhos, viu-a adornada por diversos anéis dourados e garras afiadas. A expressão impassível de Khalmyr franziu um pouco.

— O que você quer aqui, Kallyadranoch?

— Meu neto morre e é assim que você trata um familiar de luto?

— Oh porra, eu morri? — era Enki.

Conseguiu sentir o suspirar do deus dos dragões às suas costas. Seu hálito era gélido e quente e corrosivo e sombrio e divino. Não havia percebido — até aquele momento — que estava ali por ter morrido para o sumo-sacerdote enlouquecido do deus do poder. Kallyadranoch encarou Khalmyr antes de falar.

— Infelizmente, Edauros é muito bom no que faz, mas é um tanto… grosseiro. Não é como sua mãe, Enki, mas escolhas são escolhas. Ela é minha preferida, escolhida para representar o poder dos dragões e até onde podemos ir com nossos dons mágicos; o outro é alguém sedento por poder, um tanto ciumento, e que rege minha igreja.

— Uma igreja desorganizada, caótica e profana, inclusive — apontou Khalmyr.

O deus dos dragões se aproximou e sentou na beirada da mesa do deus da ordem, olhou para Enki e piscou com um olho só. Sorrindo malicioso, voltou a encarar o deus da ordem.

— Eu ficaria ofendido se não soubesse que você só fala a verdade, cavaleiro.

— Eu sei o motivo de sua visita e a resposta é não. Você sabe que não deve interferir, Terceiro.

A face sorridente de Kallyadranoch foi substituída por uma mais séria. Detestava ser chamado daquela forma. Apesar de ter saído do esquecimento, Khalmyr fazia questão de lembrá-lo que um dia ninguém reteve uma lembrança sequer dele.

— Mas veja só, meu neto aqui… — começou repousando a mão sobre a de Enki, mas o deus do poder foi interrompido por um clarão e, de repente, o meio-dragão havia sumido. — Eu não fiz nada, juro.

Dessa vez, sem a presença de um mortal, o deus juiz suspirou.

— Em teoria, foi você sim. A energia sagrada de Prunna vem de você e foi ela quem o ressuscitou — permitiu-se sentar enquanto falava. Parecia exausto.

Kallyadranoch sorriu se sentando na cadeira antes ocupada por Enki. Estava radiante, com os olhos em brasa e as presas aparecendo. Foram poucos segundos que precisou estar ali, mas sabia que Khalmyr poderia ter despachado o meio-dragão sem sequer ler toda a sentença. Afinal, ele não era procurado por um crime, mas sim por uma anomalia no multiverso.

De qualquer forma, triunfar sobre o deus da ordem era delicioso. Sentia-se mais poderoso.

— O que foi, Kha? Você parece cansado. Um cavaleiro nunca descansa — provocou.

— O que aconteceu hoje foi errado. O que vem acontecendo está errado, Kally. Edauros, Enki, os probos. Algo está fora do lugar. Fora do tempo. Não podemos deixar que outras coisas fujam do controle, na cerimônia do chá em Sora nós…

— Eu sei, eu sei. Eu lembro do que combinamos — o deus dos dragões interrompeu revirando os olhos.

Khalmyr se levantou e pegou Rhumnam que pendia na parede em frente ao escudo do deus ordeiro. Kallyadranoch não quis parecer exaltado, mas mexeu as mãos impaciente e quase levantou da cadeira. Sentiu um amargor na boca, o último encontro com a arma não havia sido agradável.

— Se me dá licença, tenho que ir até Werra discutir com Keen sobre a guerra que iniciará em breve. Lamashtu, Mikazuki, Benthos, Zanshin, Sedrywen, Prunna, Mu e o próprio Enki. Esse embate terá proporções para arrasar a realidade e preciso ter certeza de que o próprio deus da guerra vai colaborar para que isso não ocorra.

Um portal se abriu atrás de Khalmyr, que continuava a encarar Kallyadranoch. Despertando de seu transe encarando a espada da justiça, o deus dos dragões se pôs de pé e dirigiu-se a porta. Mas antes de sair, voltou-se para o grande juiz dizendo.

— É só por isso que vai visitar Keen ou tem algo mais em mente? — seu sorriso ia de Ordine até Al’Gazara.

Khalmyr não respondeu, mas permitiu-se sorrir antes de desaparecer no portal.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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