Mais chá?

Diogo Stone
5 min readFeb 4, 2021

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O crepúsculo já havia passado a algumas horas. O orvalho já começava a se formar nos grandes jardins que cercavam a mansão típica de Tamu-Ra. Vozes se elevaram e uma porta se abriu calmamente por uma mão esguia envolta por uma luva espalhafatosa.

Qualquer criatura mortal que olhasse naquela direção, provavelmente morreria de pavor e júbilo ao mesmo tempo. A aura divina que emanava da sala recém aberta era tamanha que o eixo de Sora parecia dobrar.

— Carambolas que demora exacerbada! — a voz cantarolada de Hyninn se fez ouvir enquanto saía. — O chá já estava até frio, um absurdo servir desta forma seus irmãos pelo qual resguarda-se grande apreço, não é lorde Nimb?

O velho ajeitava a gravata borboleta — que era realmente uma borboleta — enquanto um canguru que saía de sua cartola colocava a própria em sua cabeça.

— Aquilo era chá? Eu podia jurar que era óleo de macaco! — o louco gargalhou enquanto tropeçava em um casco de caramujo, deixando sua dentadura cair enquanto era engolido por ela, desaparecendo em seguida.

O senhor do sol e a dama selvagem saíram logo atrás, tomando o caminho da esquerda. Em seu encalço, o deus monstro e a deusa da noite tomavam o rumo da direita.

— O lugar é adorável e requintado — Azgher comenta sem olhar para a dupla que saía para o outro lado.

— Pelo menos ele tem bom gosto, não é como Solaris — Tenebra alfineta em voz alta.

Os deuses do dia e da noite se encaram, Allihanna e Megalokk trocam olhares de predador e rosnam. Com um piado, o deus da profecia atravessa o caminho entre eles, lançando um olhar inquisidor para os quatro que voltam a tomar seus rumos.

— Eu tenho certeza que Sszzaas colocou alguma coisa na bebida! — a voz gutural do bugbear encheu o lugar.

Sora estremeceu com sua raiva somada a risada de Keen que o acompanhava e caçoava dele reclamando.

— Veneno? Ragnar, por favor. Como se um deus pudesse ser morto com isso.

Logo atrás, um tritão com o rosto um pouco roxo trazia uma Wynna que flutuava agarrada ao seu pescoço.

— Mas eu estou te dizendo! Você vai amar o lugar! As luas de Magika são quase tão magicas quanto eu — falava agora apontando para si com um olhar afiado.

Oceano suspirou em concordância antes da dupla se liquefazer e desaparecer, deixando para trás apenas uma poça de água. Após alguns segundos de várias despedidas, beijos e troca de palavras carinhosas, uma criança, uma senhora e uma moça saíam da sala.

— O chá estava delicioso, Ma! Você viu como as porcelanas eram bonitas?!

— Eu percebi, Lena, você estava o próprio reflexo da lua num lago de tão radiante.

— Doces palavras, Marah — a voz arrastada da deusa do conhecimento soava cansada. — Venha criança da vida, eu lhe deixo em Vitália.

Lena cruzou os braços e fechou a cara.

— Eu sei ir sozinha, vovó! — reclamou mostrando a língua.

A deusa da paz e a da civilização se entreolharam e riram da menina emburrada. Quando o último livro que seguia Tanna-Toh deixou a sala, a porta voltou a se fechar. No lado de dentro, alguns deuses ainda estavam sentados no chão ao redor de uma grande mesa.

— Mais chá? — o deus da honra perguntou.

— Você desejou que ficássemos mais um pouco, Lin-Wu. Do que se trata? Tenho almas para julgar — o grande juiz era impassível, mas sua pressa era palpável.

O deus dos samurais suspirou.

— É de conhecimento e interesse de todos nós nesta sala o que um certo grupo de aventureiros está promovendo em Arton. Eles estão enfrentando um inimigo numeroso, perigoso e letal. A demônio Lamashtu e a própria tormenta.

Valkaria e Kallyadranoch, entediados, engasgaram com a torta de limão que comiam quando o deus da honra citou a criação da dupla.

— Seria perspicaz de nossa parte permitir que Enki os ajude a salvar o tempo em que vivemos. Antes que a deusa da carnificina e a tormenta, juntas, dizimem essa realidade e, quiçá, todas as outras.

— Entendo sua preocupação, mas… — um forte soco na mesa interrompe a fala de Khalmyr.

— Se a tormenta quiser vir, que venha! Estou cansado de fugir dela. Arrancarei ela da realidade a força se for preciso!

Glórienn, que se recolheu de susto com a reação de Tauron, lançou um olhar preocupado à Lin-Wu.

— Mas — o juiz continuou — não sou eu quem comando os probos. Eles são programados e direcionados pela própria ordem do multiverso. Inclusive, uma legião deles acabara de se materializar nas montanhas uivantes.

Lin-Wu apertou os lábios. Não seria fácil convencer os deuses de que seu filho e os amigos dele poderiam ser ajudados para impedir a aniquilação de sua realidade. Ou, ao menos, não atrapalharem.

— Você se preocupa demais, lagarto de jade. Eu não escolhi minha campeã de forma preguiçosa como você fizera com aquela que hoje despreza, Aoi, não é?

O olhar julgador de Lin-Wu caiu sobre Kallyadranoch como uma tempestade verdejante.

— Prunna e Enki conseguem manter qualquer um daqueles inúteis vivos. Afinal, ele é meu neto e ela é capaz de coisas… inimagináveis — o deus dos dragões parecia perdido em uma lembrança.

— O rapaz tem garra. De fato, atravessar o véu da realidade para vir pra cá, desafiando o todo poderoso e ordeiro Khalmyr e sua legião de autômatos ordeiros para mudar este tempo? É muito ambicioso — Valkaria sorria de orelha a orelha.

— Eu sei que você gosta de desafios, e também sei que sua ambição quase destruiu a tal realidade ordeira que vivemos. A rubra Nivenciuén não esqueceu suas ações, ou as suas — acusou olhando Glórienn.

Lin-Wu ergueu as mãos em sinal de trégua. Os deuses cessaram suas falas. O deus da honra respirou fundo antes de continuar.

— Vocês ouviram Thyatis. Através dos olhos de Moira, os tempos e as realidades foram revelados. Ela está jogando suas cartas, segunda a própria, para o bem. Mas nós não podemos deixar que ela brinque com isso, o multiverso não é um jogo.

— Fale por si só — era Valkaria.

— Seus servos disseminando ódio entre os povos também não é bonito — era Khalmyr.

— É coisa do Keen, não tenho nada com isso — desdenhou.

Um silêncio desconfortante se fez entre eles. Momentos como esse são tensos, mas quando os envolvidos eram deuses maiores e com o poder para controlar o universo, a tensão tendia a ser maior.

— Eu acho — Glórienn começou, mas se impediu olhando de soslaio para Tauron, que indicou que continuasse — que todos eles irão nos orgulhar. Zanshin carrega a centelha de Lin-Wu, Sedrywen é um orgulho entre os elfos, Prunna é perspicaz e criativa, Mu é quase uma força da natureza e da liberdade e Enki é jovem, cheio de vigor e ambicioso em sua missão.

— Mas acho que, se for para enfrentar a tempestade, poderíamos ajudá-los — Tauron concluiu, sorrindo para a deusa dos elfos.

O silêncio se instalou entre as divindades mais uma vez. Não era um dilema simples, muito pelo contrário. Era uma decisão que poderia afetar tudo que era conhecido. Nas sombras, uma figura ofídica sorria oculta aos sentidos dos grandes pensando: “Ele certamente apreciaria essa informação.”

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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