Partindo

Diogo Stone
12 min readAug 20, 2021

O guinchado agudo do freio do ônibus despertou o jovem rapaz sentado no banco, quase fazendo-o derrubar seu chapéu panamá branco no chão. Esfregou os olhos numa tentativa vã de afastar a preguiça e o sono de noites mal dormidas enquanto lia os letreiros dos veículos estacionados. Avistou o que procurava, ergueu-se e se espreguiçou. Um estalo indesejado fez seu corpo tremer e soltou uma reclamação para si. Dirigiu-se até a fila que já se formava para entrar no ônibus, munido apenas das roupas que vestia e uma mochila.

Encarou seu reflexo no vidro do ônibus conforme a fila andava devagar. Checou se seus cabelos, lisos e negros, estavam ajeitados e sorriu com lábios grossos para si.

— Miguel da Silva. Brasília? Vai pra longe, rapaz — o homem robusto de rosto pálido falava enquanto devolvia os documentos dele.

— Sabe como é seu Valdecir, passarinho cria asas e quer voar — disse com um sorriso torto antes de entrar.

Sentou-se no local indicado em sua passagem e respirou fundo. Seria uma viagem longa e que, certamente, faria com que pensasse demais em tudo que teria de enfrentar — ou pior, em tudo que enfrentara para estar ali.

Cochilou pelo que pareceu alguns minutos, mas acordou com uma dor lancinante no pescoço. O sol já havia caído e, pela janela, não via nada além de escuridão. Contudo, o silêncio durou pouco quando uma voz que denunciava uma idade mais avançada soou ao seu lado.

— Boa noite jovem.

— Boa noite doce senhora — devolveu escondendo um princípio de enfarto ao ouvir a mulher falando sem que ele tenha percebido que ela estava ali. — Eu me chamo Miguel, é um prazer ter sua companhia.

— Hmmm, educado. Eu me chamo Glória.

Após o susto inicial, não demorou para que a dupla se acomodasse em um papo tranquilo. A senhora falava sobre seus filhos que moravam longe. Contava empolgada de quando eram garotinhos e de como ela havia ficado confusa quando um deles contou que era, na verdade, sua filha — e que estava indo visitá-la, inclusive. Miguel, por sua vez, aproveitava aquela distração de seus próprios pensamentos. Contava peripécias do seu tempo de criança e de como deixava sua mãe de cabelos em pé com várias de suas artes, sempre tentando evitar citar seu pai.

— Você me parece familiar, garoto — ela disparou em dado momento da conversa.

— Minha mãe diz que eu sou muito parecido com meu pai — disse fechando a cara.

— Mas ele deveria ser muito bonito então! Se eu fosse uns anos mais nova, adoraria te conhecer por aí também — disse rindo num tom bonachão.

Contudo, por mais que sorrisse de volta para Glória, a menção de conhecê-lo por aí, levou a mente de Miguel para outros tempos; quase outra vida. O ruído baixo do motor do ônibus deu lugar ao som de uma guitarra mal equalizada e a voz rouca de alguém cantando algum cover da banda Matanza. O local era escuro e tinha um forte cheiro de cerveja. Miguel estava de pé com uma lata na mão enquanto coçava a barba de um homenzarrão que estava sentado. Os dois conversavam e bebiam com outros amigos enquanto trocavam beijos, como fizeram várias outras vezes. Mesmo nunca tendo um relacionamento de fato, gostavam de aproveitar momentos como aquele.

A banda fez uma pausa e, do meio da pequena multidão suada, uma mulher de longos cabelos negros, trajando uma jaqueta de couro e óculos escuros — embora fosse noite e um ambiente interno — se aproximou deles. Ela pegou a cerveja da mão do homem maior, bebeu e se afastou levando a lata consigo. Tudo isso enquanto fitava Miguel. A banda retomou com uma música mais agressiva e a mulher desapareceu no meio dos metaleiros alvoraçados.

— Quem é aquela, Jimmy? — o rapaz perguntou visivelmente interessado.

— Aquela é minha irmãzinha, Ramona.

Miguel bebeu um longo gole de sua cerveja, esfregando os lábios com as costas da mão e largou o restante com o grandalhão.

— Então me dá licença que eu vou lá apanhar de mulher bonita.

Sob o som estridente da guitarra, uma roda punk surgiu enquanto as pessoas se empurravam e balançavam as cabeças de um lado pro outro. Existe uma etiqueta harmoniosa nessas rodas e é preciso saber o momento exato quando se pretende cometer um equívoco fortuito. No momento correto, ou melhor, errado, Miguel entrou na roda levando um murro de Ramona. A etiqueta da roda entrou em ação, as pessoas pararam por uns instantes e, preocupada, ela afastou o rapaz antes do restante do pessoal retomar o furdunço.

Sentindo o sangue pulsar no local do impacto, Miguel podia ouvir a risada de Jimmy sobressaindo a guitarra enquanto ele e Ramona sentavam juntos em um sofá afastado da pista.

— Você tá bem? Tá maluco?

Era difícil saber se ela estava irritada ou preocupada, na verdade.

— Eu vou ficar bem, eu só queria falar contigo. Acho que escolhi uma hora ruim.

Ramona se empertigou no sofá e, nada discreta, olhou-o dos pés à cabeça. A pele escura dele brilhava de suor enquanto esfregava o rosto onde havia apanhado. Ela achou graça da forma como ele estava vestido, o chapéu panamá não combinava nada com a jaqueta.

— Falar, é Miguel?

— Opa, cê me conhece? — fez-se de desentendido.

— Ah, tenha dó. É claro que meu irmão falou de você. E, pelo visto, ele não mentiu sobre nada — Ramona também não era discreta para onde olhava.

*********

O sol começava a raiar no horizonte. Miguel havia se despedido de dona Glória e, agora, tomava um café da manhã silencioso em uma das paradas do ônibus. Não havia dormido durante a viagem, ansioso pela chegada em seu destino. Entretanto, a falta de sono decente começava a cobrar seu preço. Com o rosto apoiado em uma de suas mãos, bebericava um copo de café quente demais para ser tomado enquanto folheava uma revista sem prestar atenção no que havia escrito.

Parou por uns instantes numa página com rostos familiares. O título trazia a mensagem “Rebeldia & Delicadeza”, onde Ramona posava ao lado de uma campeã de balé, Anastácia. Riu para si e colocou a revista de lado. Bebeu o café distraído, queimando a língua e praguejando enquanto chutava a cadeira a frente, atraindo a atenção de todos a sua volta. Levantou constrangido e foi até o banheiro. Lavou o rosto, mas não havia papel. Respirou fundo.

O dia estava apenas começando.

Retomando a viagem, não demorou para que pegasse no sono, dada sua exaustão. Contudo, seu Olho da mente não permitia que relaxasse. Alguns hanyo têm a sorte de herdar atributos físicos de seus genitores. Escamas duras, penas flexíveis e garras afiadas são alguns exemplos; mas Miguel havia herdado uma mente afiada. E naquele momento, o Olho o fazia lembrar da revista que havia ficado no posto mais cedo e, dali, voltou sua atenção para uma de suas memórias.

Ramona posava fazendo diferentes caras e bocas, com diferentes roupas. Miguel acompanhava, fazendo caretas reagindo a cada uma das diferentes poses. Tudo para estragar o semblante sério daquela punk turrona. As vezes funcionava e ele comemorava o xingamento que recebia. A cena avançava mais rápido, como se o Olho soubesse que informação procurava naquela lembrança.

Saltou a janta num restaurante, a festa com música alta e cerveja gelada; saltou o entrelaçar de seus corpos em um quarto desarrumado e parou no meio da madrugada. Miguel, sem roupas e sem conseguir dormir, estava apoiado no parapeito da janela. Seu olhar vagava pelo céu estrelado entre as folhas de uma árvore e sua tornozeleira azul de contas pretas estava largada a sua frente. O barulho das cobertas o fez olhar por cima do ombro — para uma Ramona que vestia apenas a camisa dele, furtando um sorriso de seus lábios.

— Oh meu amor, cê não vai vir deitar, não? — qualquer um que ouvisse a voz sonolenta dela, duvidaria que era Ramona falando.

— Sem conseguir dormir? Preferi não te atrapalhar — ela se arrastava para fora da cama, abraçando-o pelas costas. — Você fica uma graça dormindo.

— Vai se foder, seu idiota — xingou sorrindo e dando um soco mole.

Um brilho chamou a atenção dos dois. A tornozeleira ressoava branda com nagen e, à medida que os segundos passavam, a luz ficava mais intensa. Então, na árvore próxima a casa, uma pequena forma se aproximava caminhando de maneira sinuosa sobre um galho.

“Por quanto tempo você vai fugir, Miguel?” era uma voz jovem, contudo, ela ressoava apenas na mente do rapaz.

— Você tá vendo isso? — Ramona indagou curiosa.

Concordando com a cabeça, Miguel respondeu telepaticamente o recém-chegado “Olha, eu não estou fugindo, não. E eu também nem sei quem é você.”, comentou se afastando um pouco da janela.

A figura se aproximou mais e o brilho intenso foi tomando uma forma felina. Ela avançava devagar, sem sequer envergar o galho pelo qual andava. Encarava o casal com um olhar duro, espreitando enquanto falava com Miguel: “Eu sou apenas um espírito que sabe de coisas que você é tolo demais pra perceber. Ou enxergar. Ou aceitar.”.

Com um bote, o espírito saltou para a janela. Miguel e Ramona colocaram dois passos de distância entre eles e o que, agora, podia ser distinguido como uma Jaguatirica que vibrava com nagen no mesmo tom da tornozeleira. O gato de quase um metro de comprimento farejou o objeto deixado sobre o parapeito antes de continuar “Veja só se não é outro filho do boto. Com toda essa malandragem você quer se convencer de que? Que você não é como seu pai? Ou que ser como ele é ruim?”.

Os olhos de Ramona saltavam do espírito pra Miguel. O silêncio do quarto era quebrado apenas pelo leve rosnar que o felino emitia.

— Eu vou bater nessa coisa.

“Gostei dela.” a jaguatirica disse com malícia.

— Cala a boca — Miguel respondeu em voz alta, deixando Ramona ainda mais confusa.

Circundando o casal, o animal espiritual seguia dizendo “Agora eu entendi. Amor, é? Você não quer ser como seu pai por que você acha que ele não é capaz de amar.” o espírito parou de repente; como se percebesse algo. “Não. Você se acha igualzinho a ele, não é mesmo? Acha que não merece o amor de alguém por que vai acabar fazendo como ele. Partindo.”.

A fera saltou na direção deles, mas a ligação mental permitiu que Miguel percebesse e empurrou Ramona para fora do bote. O homem caiu de costas, fazendo um barulho surdo e reclamando do impacto. Alguém no andar de baixo xingou para que os dois dessem um tempo, já era madrugada. A mulher se levantou e começou a caçar pelo Diálogo, seu taco de baseball, enquanto a jaguatirica continuava a falar na mente do homem caído.

“Negue, reclame, teime, ouse. Mas lembre-se, Miguel, suas escolhas são apenas suas. Talvez você não acredite em mim agora, mas eu estarei por perto quando você cair na real.”. Ele pensava em várias coisas, mas não era capaz de bolar uma resposta. Sentia a energia arder emanando daquele espírito, mas era algo acalentador, não ameaçador. Ameaçador era como Ramona se aproximava com o taco em mãos.

— Não, por favor. Não é preciso — suplicou.

— Miguel. Eu não sei se você percebeu, mas essa coisa está em cima de você!

— Acho que já resolvemos o que tínhamos pra resolver aqui.

O espírito liberou o peso que prendia o rapaz esguio no chão e voltou seu olhar para Ramona. Estranhamente, a rebelde abaixou sua arma enquanto o espírito se aproximava. Algo nele chamava sua atenção. O animal se aproximou e, gentilmente, esfregou o lado do rosto em suas pernas antes de desaparecer sem deixar rastros.

— Que. Porra. Foi. Essa. Miguel!? — Ramona indagou indignada, mais uma vez sob o protesto de alguém no andar de baixo.

“Não foi nada Ramona” disse a ela por telepatia, sem tirar as mãos do rosto.

“Não foi nada.”.

********

Acordado, porém ainda pensativo sobre a lembrança que viu durante seu sono, Miguel lia um livro sobre processo penal. Olhou pela janela do ônibus e, ao longe, podia ver o prédio da Pandora — a divisão de yuzas da ABIN. No dia seguinte faria a prova de admissão e estava bem tranquilo com isso. O exame para ingressar, com certeza, seria a parte mais fácil de seu plano para se tornar um agente. A mais difícil já tinha passado.

Passou para a próxima página e viu um bilhete que, um dia, esteve todo amassado. Tomou a nota em suas mãos, lendo repetidas vezes a frase inscrita nele e respirou fundo. Contra sua vontade, o Olho o fazia reviver mais uma vez uma cena de seu passado recente.

Do dia anterior para ser específico.

Ramona, possessa, o fitava com indignação.

— Brasília, Miguel? É longe pra caralho!

— Eu sei, eu sei. Por isso eu vim aqui falar contigo e…

— Porcos, Miguel! Porcos! — ela bradava com o dedo em riste, apontando para o rosto dele. — Você está me trocando pelos porcos!

O homem tirou o chapéu que sempre usava, levando uma de suas mãos aos cabelos. O respirador no topo de sua cabeça coçava em momentos como aquele.

— Não estou trocando nada, Ramona. Eu só não quero te meter nisso, e também não quero que fique esperando por alguém que nem sabe se vai voltar. Ou sobreviver, as missões da Pandora envolvem…

— Isso era pra fazer eu me sentir o que? Melhor?! — interrompeu ele mais uma vez. — Miguel. Miguelzinho. Escuta. Sozinho, você não vai conseguir usar o sistema. Ele é podre por dentro e vai sobrar pra ti.

— Eu sei disso, mas…

— Como pode alguém tão inteligente ser tão burro?

Praguejou algumas vezes até suspirar e o encarar em silêncio.

— Eu tenho ciência de todos os problemas que eu vou enfrentar — começou aguardando para se certificar que ela não interromperia dessa vez — , de toda a merda que pode cair no meu colo, de todo o lixo que posso ter que ver e aguentar. Eu sei que sozinho não é o ideal, mas é o que tem pra hoje. Você não foi chamada para o exame e nossos amigos daqui jamais teriam o decoro para ser um interno da ABIN. Além de que, de todas as divisões que existem, eu acredito que a Pandora é a com menos sujeira. Eu preciso tentar.

Ela balançava a cabeça negativamente. Os olhos dela pesavam como os dele, mas ela resistia às lágrimas; as dele escorriam.

— E se você não voltar?

— Diga pra todos que eu sinto muito.

— Diga você, seu idiota.

Um silêncio desconcertante se fixou entre eles por um tempo. Nenhum dos dois tinha coragem para retomar, mas também não tinham coragem para encerrar a discussão. Contudo, Ramona venceu o receio.

— Você quer saber mais sobre esses espíritos, é? Por que eles estão escondidos, por que não dão as caras, o que são, o que fazem… e você tem certeza que a Pandora tem os meios pra te ajudar a entender esse, esse… apagamento histórico que tá rolando?

Ele apenas concordava com a cabeça.

— Por que agora?

— Pois pode não haver tempo se deixar pra outra hora.

— Por que você?

— Eu sou parte deles. Há vários outros hanyo, mas poucos com a habilidade que eu carrego desde que nasci. Se aquela desgraça de jaguatirica aparecesse quando eu preciso, eu poderia obter respostas de outra maneira. Mas não, ela sempre aparece em momentos inoportunos. Então eu preciso fazer do jeito que eu conheço, do jeito que eu entendo. Que é usando a cabeça.

Ela continuava balançando a cabeça negativamente.

— E você vai parar no chiqueiro. Eu posso ser burra, mas se tem uma coisa que eu sei é que; pra polícia funcionar pro povo, tem que destruir a polícia e começar do zero. Com fundamentos decentes, com o bem do povo em mente e não defender organizações corruptas. Se não for do interesse da agência, você não vai mudar sozinho o sistema inteiro. A gente tem que dar porrada em tudo e começar de novo.

Miguel não respondeu. Nem poderia. Passos pesados, mas cautelosos, guiaram dois metros e vinte de Jimmy até o quarto onde os dois estavam.

— Oh, casalzinho.

— Não tem casalzinho — Ramona disse saindo do recinto.

Após os passos dela sumirem na distância, Jimmy foi o primeiro a falar.

— Cê vai praquela merda lá?

— Vou sim.

— Cê tá sabendo que ela te ama, né?

— Sei.

— E que ela tá assim porque tá chateadíssima, né?

A resposta era só um abano de cabeça e uma tentativa falha de conter lágrimas. O Olho avançou a cena mais uma vez, para Miguel chegando em casa com a porta arrombada. Seu quarto estava uma zona e os ternos que tinha comprado, os que usaria no trabalho na Pandora, estavam rasgados. Sobre os frangalhos dos paletós, uma nota em letras garrafais onde, no garrancho inconfundível de Ramona, lia-se: VAI SE FODER, SEU IDIOTA.

Piscando várias vezes, conseguiu encerrar a lembrança que o Olho insistia em ver. Encarava agora aquele mesmo papel, embora um tanto amassado. Aquela era uma recordação de um laço que ele precisaria reatar no futuro. Sabia que, por trás daquela parede de músculos e ofensas fáceis, existia um coração que ele havia partido em pedaços. Pedaços que ele faria questão de juntar mais uma vez, não importava o quanto precisasse se esforçar.

Havia coisas que a distância não conseguiria destruir.

O ônibus parou, chegando em seu destino. Miguel aproximou o papel do rosto e respirou fundo. O perfume de Ramona ainda podia ser sentido no bilhete.

Sorriu triste e seguiu em frente.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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