Natureza humana
Acordou de bruços, desnorteada. A mulher levantou-se com certo esforço e sentou-se na relva. Esteve deitada por tanto tempo que a sensação de equilibrar o próprio peso era estranha, engraçada até. Limpou os cabelos negros e curtos que estavam repletos de folhas e tentou se pôr de pé. Conseguiu.
— Eita — balbuciou, assustando-se com a própria voz. Fazia tempo que não ouvia a si mesma.
Olhou ao redor e sua vista foi se habituando a claridade aos poucos. Esteve no escuro por alguns dias e a luz quente do sol já formava gotículas de suor em sua testa. Suas maçãs do rosto — que normalmente já se destacavam — adquiriam um tom avermelhado, contrastando com sua pele branca. Resmungou alguma ofensa ao calor e começou a caminhar. Levou a mão ao rosto por impulso, procurando algo cobrindo sua face, mas não encontrou. Deu de ombros, estava na mata de qualquer forma.
Levou os pés a frente de maneira ritmada com facilidade e felicidade. Já não sabia há quanto tempo havia caminhado em um bosque pela última vez. Ouvia o grasnar de pássaros, o zunido de insetos e o coaxar de alguns sapos. Olhou para seus pés descalços e sorriu, adorava a sensação da terra entre os dedos. Um grunhido chamou sua atenção, apressou-se em meio as árvores esparsas e alcançou uma pequena clareira.
Uma criatura completamente desconhecida a ela estava caída com a perna dobrada em um ângulo esquisito. Parecia uma espécie de ave, porém com chifres de touro, e resmungou quando a viu. Tentando se afastar, mas a dor a impediu.
— Calma, calma. Tá tudo bem, eu só vou dar uma olhadinha.
Aproximou-se sem medo do animal desconhecido, mas o coração socava seu peito com preocupação. Analisou rapidamente e notou uma fratura das feias. Percebeu a similaridade da estrutura óssea do bicho com a de uma ave, só que muito mais robusto. Começou a pensar no que precisaria para ajudá-lo. Tala, sutura, panos limpos, água, álcool.
Não tinha nada disso.
Apertou os lábios e tocou o animal. Fez uma prece rápida, para que a criatura resistisse, iria procurar ajuda. Assustou-se com o brilho verde que emanou de sua mão. O animal reclamou, o osso se moveu sozinho e a ferida fechou. A ave-touro cambaleou e se pôs de pé. Grasnou e lambeu o rosto da mulher que observava aquilo estarrecida.
— Vejam só! Uma abençoada de Allihanna acabou de chegar! — a voz doce da barda atraiu a atenção da mulher.
— Gente — falou esticando a palavra — , eu só toquei nele e ele sarou. Que bizarro!
Ela encarava as próprias mãos, não entendia o que havia feito.
— Você orou, Alihanna atendeu. É assim que abençoados, clérigos e druidas fazem as coisas. O trobo parece feliz.
— Trobo? — disse confusa, desviando o olhar para a ave e fazendo cara de entendimento aos poucos.
Não precisou mais para a dahllan entender o que se passava ali.
— Você deve ter vindo de longe, assim, muito longe. Acho que chamam de “dimensão”. O que você acabou de fazer a gente chama de magia por aqui.
A mulher riu. Então notou a expressão séria no rosto da dahllan.
— Sério? Gente… — esticou a palavra de novo.
— Bem-vinda a Arbória, plano de Alihanna, deusa dos animais e da natureza. Eu não sei como você veio parar aqui, mas sinta-se em casa. Os bichos parecem gostar de você!
Saindo da mata, dois trobos se aproximavam do amigo que havia se ferido. Grasnaram baixinho e recém curado respondeu. Aprumaram-se sobre a mulher e a lamberam. Ela caiu rindo — a risada era contagiante e a dahllan riu junto. As aves touro se afastaram e partiram grasnando alegres.
— Que lugar interessante — a mulher disse sentando-se na relva novamente. — Ah, conte-me mais dessa tal magia. Como funciona? De onde vem? Do que se alimenta?
A mulher de cabelos rosa sentou-se no chão também. Retirou a corou dracônica da cabeça e apoiou-a no chão. Esteve entre dragões por tanto tempo que, às vezes, esquecia que era uma filha de Allihanna. Respirou fundo e sentiu a natureza ao seu redor, flores brotaram ao redor de onde suas mãos estavam apoiando o peso de seu corpo.
— É difícil explicar como ela funciona. Pra mim é como uma canção, um acalento que eu invoco do meu coração e que é personificado no plano físico. De onde vem? Dos deuses, da terra, de mim mesma. É difícil dizer, mas eu sinto como se eu pudesse fazer qualquer coisa, qualquer magia. Do que se alimenta? Isso é uma pergunta esquisita…
— Ah, é uma piada da minha terra, não dá bola. Adorei seu cabelo, minha irmã já deixou dessa mesma cor. E agora que você comentou sobre cantar, notei que sua voz é bem bonita.
A dahllan arregalou um pouco os olhos e corou um pouco. Não que ela não soubesse receber elogios, mas aqueles pareciam sinceros e despretensiosos, sem malícia alguma.
— Mas me conta, toda essa preocupação com o animal caído, o que você faz? — disse tentando esconder o rubor.
— Então — começou em tom de palestra, com um sorriso fácil que não saía do rosto — , eu sou médica veterinária, mas eu sempre estudei um monte de matérias correlatas. Eu acredito que não basta cuidar da saúde dos bichinhos sem entender eles. Por que eles comem certos alimentos, se faz bem pra eles, como cuidar da pelagem, da pele, redução de stress, evitar traumas, recuperação de contusões, medicina mais natural. Enfim, essas coisinhas — concluiu com um sorriso sapeca de quem percebeu que estava iniciando uma pequena aula sem querer.
A mulher de cabelos rosa ficou um tempo em silêncio. Não era só mais uma caipira que amava animais, deixou Arton e renasceu ali. Era uma estudiosa. Uma médica que havia atravessado o véu dimensional e foi parar ali. Agarrou sua coroa, ajeito-a na cabeça e se levantou; a mulher acompanhou o gesto.
— Bem, eu achei que ia te ensinar algo, mas é mais fácil você passar a eternidade me ensinando coisas pelo jeito — riu. — Venha, vou lhe mostrar a cidade aqui perto, eu gosto bastante do pessoal daqui. Depois posso te levar para conhecer o colegiado em um dos poucos centros mais urbanos de Árboria. Lá você vai poder aprender praticamente tudo sobre a vida animal daqui.
A mulher assentiu empolgada, mas franziu o cenho antes de seguir a dahllan.
— Vocês não têm um telefone, não? Eu precisava avisar umas pessoas.
— Olha, eu não sei o que é isso aí, mas pra enviar mensagens nós temos magias que fazem isso. Agora, se for pra você falar com o pessoal lá de onde você veio, só tome cuidado. Existe uma dimensão assombrosa e repleta de monstruosidades esperando desavisados cruzarem as realidades e caírem lá. Um sopro por aqui, outro por ali? Talvez seja possível, mas atravessar o véu? Não faça isso, de verdade.
— Tudo bem, sem problemas senhora— a mulher apenas assentia. Parecia compreender aos poucos como as coisas funcionavam por ali.
— Oh, senhora não, deuses, vou achar que estou envelhecendo! Pode me chamar de Prunna, tá bem? E você, como chama?
Ela abriu a boca para responder, mas parou antes de dizer qualquer coisa. Nem tudo era claro em sua memória. Lembrava de lugares, números, procedimentos cirúrgicos, pessoas. Contudo, alguns nomes — como o seu próprio — pareciam meio enevoados. Após um breve momento e algum esforço, conseguiu lembrar parte de seu nome. Deveria servir.
— Marina — disse com um sorriso bobo, mordendo o lábio.
**********************************
Em algum lugar, em alguma dimensão distante, um vento mágico conjurado de muito longe embalava uma borboleta. O inseto pousou em um muro para descansar. Um cachorro se aproximou e cheirou o pequeno animal, uma garota a viu e sorriu com olhos pesados.
Ela tirou uma foto de recordação e seguiu sua vida.
