Morte e Renascimento
Tenebra já havia colocado seu manto sobre Arton a algumas horas. O cheiro nauseabundo de sangue preenchia o ar gélido que permeava a pele dos dois homens que ainda estavam de pé. Um anão largo e forte segurava seu grande machado com mãos trêmulas de cansaço e, ao seu lado, o ilusionista de cabelos negros — quase sem forças — brandia uma pequena espada.
A dupla estava cercada por dezenas de esqueletos animados e zumbis. A guilda de Eva havia sido chamada para lidar com um incidente envolvendo o desaparecimento de corpos em um cemitério, mas jamais imaginariam que um necromante estaria construindo um exército de mortos-vivos. Por sorte, a Kliren que os acompanhou findara a vida do conjurador sombrio antes que um dos mortos-vivos a derrubasse e os outros a devorassem.
Tinham ido até ali em cinco pessoas, mas agora eram apenas dois.
— Porcaria Magnus, você é um mago! Faça alguma coisa! — o anão reclamava enquanto decepava o braço de um dos inimigos.
— Eu não tenho mais forças pra isso! — bradou em resposta enquanto desmontava um esqueleto.
A horda parecia não ter fim, mesmo com o necromante derrotado, eles continuavam a proteger aquela ruína maldita onde estavam. O anão acertou um golpe forte em um zumbi corpulento e o impacto somado ao sangue que escorria por suas mãos fez a arma cair no chão. Antes de conseguir recuperá-la, outros quatro mortos-vivos já se apinharam sobre ele, que gritava enquanto era devorado vivo.
Magnus sondou os arredores com rapidez e, usando suas últimas reservas arcanas, saltou pelo vazio, reaparecendo à metros de distância. Correu como se sua vida dependesse disso, pois de fato, ela dependia. Entretanto, uma série de curvas erradas em meio aos escombros daquele lugar o levaram a um beco sem saída e logo os mortos-vivos o encurralaram.
Sorriu triste. Havia desertado do exército purista, enfrentado criaturas abomináveis de várias cabeças, resgatado inocentes... Tudo isso para acabar morto nas ruínas de um lugar esquecido pelos deuses.
— Logo estarei com você, Cassandra — lamentou brandindo pela última vez sua espada.
Quando a distância entre Magnus e a horda era quase inexistente, ouviu uma voz gutural entoando uma magia. Seu sangue gelou ao reconhecer as palavras que evocavam o poder pútrido da necromancia. Entretanto, todos os mortos-vivos pararam subitamente. Do meio deles, uma figura alta de cabelos escuros e com os olhos totalmente brancos se aproximava. Vestia uma armadura completa, escura como a noite. Trazia um pesado escudo com o emblema de Tenebra estampado e, talvez, a única coisa mais chamativa que as olheiras que aquele homem tinha, fosse a mokona de pé em sua cabeça, acenando para os mortos-vivos.
O homem que lutava por sua vida assumiu uma postura defensiva e aguardou pelo pior. Os olhos do recém-chegado voltaram ao normal e, como se percebesse a presença de outro ser vivo, disse:
— Eita, larga isso aí. Você pode machucar alguém com isso.
A voz, agora normal, acertou-o como uma pedrada.
— Endymion Karkarov? O orgulho de Tenebra? Clérigo da guilda de Eva?
— O próprio, mas eu acho que não te conheço.
O homem sondou rapidamente os mortos-vivos ao redor, eles pareciam que tinham um novo senhor agora. Embainhou a espada e permitiu-se suspirar. As dores pelo corpo durariam semanas.
— Eu me chamo Magnus, trabalho pouco para guilda, mas todos já ouviram falar de vocês, lendas. Especialmente daqueles que erguem cidades nos mais variados confins de Arton — deu uma pequena pausa para poder respirar aliviado mais um pouco. — Obrigado. Acho que eu teria um destino igual ao de meus amigos lá atrás se não fosse você.
A tristeza era nítida na voz abalada do homem.
— Não fique assim, a morte faz parte da vida. Eu vim por que fiquei sabendo de um maluco aí que estava trazendo mortos de muito tempo atrás de volta. Instigar a prática da necromancia é uma coisa, mas ficar criando hordas sem sentido é abominável e desrespeitoso com eles — gesticulava indicando os mortos-vivos.
— Especialmente quando esses monstros devoram você vivo.
O rosto de Endy endureceu.
— Monstros, é? E se eu mandasse eles arrancarem essa tua pele estampada com essa marca purista medonha, será que eles seriam os monstros? Quem é pior, um cadáver animado por trevas ou uma seita de lunáticos filhos da puta?
Os olhos do clérigo voltaram a ficar brancos e os mortos-vivos andavam lentamente na direção de Magnus. Seu coração disparou. Endy piscou forte, a horda parou novamente e ele voltou a encarar o homem assustado. Os olhos do mago pousaram em seu braço, a ilusão que ocultava a tatuagem da supremacia purista ainda estava ali.
— Nunca mais diga isso sobre aqueles que não podem se defender — o clérigo alertou. — E não seja idiota, existem mil maneiras de ver através de ilusões.
— Desculpe-me. Eu não queria ofender, de verdade.
— Mas vem cá, por que você não remove essa porcaria do braço?
— Todos temos marcas. Essa é para me lembrar do que um dia fui, e do que eu nunca mais posso ser.
Endy balançava a cabeça devagar enquanto ouvia. O desejo de manter algo oculto sempre o fascinavam. Eram os dogmas de Tenebra.
— Então vamos lá atrás e você me mostra onde tá o tal necromante, quero bater um papo com ele.
— Mas senhor Endymion, ele está mor…
Magnus parou a frase na metade quando percebeu o sorriso e olhar zombeteiro do clérigo sobre o que ele iria dizer.
— Para com isso, vai. Não sou tão velho pra ser um senhor. Me chame de Endy.
Magnus deu de ombros e levou-o até o local.
Com um verso em uma língua desconhecida e uma mecha de cabelo que esbranquiçava, Endymion trouxe o necromante de volta a vida. Indagou-o por alguns minutos sobre o que ele fazia, por que fazia e repreendeu-o pela forma como tratava os corpos reanimados. Durante esse período, Magnus recolheu os corpos de seus companheiros e dos outros mortos-vivos que haviam derrotado. Empilhou-os e preparou uma pira para queimar a todos.
Após o interrogatório, Endy permitiu que o necromante permanecesse morto e adicionou o corpo a pira. Fez uma missa rápida para que Tenebra recebesse seus filhos e, com um estalar de dedos, incendiou a grande fogueira que incinerava os corpos. Com o canto do olho, o clérigo viu o emblema que o homem segurava. Um martelo e uma espada num medalhão.
— A vitória a todo custo tem um preço amargo as vezes — era Endy.
Magnus apertou os lábios e olhou a medalha antes de encarar o clérigo que, de olhos fechados, aproveitava a mistura do calor da fogueira com o frio da noite.
— Eu segui os dogmas de Keen por toda minha vida e achei que a devoção a Arsenal supriria o vazio em meu peito — arremessou a medalha no fogo antes de concluir — , mas tem preços que não estou disposto a pagar pela vitória.
O clérigo sorriu e a dupla ficou ali em silêncio por um tempo. Repentinamente, Magnus lembrou-se das palavras que Endy disse mais cedo e indagou:
— Você não vai contar disso pra ninguém, vai? — indicava a tatuagem, agora visível sem a camuflagem ilusória.
O clérigo sorria.
— Que tipo de devoto de Tenebra eu seria se não soubesse guardar segredos? Você faz bem em esquecer um deus que não o acolhe como você gostaria, ninguém é obrigado a nada.
— Obrigado de novo por salvar a minha pele, eu sinto como se tivesse recebido uma nova chance de viver.
— Considere isso uma segunda chance de Tenebra, mas que você não precisou morrer para ganhar— riu.— Gostaria de um bom vinho? Logo vai amanhecer e não quero Azgher maculando minha pele perfeitamente banhada pela lua.
O homem assentiu e seguiu o clérigo. Naquele dia, escondidos do sol no vinhedo Negraluna, Magnus ouviu as histórias de Endymion. Escutou sobre como Tenebra o acolheu e como ela era boa para aqueles que se dedicavam. Aquele clérigo fazia o bem para todos, mesmo que sua bondade fosse invisível aos olhos da maioria.
Naquele dia, Magnus de fato morrera. Pois o que saiu daquele vinhedo na noite seguinte certamente era alguém diferente.
Era um homem com uma nova fé.