O Preço da Vitória
A clériga andava sorridente pelos largos corredores do templo. Admirava a pedra escura e as tapeçarias que pintavam cenas de grandes batalhas. Guerras que foram protagonizadas por várias lendas que já pisaram em Arton. Sentiu um orgulho tremendo de estar ali, de ser alguém tão importante ao clero que mantinha viva as memórias daqueles combates. Ao fundo do corredor, ostentado gloriosamente, havia uma pintura com imagem do Kishin. O construto gigantesco que seu patrono, Mestre Arsenal, usou para atacar o Reinado anos atrás. Alguns dizem que ele perdeu naquele dia, mas Thalyandra sabia que não. Tudo fazia parte do plano dele.
Seus passos ecoavam pesados e o som do chacoalhar de metal a agradava. Estava em casa e se sentia viva. Vitoriosa. Contudo, caminhou tão distraída que demorou para perceber que estava tudo silencioso. Um grito abafado e o arranhar de metal a despertou do êxtase em que caminhava. Amarrou o escudo ao braço, brandiu seu martelo de guerra e correu na direção do som. Virou o corredor e viu a capelã, que tantas vezes a tinha recebido, lutando contra uma entidade sombria.
Em um movimento ensaiado por uma vida de combates, Thalyandra saltou entre a mulher e a criatura, bloqueado um ataque de uma garra afiada. A clériga mal balançou com o golpe e sorriu sobre o ombro, encarando a capelã que a olhava com o rosto ensanguentado e cortado.
— Fique atrás de mim!
Avançando a passos firmes, empurrou a coisa para trás com seu escudo, acertando-a em seguida com seu martelo. A arma brilhou uma, duas, três vezes; e a cada impacto a sombra reduzia em tamanho e em periculosidade. A criatura tentou agarrar a cintura da clériga, mas com um movimento súbito, afastou a investida e golpeou onde deveria haver uma cabeça. Um som esganiçado cortou o ar e a sombra se desfez numa nuvem de fumaça. Voltou-se e foi em direção a capelã, que arfava sobre um joelho enquanto um brilho dourado emanava de sua mão — fechando as feridas de sua face.
— Você está bem? O que está acontecendo aqui? — perguntou ofereceu a mão para que a mulher se colocasse de pé.
— Vou sobreviver — disse aceitando o auxílio. — Que bom te ver Thalyandra de Carvalho, essas coisas malditas invadiram nosso templo, não sei o que são nem o que as motiva, mas não parece ser um ataque aleatório. Essas criaturas querem algo.
Não havia som de combates acontecendo, o que era esquisito.
— Então venha — a clériga ordenou já caminhando — , vamos mostrar pra eles que escolheram o templo errado para invadir.
Caminharam a passos dissimulados — ou assim tentaram — pois a clériga reverberava como o clangor de uma forja de guerra. De armas em punhos, Thalya e a capelã buscaram pelo templo qualquer indício de uma batalha. Contudo, tudo que encontraram foi um rastro de destruição e morte. Mergulharam até as salas mais profundas do local, apenas para encontrar uma cena lastimável com dezenas dos acólitos de Arsenal caídos. Mortos. A sala estava arrasada e parcialmente em chamas, mas a capelã se apressou em extinguir as chamas com uma prece rápida. Thalyandra apertou o punho que segurava o martelo de guerra e rilhou os dentes por trás da viseira do elmo. Era garotos e garotas, todos jovens e com muitas batalhas pela frente, mas não se deixaria abalar com isso — não podia.
Prendeu sua arma no cinto, uniu as mãos ainda com o escudo amarrado em seu braço e rezou em voz alta.
— Vocês não perderam, pois lutaram com bravura até o final. A vitória a todo custo, as vezes cobra caro, mas seu sacrifício foi em nome da derradeira vitória. Descansem agora, por que vocês cumpriram suas obrigações. Arsenal os receberá em seus eternos campos de guerra.
A capelã se aproximou da clériga com os olhos marejados, pousou a mão sobre o ombro da dahlan. Agora podiam ouvir o som do metal colidindo no pátio externo.
— Não temos tempo a perder, precisamos ajudá-los — Thaly assentiu e a dupla partiu.
Enquanto corriam, a dahlan brandiu novamente seu martelo de guerra. Olhou a arma que apresentava leves rachaduras e fez uma careta que ninguém viu. Sentia desprezo pelas criaturas que mataram aqueles jovens, raiva de não ter podido defendê-los; e apreensiva de que sua arma poderia falhar no momento que mais precisasse. Sacudiu a cabeça e tentou colocar esses pensamentos de lado, essas preocupações não podiam atrapalhá-la agora.
— O que quer que tenha invadido aqui, deve ser poderoso para deixar um rastro de morte como esse.
Arfando dentro de sua armadura, agarrou-se a única coisa que tinha que jamais falhara. Sua fé.
— Vamos matar esses filhos da puta.
As mulheres entraram correndo no pátio e com um aceno de cabeça mútuo, separaram-se. A capelã foi pra cima de um grupo de acólitos que lutavam contra várias sombras, ela golpeava e livrava os devotos das garras das criaturas. Thalyandra correu na direção oposta, para os fundos do pátio. No caminho, atingia as criaturas com seu martelo que brilhava a cada impacto. Seu escudo agia como uma muralha, atraindo garras inimigas de maneira sobrenatural. A clériga corria, saltava, batia e bloqueava com precisão, ritmo. Uma dança de sangue, metal e sombras que preenchia cada centímetro daquele local.
A batalha rugia com ferocidade e a guerreira sorria, extasiada pelo combate. Olhou sobre as cabeças dos acólitos e viu o grande golem de metal dourado brandindo Fragor, sua enorme marreta. Sua obra de arte. Seus olhos faiscaram ao vê-lo e correu ao encontro de seu amigo, derrubando uma sombra e bloqueando um golpe fatal em um acólito no caminho.
— Vauban! — bradou se colocando de costas para o homem de metal. — O que são essas coisas? Que porcaria está… — dor.
Thalyandra sentiu um impacto tremendo em suas pernas, erguendo-a do chão por breves segundos antes de cair ruidosamente sobre o piso de pedra. Seus olhos arregalaram-se quando viu seu amigo descendo a arma em sua direção. A clériga rolou para o lado enquanto a marreta esfacelava o chão ao seu lado. Observou com horror as sombras rodopiarem e envolverem seu amigo que havia dedicado a vida aquele lugar, aquelas pessoas. Teria sentido medo se Arsenal não a desse forças para vencer.
— Eu não sei quem são vocês, ou por que vieram. Mas escolheram o templo errado, o dia errado e especialmente, a clériga errada para irritar!
Com um brado, energias divinas douradas e roxas envolvem a dahlan que se atirava contra o golem. Testou um golpe forte e rápido, mas o golem aparou com o cabo de Fragor. Ele era ágil para alguém de seu tamanho. Thalyandra seguiu atacando, contornando-o e bloqueando os golpes da pesada arma dourada. O ribombar da marreta contra sua armadura só não era mais alto que o som das batidas de seu coração, pois quanto mais ela o feria, mais percebia que aquela sombra não deixaria seu corpo. Não enquanto seu núcleo funcionasse.
Cada ataque que a clériga bloqueava e revidava, era mais um pedaço do chassi de Vauban que se espatifava pelo chão. Por mais que não quisesse, sabia qual seria o custo daquela vitória. Com um último golpe de seu martelo, acertou o núcleo já exposto do golem, arremessando-o contra o chão duro que rachava sobre o peso do homem de metal. Esteve tão concentrada em seu duelo que mal notara que seus irmãos de fé seguiam lutando contra as criaturas. Viu a sombra nos olhos de Vauban desaparecerem quando um espasmo mecânico trouxe sua consciência de volta.
— Tha… ly… — a voz robótica danificada soou mais alta que o furor do combate.
— Vauban — a clériga chamou ajoelhando-se ao lado do golem — , o que aconteceu com você?
— Não temos… muito tempo… — o homem aproximou sua mão amassada do núcleo exposto — As sombras são… fruto da nossa ganância. Procuramos no lugar errado e… as trouxemos para cá.
Thalyandra olhou por cima do ombro, uma sombra arrancava a couraça de um acólito e começava a esmigalhá-lo. Pousou os olhos novamente no golem dizendo:
— Não sei o que você quer dizer com isso, mas espere aqui, voltarei quando vencermos.
— Não! — a voz robótica soou mais grave, corrompida. — Ele vai… voltar. A ganância é a praga que enfraqueceu meu metal. Eu quis demais, e trouxe a desgraça para cá. Mas você… você não é assim.
Com esforço, o golem arrancou as últimas proteções que sustentavam seu núcleo faiscante. Tomando-o entre seus dedos, urrando com o curto gerado em seus circuitos, removeu aquela peça que ficou presa por apenas alguns fios. A clériga presenciava a cena paralisada, estupefata, incrédula.
— Anos atrás, quando Arsenal lutou contra o Coridrian, fragmentos de seu metal mágico espalharam-se pelo Reinado — falava pausadamente, a voz enfraquecendo e sumindo. — Dessas sobras, Ballas, meu criador, prendeu minha alma a esta esfera. Desde que fui montado, jurei lutar em nome da guerra que me originou. Mas hoje, parto feliz.
Entregou o núcleo ainda eletrificado a clériga. O toque com a esfera fazia o braço de Thaly tremer e arder. Mas não largou a peça, não queria. Ficar presa aquilo mantinha seu amigo vivo. Um par de lágrimas duras escorriam em sua face escondida pelo elmo.
— É seu. Meu maior tesouro, meu último presente à futura sumo-sacerdotisa de Arsenal. Tome-o, tire de mim essa vida e acabe com minha ganância! Vitoria ontem — sua voz sumindo, seus olhos dourados se apagando — , vitória hoje, vitória amanhã.
Rilhando os dentes a clériga arrancou os últimos fios que sustentavam a vida de Vauban. De imediato, o estremecer da eletrocussão cessou e o chassi de seu amigo fraquejou e ficou inerte. Thalyandra seguiu noite a dentro lutando contra as sombras. Não bradou, não xingou, nem deu ordens; não falou mais nada naquele dia. Esmagava as sombras e encaminhava os sobreviventes à segurança. A vitória havia cobrado seu preço — e ela era amargo.
KLIRIAN.
Olhava pela janela do prédio. Via maravilhada todo o movimento na cidade, desde as carroças automatizadas até as luzes artificiais. Melmer era um gênio, mas além disso, era seu amigo. Havia perdido a conta de quantas batalhas venceram juntos. Contudo, a vida daquele local a entristecia. Inúmeros golens circulavam pela cidade, e os mais nobres e garbosos, decorados com detalhes elegantes de prata e ouro a lembravam de seu amigo do templo. A porta se abriu sozinha às suas costas e chamou sua atenção enquanto o kliren entrava limpando as mãos num pano.
— Não vai ser fácil — sua voz soava exausta — , mas já fiz os ajustes no chassi que estava muito danificado. A parte exterior não é um problema, temos material de sobra para fabricar golens aqui. Mas aquele núcleo, ah aquele núcleo… Com um pouco mais de estudos acho que dá para fazer os cálculos necessários para restaurar o backup dos dados neuro transmissores do Vauban. Podemos tentar captar as últimas informações de seus fotorreceptores para fazer uma espécie de triangularização de memória. Talvez ele perca algumas lembranças devido a fragmentação causada pelos impactos que ele sofreu, mas acredito que uma varredura aplicando alguma lógica de aprendizado mecanizado possa restaurá-lo a sua plenitude.
— Melmer, obrigada, mas eu não entendi porra nenhuma do que você falou.
— Ah — deixou escapar percebendo que falava usando termos técnicos. — Em resumo, acho que vai dar tudo certo.
Thalyandra suspirou aliviada. Havia deixado muito dinheiro para a reconstrução do templo de Arsenal e partiu para Klirian na esperança de que o amigo pudesse restaurar Vauban. Mas havia outro detalhe.
— E meu martelo, você arrumou?
Um autômato adentrou a sala atrás de um Melmer que sorria de orelha a orelha. Ele carregava um pesado martelo de guerra em suas mãos, uma obra de arte digna dos maiores artesões de Arton. O metal fosco brilhava tênue graças a seu encantamento, contudo, a clériga notara uma modificação que o kliren fizera. No centro de gravidade da arma, o núcleo de Vauban havia sido incrustado no metal meteórico. A arma faiscava em intervalos irregulares e a energia pulsava pelas rachaduras ainda visíveis na peça. Seu olhar treinado sabia que era intencional, pois a energia mágica e tecnológica que circulava nele jamais deixaria que o martelo se despedaçasse em suas mãos.
— Eu fiz uns ajustes, o núcleo serve como um contra peso e a eletricidade dele…
— Ficou melhor? — a clériga interrompeu.
— Ficou.
— Então está ótimo, eu não iria entender a explicação mesmo — riram, mas seu sorriso se desfez encarando o amigo. — Mas você não vai precisar do núcleo para… as coisas que você disse antes?
— Não. Eu já extraí tudo que precisava dele, pode ficar tranquila Thaly. Agora, com sua licença — com um maneio de cabeça Melmer e o autômato se despedem e voltam às suas tarefas, deixando Thalyandra sozinha.
A clériga balançou a arma algumas vezes, feliz com o resultado e ainda mais alegre com a notícia sobre Vauban. Ela havia vencido mais uma vez. Seu coração ribombava no peito e sentia os dedos formigarem com determinação renovada. Tinha certeza que iria até Odisseia confrontar Valkaria, iria se tornar sumo-sacerdotisa de Arsenal e venceria qualquer outro desafio que ainda surgisse. Sorriu para seu martelo de guerra.
— Triunfo — disse a ninguém. — Triunfo é um belo nome.