Memórias

Diogo Stone
6 min readSep 17, 2020

As pessoas na corte estavam apreensivas, mas a nobre em frente ao trono transparecia serenidade.

— Perdoe-me, lady Lexia Targorya. Mas eu não sou digno deste posto — a voz estridente do goblin soava estranha trazendo tanta seriedade.

— Não seja tolo. Você me protegeu enquanto meu amado Do-Myu mantinha os horrores da tormenta afastados. Lutou com bravura, me manteve salva e tem me acompanhado desde então.

A jovem de cabelos louros, quase brancos, brande a espada baronial com certa dificuldade. Mesmo com a mão machucada, fez esforço estendendo à frente. Repousando o lado da lâmina no ombro do pequenino ajoelhado a sua frente.

— Jefferson Toshihiro — a moça começa em tom altivo — , por demonstrar bravura frente à horrores indescritíveis; por demonstrar coragem quando as chances eram desfavoráveis; por demonstrar honra onde à fuga era a solução mais simples; eu, Lexia Targorya, baronesa do castelo de Vento Gélido, a fortaleza tocada por Beluhga, o nomeio Sir Jefferson Toshihiro. Guarda pessoal desta coroa e protetor destas terras.

******************************************

A chuva cai graciosa. De joelhos, Zanshin medita como faz todos os dias. Ajeitando seus pensamentos e articulando as melhores decisões que beneficiasse os aldeões de suas terras.

— Vem cá, você tá distraído hoje, hein? — a voz debochada do demônio das sombras ressoava de sua espada.

— Quieto Kuraiga — censurou o tamuraniano — você sempre aparece em momentos inoportunos.

— Ah, qual é? Eu literalmente empresto minhas forças pra você. Sinto o que você sente, sofro quando você sofre. Gratidão faz parte do seu código de honra, cara.

— Desculpe — suspirou após um breve momento — , você tem razão. Realmente algo está atrapalhando minha concentração ultimamente. Sinto como se tivesse perdido algo, mas não sei o que.

Manifestando-se da katana recostada em na cadeira, a forma tenebrosa do demônio se materializa. Sombras com um formato humanoide, um sorriso maquiavélico e olhos vermelhos. Aterrador para a maioria das pessoas, um amigo para Zanshin.

— Cara, o que é esse monte de papel aqui? — apontando sua garra para a escrivaninha cheia.

— São cartas e… o que você está fazendo?! — censurou baixinho ao abrir os olhos e se aprumando. — Você sabe que não pode dar as caras assim, as pessoas podem te ver!

— Ah, pronto. Agora eu tenho que ficar escondidinho o tempo todo — reclamou cruzando os braços.

— Nós já falamos sobre isso Kuraiga. As pessoas não estão prontas para esse tipo de amizade. Elas mal aceitam termos laços afetivos com qualquer um que não seja de Tamu-Ra.

— Vocês que sabem, quem perde não sou eu — concluiu enterrando-se novamente na katana embainhada.

Sentando-se na cadeira, Zanshin começa a analisar as cartas sobre a escrivaninha. Pedidos de nobres, solicitações de aldeões, perfumadas declarações de amor que escondiam um casamento arranjado. Nada fora do usual. Ao se levantar e espreguiçar, deparou-se com um embrulho no chão. Preso a ele, uma carta com o símbolo do reinado, de uma casa que não conhecia. No verso da carta lia-se:

Fortaleza Vento Gélido — Baronesa Lexia Targorya

Tamu-Ra — Zanshin Himekawa

Estranhou não haver o nome de seu feudo, mas preferiu ignorar. Uma mensagem de tão longe deveria ser algo importante. Voltando a se recostar em sua cadeira, começou a ler a carta.

Décimo terceiro dia do segundo da primavera, 1420.

Perdoe-me, Himekawa-tono. Pois eu não sou digno de lhe enviar esta carta. Mesmo assim, estou fazendo isso em homenagem e honra a meu sensei Myuamotto Douglas.

Mestre Do-Myu falava muito do senhor, o honrado filho de Lin-Wu. Que com sua sabedoria lhe ensinou que nem todas as virtudes eram iguais, e que nem todo mundo precisaria de uma morte honrosa para provar-se digno. No entanto, a posição minha e de Douglas na roda celestial pede por isso. Relatarei agora ao senhor, como foram os momentos derradeiros que definiram a honra de meu mestre.

A noite era tranquila e tínhamos acabado de retornar das montanhas uivantes. Um lugar terrivelmente frio, com tribos de pessoas ainda mais terríveis. Havíamos obtido uma joia da dragoa-rainha, Beluhga, que seria usada para curar a esposa do Barão Targorya. Entretanto, descobrimos tarde demais que o nobre era um cultista da tormenta. A chuva de sangue ácido denunciou o início de um momento de terror — e se não fosse os esforços de meu mestre e nossos amigos — creio que teríamos uma área de Tormenta no reinado.

Avançamos contra o forte que vinha sendo tomado pelos horrores indescritíveis. Pústulas, cascas insetoides, olhos e carne por todo lado. Uma vermelhidão cegante. Os aldeões estavam maníacos, possuídos pela loucura alienígena daquele lugar. Avançávamos com dificuldade tentando nos aproximar da fortaleza. Foi quando ouvimos um grito; um pedido de socorro de uma voz familiar. Era o chamado da então Lady Lexya Targorya e seu irmão, que haviam fugido do castelo quando tudo começou. Bravamente Do-Myu foi até a casa em que ela estava presa, mas chegamos tarde para salvar seu irmão. O rapaz teve um destino pior do que a morte, tendo o rosto liquefeito por um vômito ácido asqueroso expelido por um aldeão possuído.

Mesmo assim, sem temer, Douglas-sensei pulou janela a dentro e atacou os aldeões enlouquecidos. Nada importava mais para o mestre do que sua honra, e naquele momento, ele protegia sua amada como se fosse a própria. Nossos amigos foram até o forte, mas nós ficamos para trás, para cuidar de Lady Lexia. Mestre Do-Myu me incumbiu da missão de protege-la enquanto o próprio ficou dentro da casa, lutando com bravura e impedindo a passagem de mais aldeões.

O estandarte de Lin-Wu que lhe envio, é uma das últimas coisas que restaram de Myuamotto-sensei. Ele firmou essa flâmula que entregaste a ele, lutando ao seu lado com a bravura de um verdadeiro devoto do único e verdadeiro imperador, o grande dragão de jade. Entretanto, eu ainda sou fraco e um mero aprendiz. Para cada aldeão ensandecido que derrubava, três outros surgiam. Eu e Lady Lexya estávamos encurralados. Bradando seu famoso golpe, para nossa surpresa, sensei saltou para fora da casa, acertando o inimigo mais próximo de nós — e trespassando a si mesmo para lançar seu relâmpago verdejante em todos os maníacos.

Do-Myu conseguiu nos proteger. Momentos após ele nos salvar, ouvimos os estrondos vindo do castelo e a voz de Beluhga ecoar pelas terras. A dragoa-rainha colocara um fim a insanidade da Tormenta. Infelizmente, o golpe fora poderoso demais, e o mestre padecera dos ferimentos. Mas sua morte honrosa jamais será esquecida por mim ou por sua amada Lexya Targorya. Tenho certeza de que Lin-Wu o acolhera em sua morte. Agora cabe a mim, seu aprendiz, Sir Jefferson Toshihiro, brandir a Tempestade Verdejante até o dia de minha morte. Quando a roda celestial irá girar novamente e me conceder a chance de ser um devoto do grande dragão de jade.

Esta katana ressoa com a vontade de Do-Myu, e eu a carregarei com o mesmo carinho que carrego as lembranças de meu sensei.

Saudações e desculpas pelo incômodo, Sir Toshihiro Jefferson.

A mão do tamuraniano tremia ao pôr a carta de lado e desenrolar o embrulho. Seus olhos ficaram pesados ao rever a flâmula verde jade, o presente que dera a Do-Myu no dia que o goblin partiu de Tamu-Ra. Sentiu um pesar que não sentia a muito tempo. O de perder um amigo. As manchas e crostas avermelhadas — espalhadas pelo tecido e cabo do estandarte — mostravam com clareza que a Tormenta havia feito seu estrago.

Zanshin é atacado pelas lembranças da última batalha que vivenciara com seu antigo grupo de aventuras. Lembra de estar semiconsciente e de ser carregado por Sagara — o elemental de água invocado por Prunna. Também lembra das paisagens vermelhas, dos seres insetoides cuspindo ácido, das colinas vivas, das nuvens cheias de olhos e do céu que sorria de sua desgraça. Recordava-se também de uma última briga entre Mu e Prunna.

— Por que você parou? Vamos logo! — a memória da voz de seu amigo gritava abafada pelo ar que parecia ter vida própria naquele local.

— Essas coisas não podem passar o portal. Vão! Eu vou distraí-las — Prunna concluiu.

— Nada disso senhora! Ninguém fica para trás!

— Eu sabia que dirias isso, então me desculpa…

Com um movimento que Zanshin não se lembra de ter visto, Prunna arremessou ele, Mu e Sedrywen portal a fora. Através da fenda multidimensional, puderam ver a jovem dahlan enfrentando os horrores rubros com Sagara ao seu lado. A dupla conseguira impedi-los de avançar para Arton, mas também não saíram de lá. Seja onde for.

Sacudindo a cabeça, o tamuraniano tentava afastar as lembranças de seus amigos perdidos. Mortos como Do-Myu e Myuamotto — sensei de Douglas — , ou desaparecidos como Prunna. Ao menos, gostava de imaginar que a barda risonha e altiva estava viva em algum lugar.

— Kuraiga — chamou em voz alta — , saia do seu esconderijo. Acho que está na hora das pessoas aceitarem que amizades podem surgir em locais inesperados. E devem aprender a aceitar e respeitar essas diferenças e os laços que formamos.

— Oh, olha só pra você! Todo sentimental! O que tinha nas cartas que te chacoalhou assim? — o demônio perguntava enquanto se materializava sorrindo ao seu lado.

— Memórias.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

Diogo Stone
Diogo Stone

Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

No responses yet

Write a response