Morrendo e Aprendendo
O tritão subia aquela escada interminável. Suas pernas doíam e já tinha perdido as contas de quantos dias estava naquele lugar estranho. Era calor, o ar era seco e tudo que queria era um bom banho. Quase engasgou ao gritar de felicidade quando viu uma fonte que vertia água limpa e fresca. Ficou sentado ali por algumas horas antes de continuar sua jornada. Já era noite quando seu olho bom brilhou com intensidade renovada. Finalmente tinha avistado o fim da escadaria que parecia levar até os céus. Num salto, chegou até o planalto para onde aquele caminho levava. Decepcionou-se.
No centro daquele lugar, uma gigantesca fogueira apagada. Não havia chama e as cinzas que se acumulavam entre as pedras que delimitavam a fogueira dançavam com o vento que soprava. Sentado de costas para a escada, olhando-o por cima dos ombros, o tritão identificou uma figura senil. O senhor o olhava com certo desprezo, mas era um olhar cansado. Tempestus sorriu confiante. Sacou a última empada — que tinha formato de coração — e avançou na direção do homem estendendo sua mão.
— Boa-noite, meu bom senhor. Eu me chamo Tempestus. Você gostaria de uma hempada, a empada de Marah? Eu poderia lhe oferecer outras, mas não sobraram muitas — o tritão gargalhou como era de costume.
O velho homem girou, ainda sem se levantar e bateu na mão de Tempestus, arremessando a empada no chão. A expressão dura, sem cabelos e de barba farta o assustou um pouco, especialmente pela mancha vermelha no rosto.
— Mais um idiota falastrão — resmungou voltando a dar as costas.
— Desculpe, mas eu fiz algo de errado? Tem algum costume de sua tribo que não conheço? Uma vez eu coloquei um par de pauzinhos no arroz em Tamu-Ra e o povo de lá… — parou de repente, interrompido pelo velho.
— Você não cala a boca? Seus amigos deram tudo de si enquanto você vinha pra cá. Lutaram por suas vidas e você fez o que? Apanhou um pouco e resolveu vir descansar aqui? — o senhor se levantou com dificuldade encarando o tritão. — E agora você vai dizer, mas como você sabe disso tudo?
— Mas como você sabe… ei, pera aí! Como assim?! — a voz do tritão oscilava de incredulidade. — Isso quer dizer que… você é Thyatis!?
O homem o olhou por longos segundos. Quieto. Respirava um pouco pesado, certamente a idade tinha cobrado um preço que fora pago pelos seus pulmões. O velho então suspirou dizendo:
— Você é burro, rapaz?
— Desculpa.
Tempestus fez um muxoxo. Doía quando faziam isso com ele, ainda mais um desconhecido, num lugar desconhecido, onde ele fora parar de maneira desconhecida.
— Eu sou um vidente ora bolas — o homem resmungou. — Assim como você. Todo devoto da fênix é. Use seu olho bom pra enxergar, rapaz.
— Pera, como assim? Eu não sou um vidente, o pessoal da guilda me chamava de paladino. Pelo que li é como um guerreiro santo. Mas é só isso.
O velho encarou o céu escuro. Levou as mãos até as laterais da cabeça e respirou fundo. Parecia estar tendo um dia difícil. Ou dias. Ele parecia doente também, apesar do bom porte físico e da carranca que parecia ser assim mesmo.
— A questão é que você tem se esforçado como um uma pedra se esforça para andar.
— Mas… — o tritão arou alguns segundos, aquilo deveria ser algum tipo de quebra-cabeça. — Pedras tentam andar? Digo, eu já ouvi falar de uns tais de golem. Eram histórias incríveis sobre seres feitos de… — parou novamente, interrompido pelo velho mais uma vez.
— Você realmente não cala a boca quando começa? O que eu estou lhe dizendo é que você não dá seu máximo, é insensato e age com estupidez. Se você recebe uma segunda chance, deve agarrá-la com todas as suas forças e aprender com os erros da primeira. Lamentar-se não resolve nada. Desistir não resolve nada — o senhor balançou a cabeça e voltou a se sentar. — Agora sente aí quieto e espere o retorno da fênix.
O tritão ficou em silêncio por um tempo e logo sentou-se próximo ao velho. Tentou manter-se na mesma posição que ele, mas era desconfortável. Logo estava estirado no chão e tentava formar imagens com as estrelas que brilhavam no céu. Dias haviam se passado. Pelo menos na cabeça de Tempestus pareceram dias, pois ficar cinco minutos em silêncio pareceu assim. Se movia a todo instante, emitindo um ruído alto a cada movimento. O senhor suspirou de novo e voltou a olhar o tritão.
— Diga garoto, o que lhe incomoda.
— Bem, todo mundo vive falando isso, sabe? Que eu sou burro, impulsivo ou que não me dedico direito. A Nora diz que não tenho disciplina, a Salixia que eu sou desatento, o Fingo que preciso maneirar no sal. Acho que eu não sirvo pra esse negócio de herói. A ave vidente deve ter se enganado quando me escolheu.
Tempestus falava sem conseguir sustentar o olhar severo do velho, mas ouviu ele se levantar e sentiu um baque pesado em sua cabeça. Olhou pra cima e o homem o encarava severo com uma clava nas mãos.
— Isso foi por você achar que Thyatis cometeu um erro. E se não quiser levar outras, é bom começar a dar tudo de si daqui pra frente! Eu não permitirei que vocês, clérigos e paladinos, sejam frouxos e não deem cada gota de seu sangue enquanto respirarem!
Um piado alto interrompeu a discussão. As cinzas da fogueira flutuavam enquanto as chamas reviviam e voltavam a arder com intensidade. Uma espécie de pedestal de chamas passou a ocupar o centro daquele inferno que se formava. Das cinzas, um enorme pássaro de fogo surgiu, sobrevoou o planalto por alguns instantes e posou no centro daquele círculo flamejante. Uma voz poderosa ecoou por todas as terras e, mesmo que a ave não se movesse, era possível notar que era ela quem falava.
— Não há morte!
Ao longe, ouviram brados de várias vozes repetindo a frase. O senhor ali presente, também tinha se unido ao coro. O tritão estava maravilhado. Podia sentir o calor que emanava daquele ser espetacular, não era apenas fogo, era divindade. Mas mais do que isso, era uma sensação de bem-estar saindo de seu peito.
— Tempestus — a ave começou com a voz ribombando.
O velho revirou os olhos e voltou a se sentar no chão. O tritão não sabia se deveria falar, aproximar-se, sentar-se ou se atirar nas chamas. Ficou desconfortável e por alguns instantes pensou em oferecer uma empada à fênix. Por sorte não tinha nenhuma, ou teria oferecido.
— Na primeira vez que conversamos, você estava próximo da morte e seus amigos tiveram que proteger sua vida. Esse é seu trabalho. Por seu descuido, tive que conceder a Allihanna o direito de influenciar no destino de uma de suas filhas.
As palavras do deus eram duras, mas Tempestus não esperava menos. Sabia de tudo aquilo e sentia vergonha por isso, mas ouvir isso ainda machucava.
— Você deve ajudar as pessoas a encontrarem seus caminhos e cumprirem seus destinos, mas você parece estar confuso com o próprio — uma longa pausa se fez. Todo o reino de Thyatis parecia congelado aguardando que continuasse. — Contudo, você sempre demonstra clemência, perdoa até o mais sórdido de seus inimigos e compreende muito bem os princípios da redenção.
Os olhos do tritão brilhavam como fogo. Apesar de estar sendo lembrado de seus erros na frente do que parecia ser o mundo todo, também estava sendo elogiado de certa forma. O velho ao seu lado balançava a cabeça de cara fechada, parecia chateado.
— Você já renega a mentira e, hoje, renegará a morte pela primeira vez. Vá, filho da tempestade, mas lembre-se de proteger a vida e dar tudo de si sempre. Nunca se esqueça que todos merecem uma segunda chance.
Uma imagem percorreu a mente de Tempestus com uma cena de seu futuro e isso o incomodou. Sentia-se renovado, vivo, perdoado. Além disso tudo, agora tinha um destino claro à sua frente e tudo que precisava fazer era segui-lo — dar tudo de si, nunca desistir e trabalhar para ser como seu grande herói, o Lendário Pescador. Entretanto, precisava externar o que o ansiava.
— Perdoe-me pela pergunta, é tudo muito novo pra mim ainda. Mas por que eu acho que tive uma visão onde eu ardia em chamas?
O velho ao seu lado riu.
— É o dom da profecia.
Mal o senhor terminou de falar e o corpo do tritão começou a pegar fogo. Saltou de um lado para o outro, gritando e reclamando enquanto as labaredas o consumiam até não restar nada. O planalto voltara a ficar silencioso, exceto pelo crepitar da grande fogueira.
— E eu? — o senhor reclamou.
— Você vai descansar mais, velho amigo — a ave sentenciou.
O velho suspirou fundo e olhou para a empada caída próxima a ele. Seu estômago roncou. Esticou-se e agarrou a massa com formato de coração. Estava um pouco esfarelada e suja, mas é o que tinha para comer. Mordeu metade dela e surpreendeu-se com o sabor. Olhou para a fênix que o observava em silêncio e comentou:
— Achei interessante que não citou as virtudes dos maiores guerreiros santos para ele. Um paladino deve ser caridoso — começou num tom mais altivo — , casto, compassivo, humilde e — mas antes de concluir, foi interrompido pela voz grave de Thyatis.
— E temperante.
O velho olhou o deus da profecia com uma sobrancelha grossa erguia, torcendo sua face enrugada e manchada pela praga coral. Olhou para a metade da empada em sua mão e olhou para a face impassível da fênix novamente. O homem riu para si e balançou a cabeça.
— Só pode estar brincadeira.
Arremessou a outra metade da massa para a ave de fogo, que a abocanhou e piou outra vez. As vozes dos habitantes de Pyra bradaram não há morte novamente e as chamas se intensificaram, arderam e transformaram o pássaro em uma pilha de cinzas fumegantes novamente. As chamas da fogueira cessaram e o silêncio da noite reinou mais uma vez. O velho suspirou e se deitou no planalto, aguardando sua vez de ser levado de volta a Arton.
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Tempestus acordou de repente e seu corpo inteiro doía e ardia. Não conseguia mover seus músculos direito e precisou de muito esforço para abrir os olhos e virar a cabeça. Estava em seu quarto na taverna da gnoma. Ao lado da cama, Nora dormia sentada em uma cadeira com uma carta em suas mãos.
O tritão tentou levantar, mas caiu de cara no chão.