Memórias

Diogo Stone
6 min readSep 17, 2020

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As pessoas na corte estavam apreensivas, mas a nobre em frente ao trono transparecia serenidade.

— Perdoe-me, lady Lexia Targorya. Mas eu não sou digno deste posto — a voz estridente do goblin soava estranha trazendo tanta seriedade.

— Não seja tolo. Você me protegeu enquanto meu amado Do-Myu mantinha os horrores da tormenta afastados. Lutou com bravura, me manteve salva e tem me acompanhado desde então.

A jovem de cabelos louros, quase brancos, brande a espada baronial com certa dificuldade. Mesmo com a mão machucada, fez esforço estendendo à frente. Repousando o lado da lâmina no ombro do pequenino ajoelhado a sua frente.

— Jefferson Toshihiro — a moça começa em tom altivo — , por demonstrar bravura frente à horrores indescritíveis; por demonstrar coragem quando as chances eram desfavoráveis; por demonstrar honra onde à fuga era a solução mais simples; eu, Lexia Targorya, baronesa do castelo de Vento Gélido, a fortaleza tocada por Beluhga, o nomeio Sir Jefferson Toshihiro. Guarda pessoal desta coroa e protetor destas terras.

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A chuva cai graciosa. De joelhos, Zanshin medita como faz todos os dias. Ajeitando seus pensamentos e articulando as melhores decisões que beneficiasse os aldeões de suas terras.

— Vem cá, você tá distraído hoje, hein? — a voz debochada do demônio das sombras ressoava de sua espada.

— Quieto Kuraiga — censurou o tamuraniano — você sempre aparece em momentos inoportunos.

— Ah, qual é? Eu literalmente empresto minhas forças pra você. Sinto o que você sente, sofro quando você sofre. Gratidão faz parte do seu código de honra, cara.

— Desculpe — suspirou após um breve momento — , você tem razão. Realmente algo está atrapalhando minha concentração ultimamente. Sinto como se tivesse perdido algo, mas não sei o que.

Manifestando-se da katana recostada em na cadeira, a forma tenebrosa do demônio se materializa. Sombras com um formato humanoide, um sorriso maquiavélico e olhos vermelhos. Aterrador para a maioria das pessoas, um amigo para Zanshin.

— Cara, o que é esse monte de papel aqui? — apontando sua garra para a escrivaninha cheia.

— São cartas e… o que você está fazendo?! — censurou baixinho ao abrir os olhos e se aprumando. — Você sabe que não pode dar as caras assim, as pessoas podem te ver!

— Ah, pronto. Agora eu tenho que ficar escondidinho o tempo todo — reclamou cruzando os braços.

— Nós já falamos sobre isso Kuraiga. As pessoas não estão prontas para esse tipo de amizade. Elas mal aceitam termos laços afetivos com qualquer um que não seja de Tamu-Ra.

— Vocês que sabem, quem perde não sou eu — concluiu enterrando-se novamente na katana embainhada.

Sentando-se na cadeira, Zanshin começa a analisar as cartas sobre a escrivaninha. Pedidos de nobres, solicitações de aldeões, perfumadas declarações de amor que escondiam um casamento arranjado. Nada fora do usual. Ao se levantar e espreguiçar, deparou-se com um embrulho no chão. Preso a ele, uma carta com o símbolo do reinado, de uma casa que não conhecia. No verso da carta lia-se:

Fortaleza Vento Gélido — Baronesa Lexia Targorya

Tamu-Ra — Zanshin Himekawa

Estranhou não haver o nome de seu feudo, mas preferiu ignorar. Uma mensagem de tão longe deveria ser algo importante. Voltando a se recostar em sua cadeira, começou a ler a carta.

Décimo terceiro dia do segundo da primavera, 1420.

Perdoe-me, Himekawa-tono. Pois eu não sou digno de lhe enviar esta carta. Mesmo assim, estou fazendo isso em homenagem e honra a meu sensei Myuamotto Douglas.

Mestre Do-Myu falava muito do senhor, o honrado filho de Lin-Wu. Que com sua sabedoria lhe ensinou que nem todas as virtudes eram iguais, e que nem todo mundo precisaria de uma morte honrosa para provar-se digno. No entanto, a posição minha e de Douglas na roda celestial pede por isso. Relatarei agora ao senhor, como foram os momentos derradeiros que definiram a honra de meu mestre.

A noite era tranquila e tínhamos acabado de retornar das montanhas uivantes. Um lugar terrivelmente frio, com tribos de pessoas ainda mais terríveis. Havíamos obtido uma joia da dragoa-rainha, Beluhga, que seria usada para curar a esposa do Barão Targorya. Entretanto, descobrimos tarde demais que o nobre era um cultista da tormenta. A chuva de sangue ácido denunciou o início de um momento de terror — e se não fosse os esforços de meu mestre e nossos amigos — creio que teríamos uma área de Tormenta no reinado.

Avançamos contra o forte que vinha sendo tomado pelos horrores indescritíveis. Pústulas, cascas insetoides, olhos e carne por todo lado. Uma vermelhidão cegante. Os aldeões estavam maníacos, possuídos pela loucura alienígena daquele lugar. Avançávamos com dificuldade tentando nos aproximar da fortaleza. Foi quando ouvimos um grito; um pedido de socorro de uma voz familiar. Era o chamado da então Lady Lexya Targorya e seu irmão, que haviam fugido do castelo quando tudo começou. Bravamente Do-Myu foi até a casa em que ela estava presa, mas chegamos tarde para salvar seu irmão. O rapaz teve um destino pior do que a morte, tendo o rosto liquefeito por um vômito ácido asqueroso expelido por um aldeão possuído.

Mesmo assim, sem temer, Douglas-sensei pulou janela a dentro e atacou os aldeões enlouquecidos. Nada importava mais para o mestre do que sua honra, e naquele momento, ele protegia sua amada como se fosse a própria. Nossos amigos foram até o forte, mas nós ficamos para trás, para cuidar de Lady Lexia. Mestre Do-Myu me incumbiu da missão de protege-la enquanto o próprio ficou dentro da casa, lutando com bravura e impedindo a passagem de mais aldeões.

O estandarte de Lin-Wu que lhe envio, é uma das últimas coisas que restaram de Myuamotto-sensei. Ele firmou essa flâmula que entregaste a ele, lutando ao seu lado com a bravura de um verdadeiro devoto do único e verdadeiro imperador, o grande dragão de jade. Entretanto, eu ainda sou fraco e um mero aprendiz. Para cada aldeão ensandecido que derrubava, três outros surgiam. Eu e Lady Lexya estávamos encurralados. Bradando seu famoso golpe, para nossa surpresa, sensei saltou para fora da casa, acertando o inimigo mais próximo de nós — e trespassando a si mesmo para lançar seu relâmpago verdejante em todos os maníacos.

Do-Myu conseguiu nos proteger. Momentos após ele nos salvar, ouvimos os estrondos vindo do castelo e a voz de Beluhga ecoar pelas terras. A dragoa-rainha colocara um fim a insanidade da Tormenta. Infelizmente, o golpe fora poderoso demais, e o mestre padecera dos ferimentos. Mas sua morte honrosa jamais será esquecida por mim ou por sua amada Lexya Targorya. Tenho certeza de que Lin-Wu o acolhera em sua morte. Agora cabe a mim, seu aprendiz, Sir Jefferson Toshihiro, brandir a Tempestade Verdejante até o dia de minha morte. Quando a roda celestial irá girar novamente e me conceder a chance de ser um devoto do grande dragão de jade.

Esta katana ressoa com a vontade de Do-Myu, e eu a carregarei com o mesmo carinho que carrego as lembranças de meu sensei.

Saudações e desculpas pelo incômodo, Sir Toshihiro Jefferson.

A mão do tamuraniano tremia ao pôr a carta de lado e desenrolar o embrulho. Seus olhos ficaram pesados ao rever a flâmula verde jade, o presente que dera a Do-Myu no dia que o goblin partiu de Tamu-Ra. Sentiu um pesar que não sentia a muito tempo. O de perder um amigo. As manchas e crostas avermelhadas — espalhadas pelo tecido e cabo do estandarte — mostravam com clareza que a Tormenta havia feito seu estrago.

Zanshin é atacado pelas lembranças da última batalha que vivenciara com seu antigo grupo de aventuras. Lembra de estar semiconsciente e de ser carregado por Sagara — o elemental de água invocado por Prunna. Também lembra das paisagens vermelhas, dos seres insetoides cuspindo ácido, das colinas vivas, das nuvens cheias de olhos e do céu que sorria de sua desgraça. Recordava-se também de uma última briga entre Mu e Prunna.

— Por que você parou? Vamos logo! — a memória da voz de seu amigo gritava abafada pelo ar que parecia ter vida própria naquele local.

— Essas coisas não podem passar o portal. Vão! Eu vou distraí-las — Prunna concluiu.

— Nada disso senhora! Ninguém fica para trás!

— Eu sabia que dirias isso, então me desculpa…

Com um movimento que Zanshin não se lembra de ter visto, Prunna arremessou ele, Mu e Sedrywen portal a fora. Através da fenda multidimensional, puderam ver a jovem dahlan enfrentando os horrores rubros com Sagara ao seu lado. A dupla conseguira impedi-los de avançar para Arton, mas também não saíram de lá. Seja onde for.

Sacudindo a cabeça, o tamuraniano tentava afastar as lembranças de seus amigos perdidos. Mortos como Do-Myu e Myuamotto — sensei de Douglas — , ou desaparecidos como Prunna. Ao menos, gostava de imaginar que a barda risonha e altiva estava viva em algum lugar.

— Kuraiga — chamou em voz alta — , saia do seu esconderijo. Acho que está na hora das pessoas aceitarem que amizades podem surgir em locais inesperados. E devem aprender a aceitar e respeitar essas diferenças e os laços que formamos.

— Oh, olha só pra você! Todo sentimental! O que tinha nas cartas que te chacoalhou assim? — o demônio perguntava enquanto se materializava sorrindo ao seu lado.

— Memórias.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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