Capítulo 1: Precisamos falar sobre a Prunna

Diogo Stone
6 min readSep 24, 2020

O jovem Enki desbravando os mares. Arte pela inexorável @iwakika.

O homem tamborilava os dedos contra a mesa da taverna, encarando o garoto a sua frente com uma expressão dura vincando sua pele negra. O rapaz encara o chão com um olhar triste. O menino é uma mistura de características exóticas. O cabelo rosa ajeitado em tranças embutidas que desciam até o meio de suas costas, a pele pálida salpicada de escamas esverdeadas, escamas que cobriam metade de seu rosto, onde um olho amarelo vívido fazia par a um castanho claro. Quando suspirava, seus pequenos dentes serrilhados ficavam visíveis.

— Enki — o homem começou ajeitando o chapéu sobre a mesa a sua frente — , você sabe que fez besteira, né?

— Desculpa, não foi por mal tio Mu — choramingou.

— Ah, cara. Eu sei que não foi. Mas olha só, você não pode ficar soltando os peixes que os pescadores ralaram pra pegar! — gesticulava pela janela da taverna, em direção ao porto. — É o sustento deles. É comida.

— Mas eles estavam pedindo ajuda!

Mu suspira e esfrega os olhos. Cuidar de uma criança de dez anos certamente não é algo fácil. Principalmente quando essa criança é um meio-dragão, filho de Benthos, deus menor e rei dos dragões marinhos.

— Eu sei que você começou a falar com os peixes.

— Com toda a vida marinha — interrompeu o rapaz. — e eles são meus amigos e o tio me ensinou que os amigos são…

— A coisa mais importante que temos — falaram em uníssono.

Um silêncio se instalou entre os dois. Momentos como esse têm se tornado recorrentes. A mente de Enki não parecia acompanhar seu corpo. O vocabulário e a compreensão do mundo que o garoto tem não é algo natural.

— Queria ver meu pai — reclama baixinho.

— Eu não contaria com isso. Desde que… — parou engasgando o nome — Prunna sumiu, ele não deu mais as caras. Não olha mais por nós. Partiu dizendo estar acabado, triste, desolado. Ajudar que é bom… Estamos melhor sem ele — mentiu.

— Sinto saudades da mamãe.

— Eu também — Mu concordou.

— Eu também — uma terceira voz, melodiosa e serena, concordou.

— Tia Sedry!

Levantando-se da mesa, o rapaz se atira num abraço apertado contra a cintura da elfa recém chegada, afundando seu rosto em suas vestes de clericais.

— Espero que o Mu esteja sendo legal com você.

— Ele é teimoso — riu o garoto.

— Então vocês têm muito em comum.

— Hey! Eu posso ouvir vocês dois daqui, sabiam? — bradou jogando os braços pra cima.

Afagando a cabeça do menino, a mulher se aproxima da mesa levando um Enki agarrado a ela. O broche prateado no formato de um arco chamava atenção, nem todos tinham coragem de ostentar o símbolo sagrado de Glórienn.

— Que tal brincar lá fora? Só não destrua nada, pois seu tio não vai ter grana para pagar.

O rapaz assentiu sorrindo e saiu correndo taverna a fora.

— Sedrywen! — saudou com um grande sorriso. — Quanto tempo! Caraca, fazem uns dois anos, né? Senta aí, vamos bater um papo, divide uma bebida comigo, se você puder pagar é claro. O Enki acabou com as minhas moedas depois de soltar uma rede cheinha de peixes de volta no mar.

Rindo, a elfa pede duas cervejas.

— Ah, agora você ri né? Mas quando ele chamou aquela turba de bichos marinhos, montou numa baleia e sumiu em baixo d’água você quase enfartou!

— Eu lá ia saber que ele conseguia respirar lá em baixo com seis anos?

Os dois riram juntos bebendo dos canecos que foram postos à mesa.

— Mu — começou cautelosa — , nós precisamos falar sobre a Prunna.

— Ah ele já sabe — dando de ombros. — Alguém contou pra ele sobre a tormenta e o que aconteceu naquele dia, lembra? — reclamou encarando sua cerveja e lembrando do tamuraniano que contara o ocorrido.

— Estou falando de você — comenta afagando os cabelos revoltos do homem. — Dessa sua obsessão por respostas, pela tempestade de sangue e ácido, por aquele lugar horroroso.

— Eu nunca parei de pensar nisso — agora olhava a amiga nos olhos — e eu descobri muito mais sobre aquele lugar. Sobre aquilo. Não era uma área de tormenta, é algo maior, pior. Mas eu preciso saber mais sobre como enfrentá-los, sobre o que era aquela porcaria.

— É por isso que estão indo pra Tamu-Ra?

Recostando-se a cadeira com os olhos arregalados, perguntou boquiaberto.

— Como você sabe?

— Um cara navegando por aí, com uma criança assim especial, juntando recursos para ir até uma terra tão distante? As pessoas comentam por aí — constatou com um sorriso zombeteiro.

Mu dá de ombros.

— A última vez que estivemos por lá tinha um culto maluco a Lamashtu juntando os rubis da virtude. Não pode estar pior do que naquela época. Eu preciso aprender mais sobre esses invasores — distraiu-se olhando pela janela, observando o rapaz meio-dragão brincar com algumas crianças antes de retomar. — Espero que o Zanshin nos receba por lá e nos ajude com o Enki. Sei lá, eles são semideuses, devem se entender.

— Fazem seis anos que não o vemos, né?

— E ele não enviou uma carta sequer! Dá pra acreditar? Nem deve mais saber quem somos…

— Não fala besteira Mu! — repreendeu emburrada. — É do Zanshin que a gente tá falando, cara.

— Desculpa — fez um muxoxo. — É que eu fico chateado quando lembro que ele não ficou de boca fechada quando o menino perguntou sobre o que houve com a Prunna.

Um minotauro enorme passa pela mesa deles e cospe próximo, passando os olhos pela elfa e desdenhando sem interromper seu passo.

— Deusa horrorosa. Deveria sentir vergonha de ostentar essa mácula — comentando sobre o símbolo sagrado que a elfa carregava.

Sedrywen balança a cabeça em desaprovação e segura o braço de Mu que já se levantava para tirar satisfação.

— Não, não adianta. Nem eu sei por que ainda carrego esse broxe depois de tudo que testemunhei — sua fala é triste. — Eu também pesquisei sobre a tormenta depois do que houve em Tiberius. Ouvi histórias horríveis retratando acontecimentos de mais de vinte anos atrás, em que Glorienn trazia uma tempestade à Arton. Uma tempestade de sangue e ácido.

Um breve silêncio se fez entre eles, não inamistoso ou constrangido. Apenas firmando que entendiam a dor um do outro, e que podiam contar com sua amizade para se sustentarem em tempos de necessidade.

— Tem um navio partindo pra Tamu-Ra em dois dias — a elfa interrompeu o silêncio. — Acho que vou até lá descobrir mais sobre tudo isso.

— Não sei se o capitão aceitaria você — brincou.

— Você acha que eu vou te deixar atravessar o oceano com o Enki? Sem supervisão? — revirou os olhos. — Nunca. Vocês precisam de um adulto.

Pegando seu chapéu sobre a mesa, Mu se levanta e comenta evitando o olhar da amiga.

— O que me faltava era coragem para ir atrás dessas respostas, mas agora acho que está na hora.

— Mesmo? Você? — comentou risonha — E o que te fez mudar de ideia assim de repente?

— A coragem veio até mim, numa taverna fedorenta e cheia de marujos fedendo a peixe. Chegou na forma de uma beata de Glórienn, que manteve sua fé mesmo não tendo as respostas que precisa sobre sua deusa — agora Mu sorria para uma Sedrywen um pouco corada. — A verdade é que tenho medo de descobrir que a Prunna se foi de verdade — concluiu com tristeza e o sorriso minguando.

— Temos que acreditar que alguém pode sobreviver à tormenta e sair são e inteiro e forte. Eu tenho que acreditar nisso. Por Glórienn.

— E por Prunna — concluiu.

****************************************

O navio balançava suavemente. A noite de lua cheia espalhava a luz cálida de Tenebra sobre o mar calmo. Fazia três dias desde que tinham deixado o porto e a viagem seguia tranquila, com bons ventos e sem indícios de tempestades. O jovem Enki acorda de supetão e se levanta de sua rede, todos os outros dormiam.

Sonolento, caminha até uma das escotilhas e vislumbra o oceano, sentindo cada ser vivo nadando nos arredores. Notando uma presença gigantesca longe da embarcação — e olhando com mais firmeza — o jovem vê algo de relance. Uma cabeça reptiliana gigantesca, espreitando meio submersa. Os olhos amarelos da criatura encontraram os seus e seu coração ficou leve.

Acalentado, o menino voltou para sua rede e dormiu tranquilo. Pois seu pai, rei dos dragões marinhos, olhava por ele.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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