O jogador oculto

Diogo Stone
4 min readApr 1, 2021

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A chuva rugia do lado de fora. Ela não tinha muito tempo, pois toda noite de tempestade, aquele homem vinha visitá-la. Aquele maldito. Educado, bem apessoado, eloquente — mas com um plano horrível e maligno. A mulher contava as gotas de chuva no vidro da janela com olhos semicerrados, murmurando algo numa língua esquecida. Atirou um punhado de serragem vermelha nas chamas e sentiu a sala expandir.

Foi como se sua alma fosse arrancada de seu corpo e passasse por um triturador. Avançou com velocidade, passando por todas as camadas objetivas e subjetivas do tempo e espaço. Atravessou os horrores da tormenta, de Arton e de outros mundos e universos inexplorados. Abriu os olhos em transe e encarou as chamas da sua lareira. Elas estavam estáticas como uma imagem criada pelas mãos de um pintor.

— Finalmente eu te achei, seu desgraçado…

Uma figura tremeluziu e apareceu na chama que ardia congelada, presa entre a realidade, a não-realidade, a criação, a anticriação e todos os outros entre meios que separavam o universo dela, do seu e do meu. A pessoa virou-se, revelando um rosto esquisito. Uma espécie de visor escurecido tapava seus olhos e detalhes dourados moldavam sua boca.

— Não é possível. Como você me achou, Moira?

A mulher sorriu em júbilo absoluto. Ele havia a reconhecido, então não havia dúvidas de que tinha chegado ao homem certo. Tinha que agir rápido.

— Você deve parar imediatamente! Não percebe?! Cada passo que eu tomo, cada gota de água que eu bebo, tudo é milimetricamente escolhido. Calculado. O tempo é uma grande equação e você não a compreende como eu. Sua influência aqui está atrapalhando tudo, adicionando variáveis que não existiam, poderes que eram desconhecidos, magias que ainda não foram escritas.

O rosto do homem permanecia estoico. Os olhos vidrados de Moira analisaram melhor e, só então, percebera que ele vestia um capacete, ocultando sua verdadeira identidade. Ela praguejou.

— Veja bem. Seu mundo é regido por leis; regras, como prefiro chamar. E essas regras não são definidas por mim, eu apenas reviso para que elas não causem perturbações maiores do que você pensa.

— Não me faça de idiota! — a mulher vociferava para a chama estática — Eu te vejo! Nas visões, nas transmissões do presente, nas percepções do futuro! Você sempre está lá, bagunçando as variáveis e colocando Arton em risco!

O homem riu, mas nada disse.

— Os cavaleiros do corvo vão deixá-los moles, achando que o batalhão é poderoso demais. Mas eles não foram capazes de vencer um filho de Ragnar. E aquele grupo ainda o matou! Isso não constava no continuum.

— Eu nem fiz nada. Prunna é a escolhida de Kally, foi ela quem torceu a realidade e mudou os eventos naquele dia.

— E a culpa dela ter sido escolhida é de vocês também!

As mãos do homem apareceram nas chamas, um gesto eximindo-o da culpa. Aquilo era feito de outra pessoa.

— Mu não poderia ter voltado! — ela continuava a disparar.

— Eu sei que você tem raiva do seu filho, mas isso aí já é maldade.

— Charlie era meu filho, Mu é outra pessoa — sua voz saiu fraca.

O esforço em manter a ligação estava sendo cobrado. Ela precisava convencer aquele sujeito a não interferir mais, mas não sabia como.

— Veja, Moira. Você sabe que toda essa sua percepção temporal só existe por causa de mim, né?

Até mesmo a chuva pareceu silenciar-se. Ela se sentou devagar, processando aquela informação. Seria verdade? Ou seria uma tentativa de distraí-la até que se cansasse e não conseguisse mais manter a ligação?

— Você espera Mikazuki quando as tempestades rugem. Ele vem e você não revela nada à ele. Você mexe seus pauzinhos dizendo que é para o bem dele, para seu plano dar certo. Mas na verdade, está fazendo o possível para cumprir o seu próprio objetivo. Você tentou convencer os Joiers de que seu foco é ajudá-los, mas eu e você sabemos que não é bem isso também.

— Chega! É você — ela apontava um dedo magro na direção das chamas — o fantasma que assombra minha mente. Que enevoa e atrapalha as minhas visões. É por culpa sua que tudo é difícil, que o tempo não obedece, que as contas falham. Mas você não vai me impedir, eu triunfarei!

O homem riu e esfregou a testa, balançando a cabeça. Parecia se divertir com a aflição dela.

— Tudo bem, Moira. Mas lembre-se: onde quer que você esteja, eu estarei lá. Os futuros que você ver, eu verei. Os planos que você tramar, eu saberei. Você segue as leis do seu universo, eu acompanho sua criação. Eu vejo vocês como uma prova de fogo para as regras que criamos e não há nada que você possa fazer para me impedir. Sou como um andarilho, um patrulheiro. Um dia você irá me entender, mas até lá, divirta-se brincando com o tamuraniano.

A mulher foi arrancada de seu transe pela batida à porta de sua cabana. Voltou a ouvir a chuva rasgar os céus e as chamas a crepitar. A imagem do homem havia desaparecido e os veios vermelhos da tormenta sumiam aos poucos de sua face velha e cansada. Havia exagerado. Aquilo era demais até para ela, talvez fosse hora de mudar seus planos.

Com muita dificuldade, pôs-se de pé. Estava exausta, mas tinha que confrontar Mikazuki ou ele poderia desconfiar de algo. O caminho até a porta era curto, mas, cansada como estava, parecia uma longa jornada por dentro de uma área de tormenta. Arrastando-se para receber seus visitantes, resmungava:

— Maldito seja você, Patrulheiro Fantasma!

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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