Marcada

Diogo Stone
6 min readNov 25, 2021

A mulher acordou de repente, rolando para o lado e tossindo com força. Sua visão se mantinha turva, mas ela conseguia distinguir as marcas avermelhadas em sua mão e no chão — não demorou para que o cheiro de sangue invadisse suas narinas. Colocou muita força nos braços para erguer o corpo do chão frio e duro, mas uma dor lancinante em seu peito a fazia rilhar os dentes e gemer.

Avistou o que parecia ser um canto daquela sala e se arrastou até lá, escorando as costas na parede sob muita dor e lamentação. Permaneceu ali, imóvel e segurando a ferida no abdômen enquanto sentia o sangue entre os dedos. Manteve os olhos fechados enquanto tentava controlar a respiração, fazendo o possível para se lembrar do que havia acontecido.

Quando passou a respirar sem que a dor a fizesse arcar as costas instintivamente, levou sua outra mão até as madeixas lilases e depositou o cabelo por trás da sua orelha pontuda. Abriu os olhos e perscrutou o local devagar, franzindo o cenho enquanto o fazia.

Estava sentada em uma sala espaçosa feita de pedra bruta. Não havia nada ali, exceto uma pilha de ossos no centro e o vão de uma porta por onde uma luz branca entrava. Como se atingida por um virote, sua mente foi arremessada na direção de lampejos de memória. Uma lefou, um navio, um baú, seus amigos, Carmem, os puristas. Viu as setas vermelhas reluzentes cortarem o ar e se cravarem uma a uma em seu corpo.

A primeira estilhaçou sua barreira arcana como se fosse vidro, a segunda deixou-a inconsciente. E pelo que havia contado em seu corpo, haviam disparado mais duas vezes contra ela. A raiva dentro da elfa crescia, pulsava. Era como se seus sentimentos pudessem ser tocados dentro daquela sala. Ondas de energia púrpura e negra destacavam-se de seu corpo e fluíam até a pilha de ossos. Uma risada gutural, mas baixa, começou a ecoar.

— Quem está aí — perguntou com uma voz rouca e cansada, tossindo em seguida.

— Sou você, ou o que restou de você — a voz continuava rindo.

As energias necromânticas, que vertiam do corpo da mulher, envolveram a ossada no centro da sala. Os ossos começaram a remexer e flutuar, conectando-se enquanto uma pele ressecada e uma carne murcha preenchia os vazios daquele esqueleto. Em pouco tempo, uma figura de mais de dois metros de altura se erguia e diminuía a distância entre as duas pessoas da sala.

A elfa sentiu o nervosismo começar a tomá-la, mas não sentiu o coração martelar o peito. Foi quando se assustou de verdade. Pousou a mão sobre o peito, sequer respirava, apenas sentia. Nada. Sem pulsação. Ela estava morta.

— Que deleite poder presenciar essa agonia — a figura que se aproximava urrava.

— O que aconteceu comigo? Quem é você?

A figura parou a poucos metros dela, deixando a luz branca que vinha da porta iluminá-lo. Os olhos da elfa se arregalaram. O tamanho, as vestes, os adereços. Não havia dúvidas de quem era aquele bugbear, ela havia visto pinturas e esculturas o suficiente para saber.

— Não pode ser… você… você está morto, Ragnar!

O antigo deus da morte gargalhou de felicidade.

— Provar daquilo que me dava forças foi a melhor coisa que já testemunhei. De que adianta alimentar-se da morte sem tê-la experienciado, Daeniel?

Ela não respondeu.

— Vamos, não seja tímida. Somos só eu e você aqui, agora, para sempre — ele ria. — Você sempre estudou a morte e, agora que pode entendê-la na prática, fica acuada como uma presa indefesa?

— Eu não sou uma presa — rilhou os dentes e se colocou de pé com dificuldade. As feridas ardiam como o inferno. — Eu estudo a morte para ajudar os vivos. Não por que me divirto em destruir e por fim nas coisas.

— Fim? A morte nunca será o fim. Nem pra você, nem pra mim.

A elfa deu um passo vacilante na direção do bugbear, mas parou para manter o equilíbrio e continuou dizendo:

— Morrer só não é o fim quando ainda não cumprimos nosso destino, ou quando alguém do outro lado usa a alma dos mortos. Nós não saímos daqui só por que queremos.

— Pra quem morreu uma vez só, você acha que sabe de tudo.

Ragnar não sorria mais. Andava a passos lentos na direção da elfa. Ela tentava gesticular a proferir as palavras adequadas, mas não sentia a conexão com o arcano. O bugbear parou em frente a ela e continuou a encarando por um longo momento antes de continuar.

— Ecos. Mortes deixam ecos em Arton. Seja a morte de um animal, de uma pessoa, ou a de um deus. Quando esses ecos reverberam em sintonia, encontros como esse acontecem.

A expressão de nojo no rosto de Daeniel era evidente. Balançou a cabeça em negação.

— Eu jamais teria qualquer tipo de sintonia com alguém como…

— Um deus? — Ragnar a interrompeu. — Caso tenha esquecido, eu não sou só um duyshidakk qualquer. Eu vi a raiva que emanava de você quando chegou aqui. Esse timbre promoveu nosso encontro.

Daeniel processava a informação. Não fazia sentido o que ele dizia. Quer dizer, nunca tinha lido nada sobre isso em seus livros de necromancia. Vladislav nunca havia lhe ensinado nada parecido. Já tinha ouvido falar dos sussurros dos mortos, claro. Mas aquilo era algo completamente diferente. Novo. Sua expressão pensativa mudou de repente.

— Aaaahh, a curiosidade dos elfos… sua força, e sua perdição…

— Isso seria uma excelente pesquisa. Se toda a vida que deixa Arton gera um eco, então a história está escrita nas mortes que ocorreram em todo lugar. Seria possível desvendar as verdades por trás das eras, poeríamos resolver disputas que carecem de dados.

Um gosto amargo subiu até sua boca ao lembrar dos puristas em Alqueran. Se pudesse alcançar os ecos quando estava em Arton, poderia ter desmascarado Carmen e nada daquilo teria acontecido. Daeniel não estaria morta.

— E o que está esperando? — a voz gutural soava convidativa, e isso a incomodava.

— Não sei, nunca morri antes — disse dando de ombros com um sorriso frágil pintando seus lábios.

— Isso, sorria para a morte enquanto pode; pois você não continuará aqui.

O bugbear diminuiu a distância que os separava. Daeniel tentou se afastar, mas não teve êxito. Ragnar a alcançou e golpeou sua barriga com o dedo indicador e médio. Ela cambaleou para trás e sentiu como se o impacto arrancasse parte de si. Sentiu uma ardência no local e olhou atônita para a marca que surgia em seu corpo.

Um círculo branco eclipsado por um preto. A marca de Ragnar.

Começou a arfar e tentar formular uma frase, mas estava incrédula e irritada demais para isso. Empertigou-se e sentiu o coração quase pulando para fora de sua boca. Seu coração havia voltado a retumbar no peito. Olhou para baixo e viu suas feridas cicatrizando enquanto a marca do eclipse ia sumindo. Podia senti-la, apesar de não poder mais vê-la. Encarou Ragnar confusa, sua visão ficando turva mais uma vez.

— O que você fez? — perguntou quase perdendo a consciência.

— Eu sou o deus da morte, e tomei a sua para mim. Continue lutando, fique.

A elfa abriu os olhos e arrancou os virotes que estavam presos em seu corpo. Sentou-se na areia e respirou fundo. Ainda podia sentir a raiva ardendo dentro de si e ainda podia sentir a morte sendo arrancada de seu corpo. Mas, agora, estava em Alqueran. E estava viva. Seus olhos tornavam-se brancos e gesticulava enquanto feixes arcanos dançavam ao seu redor.

— Vocês vão desejar ter fugido hoje — sua voz ecoava. — Mas não se preocupem, não vão ter tempo para ficarem arrependidos.

As energias necromânticas erguiam os mortos-vivos sob seu comando e, agora, prestando atenção, podia ouvir os ecos que reverberavam deles.

E Daniel sorriu para a morte mais uma vez.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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