O coração do deserto

Diogo Stone
5 min readJun 5, 2021

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O sol de fim de tarde ardia brando. O vento frio varria as areias do deserto, levando embora o calor do dia e trazendo o frescor da noite. Mesmo com o crepúsculo, a feira seguia movimentada, em polvorosa. O homem caminhava tranquilo entre as barracas, observando com calma os produtos ofertados e as pessoas que circulavam. Passeava quase despercebido em meio à multidão. Vestia roupas comuns de tons frios, feitas de tecido leve e solto sobre o corpo. Não carregava adornos, apenas um bastão finamente entalhado. Seu rosto angular e a pele oliva eram tão comuns que, talvez, a única diferença entre ele e a maioria das pessoas ali, fosse que ele não ostentava barba alguma e tinha os cabelos completamente raspados.

Demorou-se observando um jovem casal que negociava especiarias e frutas secas. O velho jogo de preços daquele calimshado, comum aos moradores de Zakhara. Feliz com a compra, afastaram-se da barraca e seguiram por um beco entre dois casebres.

Naquela ruela havia meia dúzia de pessoas sentadas e cabisbaixas. Suplicaram por dinheiro, mas a dupla apertou o passo, torcendo o nariz em aversão àquelas pessoas. O homem adentrou o beco e uma senhora com uma criança pediu por comida. De seu bolso, ele tirou duas tâmaras e as entregou. Seguiu seu caminho sob os agradecimentos que recebeu com um sorriso no rosto.

Agora ele próprio era alguém sem dinheiro e sem comida.

Parou ao final daquela rua e olhou para trás de cenho franzido. Observou ao longe o mercado que rugia com ofertas de comida, vestes, joias e muitas outras coisas — mas a sua frente a realidade era diferente. Haviam pessoas ali moribundas, famintas e doentes. “Como podem ver tantas pessoas passando dificuldade e não fazerem nada?”, praguejou em silêncio e acelerou o passo.

A noite havia caído e não demorou até que o homem alcançasse o casal que vira mais cedo. Acompanhava-os de longe, andando casualmente até um ponto mais afastado do centro da cidade. Foi então que ele correu como o próprio vento e, num impulso, acertou de ombros a figura que saltou de cima de uma casa sobre o casal — levando os dois jovens, ele próprio e a pessoa recém-chegada, ao chão. Com um salto, os dois últimos já estavam de pé.

O homem segurava o bastão atrás do corpo com uma das mãos e caminhava devagar e lateralmente. A pessoa a sua frente, com o rosto coberto, gracejava com sua faca curva enquanto andava no sentido contrário. Os jovens caídos estavam estarrecidos demais para gritar.

O primeiro movimento foi o da lâmina, desviada para o lado pela mão que não segurava o bastão. O chute que seguiu atingiu o homem na lateral do corpo e, rilhando os dentes, retribuiu girando o bastão que não acertou o rosto de seu oponente por um triz. A faca tentou encontrá-lo novamente, mas dessa vez, o bordão serviu como proteção e a abertura permitiu que ele acertasse uma cabeçada no meio do rosto de seu adversário.

Sangue escorreu do ferimento em seu nariz e sujou o pano que encobria sua boca. Sua voz suave soou abafada por trás da máscara improvisada.

— Sou uma mulher compassível, então vou permitir que você vá antes que se machuque. — A ameaça parecia vazia. — Eu não vou mais pegar leve com um guarda-costas de merda.

O homem ergueu uma sobrancelha.

— Perdão, mas eu não sou guarda-costas de ninguém. Apenas acho desnecessário derramamento de sangue. Aliás, por que você está fazendo isso?

— Não é da sua conta!

A mulher investiu contra ele, golpeando com agilidade e rasgando a roupa dele em vários pontos. Ela parou arfando e, lentamente, a roupa do homem ia ficando vermelha próxima ao local de alguns cortes.

— Você não quer matar ninguém — o comentário pareceu mexer com a mulher, que retesou o corpo ao ouvir aquelas palavras. — Você queria roubá-los?

Não houve resposta.

— Então que seja.

Com um movimento ágil, ele rodopiou para trás e atingiu a testa de cada um dos jovens que assistiam ao combate, nocauteando-os.

— Eu mesmo iria fazer isso, podemos fazê-lo juntos. — Ele sorria, ela riu. — Pode me chamar de Shin.

Balançando a cabeça, a mulher limpava o sangue de seu nariz e de sua lâmina, ainda desconfiada. Dando as costas a ela, Shin começou a revirar as bolsas e pegar as especiarias e frutas do casal. Ao se aproximar, ela notou que ele deixava algumas sobras para eles.

— Você não vai levar tudo?

— Todos precisam comer. Eu não sei se eles têm mais dinheiro, então vou levar uma parte para quem precisa e o resto eles podem ficar.

— Empatia por essas bandas é algo raro — a mulher dizia, retirando a máscara que encobria um nariz fino com uma argola dourada e lábios que sorriam zombeteiros.

— Empatia parece que se tornou algo raro entre a humanidade.

Após recolher parte das provisões, Shin se levanta e estende parte do que havia tirado do casal para a mulher, que recusa erguendo as mãos e balançando a cabeça.

— Eu não preciso, eu só… — mas sua voz morreu, sem conseguir completar.

Um silêncio longo e constrangedor se fez entre os dois, até ser quebrado por ele.

— Você luta bem. Seria de grande ajuda tê-la conosco lá embaixo.

— Lá embaixo?

— É como chamamos… bem. É como nós nos chamamos. Pegamos o que conseguimos e damos pra quem precisa. O povo daqui parece não querer enxergar a distância que separa as pessoas que vivem umas do lado das outras.

A mulher sorria ouvindo as palavras.

— Você tem razão. — As palavras soavam demasiadamente diplomáticas. — O calimsha daqui não se importa nem com o que as pessoas próximas a ele querem. Imagine com o que o resto do povo precisa. Mas devo pontuar que você fala com uma sabedoria que não é daqui.

— Eu sou um viajante. Sempre fui, na verdade. E agora eu preciso viajar antes que alguém apareça e veja eu todo cortado, dois jovens desacordados e uma mulher com uma faca; numa ruela escura.

Com uma reverência desajeitada, Shin se despediu, deu as costas a ela e começou a se afastar. Não demorou para que ele abrisse um sorriso ouvindo os passos abafados que corriam em seu encalço.

— É desrespeitoso deixar uma dama sozinha — ela comentou enquanto casualmente entrelaçava o braço no dele ao mesmo tempo que voltava a esconder o rosto com a máscara.

— Perdão, achei que você não viria.

— Parece uma grande aventura, Shin. E pode me chamar de Yshna.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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