Planos e Surpresas
Curvado sobre a mesa, o homem em sua armadura de metal fosco rabiscava um pergaminho com agilidade. Sentado à sua frente, trajando apenas mantos leves, seu amigo de longa data apoiava o queixo quadrado entre os dedos — encarando o teto e proferindo uma vastidão de palavras.
— Árvore, tronco, galho, armação, suporte, alicerce, haste, mastro, lenha.
O paladino limpou o suor da testa. Fazia um calor infernal em Dubai-Ptra, mas se recusou a tirar a couraça. Logo estaria em movimento outra vez, pois um devoto de Valkaria nunca parava. Mal levantou a pena do papel e já havia perdido umas quatro palavras. Balançou a cabeça e abanou a mão.
— Calma, calma, calma. Qual é, Will. Eu não escrevo tão rápido assim!
— Desculpa, acabei me empolgando — disse baixando o olhar para o amigo. — Theikos, por qual motivo você está fazendo… isso?
O paladino franziu o cenho e o encarou por um tempo, pensando na melhor resposta para dar. Mas desistiu e deu de ombros.
— Ah, eu quero surpreendê-la, sabe? Eu gosto muito dela. Aquele sorriso, o cheiro, os trejeitos…
— A maneira como ela esmaga crânios — William complementou pegando uma caneca de bebida sobre a mesa e oferecendo outra à Theikos.
— Especialmente o jeito que ela esmaga crânios — o paladino concordou aceitando a bebida.
O guerreiro sorria como um adolescente, mas a expressão de Will era preocupada. Sabia muito bem os deveres de sacerdotes dos deuses e tinha certeza dos sentimentos do amigo por Thalyandra. Contudo, temia que sua deusa padroeira também soubesse.
— Você sabe que Valkaria…
— Sei — interrompeu. — E, sinceramente, eu tenho medo de como isso pode acabar.
Ficaram um tempo em silêncio. Não havia uma saída para um devoto da ambição. Theikos teria que escolher entre ser ele mesmo, ou abrir mão disso para estar com sua amada. Essa era uma escolha que ele não estava pronto para fazer.
— O amor pode ser amedrontador as vezes — Will começou.
— Estamos falando do sentimento ou da Kiara?
— Vai à merda.
Riram e beberam de suas canecas.
— O que eu estava dizendo, é que o sentimento por si só, é assim. Nos deixa vulneráveis, expostos. Desprevenido e de guarda baixa — sem notar já começava a comparar com um combate.
— Quem dera o medo fosse só o de me abrir — recostou-se na cadeira, alongando as costas sob o peso da armadura que mal atrapalhava seus movimentos.
— Você sabe que vai precisar dizer isso a ela, não sabe?
O paladino apertou os lábios olhando a lista que fazia. Tantos foram os sinônimos que separou para inventar algo para agradá-la, tantos foram os quilômetros que percorreu visitando templos de Valkaria — no fim — só queria estar de volta a taverna, envolto nos braços dela. E era exatamente esse pensamento que o preocupava.
— Eu não quero perde-la Will, mas também não posso desistir de quem eu sou. Ela não me amaria se eu fosse um derrotado a ponto de abdicar a mim mesmo. Ela ama a vitória e os vitoriosos.
— Palavras sábias vindo de você — o homem tentava segurar o riso.
— Vai à merda você também.
Os dois riram novamente. Acalmava Theikos saber que seus amigos sempre estariam ali para o que precisasse, e o plano que começava a traçar era tão insensato que precisaria de todo apoio possível.
— Eu estive pensando…
— Isso é novidade — Will interrompeu.
— Escuta, isso é sério! — seu amigo se atirou contra a cadeira, curioso. — Eu andei bolando um plano um tanto insensato e potencialmente suicida para resolver esse problema. Os preceitos que nós seguimos são designíos dos próprios deuses. Eles acreditam que, obedecendo a certas restrições, poderemos trilhar nossos caminhos de forma a fortalecer seus domínios e espalhar a palavra deles. Por isso eu não paro, por isso sempre quero mais, por isso Thaly desconhece a derrota.
William estava surpreso. Nunca tinha ouvido Theikos falar com tanta sobriedade sobre os deveres sacerdotais que um paladino tinha. Na verdade não conseguia se lembrar da última vez que teve uma conversa séria com ele.
— Em outras palavras; se Valkaria soubesse que a mulher que eu amo é o combustível que inflama minha vontade de desbravar novos horizontes? E se a Thaly for o motivo pelo qual eu pretendo singrar os céus até Odisseia e confrontar a líder do Panteão para ter aquilo que ela julga proibido? Qual rebeldia seria maior do que se voltar contra a própria criadora dessas regras?
Will se pôs de pé, derrubando a cadeira e se apoiando na mesa enquanto olhava espantado.
— Você quer desafiar Valkaria para ficar com a Thalyandra?! — falou tão alto que Kiara provavelmente tinha os ouvido do outro lado da mansão.
— Claro que sim! Eu amo aquela mulher! — o paladino bradou em resposta, também ficando de pé a batendo a mão na mesa.
Os amigos se olharam. Reconheciam a tempestade de ideias que começava a se formar por trás dos sorrisos que pintavam seus lábios.
— Certo — o homem em roupas leves começou — , vamos precisar da Kiara. Além de linda, ela é excelente com palavras. Tenho certeza que conseguiria enrolar até mesmo Valkaria.
— Tem o Pitre também, o desgraçado é tão bonito que duvido que a deusa da ambição não queira um pedaço dele.
Voltaram a sentar e Will fazia pequenos desenhos com as mãos enquanto falava.
— Vamos precisar de um dos barcos malucos do Melmer para chegar lá. Talvez a Lavanda possa dar um jeito nisso também, ela não é muito inteligente, mas é muito sábia. Aliás, acho que ela ficaria muito feliz de poder celebrar um casamento que até hoje é proibido.
— Acho que o Amaral também seria de grande ajuda. Se precisarmos brigar, ele é o homem certo pra sair no soco com Valkaria.
Os dois ficaram em silêncio. Theikos balançava as pernas, já estava ansioso para partir mais uma vez. Precisava vê-la, tinha que contar do seu plano. Quanto mais pensava na ideia, mais ridícula ela parecia, mas se houvesse uma chance de terem o que queriam, iriam agarrá-la.
— Certo, você busca mais informações sobre isso tudo e eu vou até Valkaria contar para Thaly — pegou novamente a pena e o pergaminho — , mas primeiro, vamos terminar essa lista. Adjetivos agora, por favor.
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Era uma manhã agradável de outono e o paladino cruzava a cidade como um raio. Entrou a passos largos na taverna, já não aguentava mais esperar para vê-la. Quase atropelou o hynne que servia café da manhã para uma jovem clériga de Tanna-Toh e subiu o lance de escadas em apenas duas passadas. Esgaçou a porta do quarto de Thalyandra sem cerimônia enquanto a cumprimentava a plenos pulmões:
— Bom dia, minha árvore de aço-rubi!
A última coisa que se lembra antes de perder a consciência, foi da maça da clériga o acertando entre os olhos.