Capítulo 1: Precisamos falar sobre a Prunna

O homem tamborilava os dedos contra a mesa da taverna, encarando o garoto a sua frente com uma expressão dura vincando sua pele negra. O rapaz encara o chão com um olhar triste. O menino é uma mistura de características exóticas. O cabelo rosa ajeitado em tranças embutidas que desciam até o meio de suas costas, a pele pálida salpicada de escamas esverdeadas, escamas que cobriam metade de seu rosto, onde um olho amarelo vívido fazia par a um castanho claro. Quando suspirava, seus pequenos dentes serrilhados ficavam visíveis.
— Enki — o homem começou ajeitando o chapéu sobre a mesa a sua frente — , você sabe que fez besteira, né?
— Desculpa, não foi por mal tio Mu — choramingou.
— Ah, cara. Eu sei que não foi. Mas olha só, você não pode ficar soltando os peixes que os pescadores ralaram pra pegar! — gesticulava pela janela da taverna, em direção ao porto. — É o sustento deles. É comida.
— Mas eles estavam pedindo ajuda!
Mu suspira e esfrega os olhos. Cuidar de uma criança de dez anos certamente não é algo fácil. Principalmente quando essa criança é um meio-dragão, filho de Benthos, deus menor e rei dos dragões marinhos.
— Eu sei que você começou a falar com os peixes.
— Com toda a vida marinha — interrompeu o rapaz. — e eles são meus amigos e o tio me ensinou que os amigos são…
— A coisa mais importante que temos — falaram em uníssono.
Um silêncio se instalou entre os dois. Momentos como esse têm se tornado recorrentes. A mente de Enki não parecia acompanhar seu corpo. O vocabulário e a compreensão do mundo que o garoto tem não é algo natural.
— Queria ver meu pai — reclama baixinho.
— Eu não contaria com isso. Desde que… — parou engasgando o nome — Prunna sumiu, ele não deu mais as caras. Não olha mais por nós. Partiu dizendo estar acabado, triste, desolado. Ajudar que é bom… Estamos melhor sem ele — mentiu.
— Sinto saudades da mamãe.
— Eu também — Mu concordou.
— Eu também — uma terceira voz, melodiosa e serena, concordou.
— Tia Sedry!
Levantando-se da mesa, o rapaz se atira num abraço apertado contra a cintura da elfa recém chegada, afundando seu rosto em suas vestes de clericais.
— Espero que o Mu esteja sendo legal com você.
— Ele é teimoso — riu o garoto.
— Então vocês têm muito em comum.
— Hey! Eu posso ouvir vocês dois daqui, sabiam? — bradou jogando os braços pra cima.
Afagando a cabeça do menino, a mulher se aproxima da mesa levando um Enki agarrado a ela. O broche prateado no formato de um arco chamava atenção, nem todos tinham coragem de ostentar o símbolo sagrado de Glórienn.
— Que tal brincar lá fora? Só não destrua nada, pois seu tio não vai ter grana para pagar.
O rapaz assentiu sorrindo e saiu correndo taverna a fora.
— Sedrywen! — saudou com um grande sorriso. — Quanto tempo! Caraca, fazem uns dois anos, né? Senta aí, vamos bater um papo, divide uma bebida comigo, se você puder pagar é claro. O Enki acabou com as minhas moedas depois de soltar uma rede cheinha de peixes de volta no mar.
Rindo, a elfa pede duas cervejas.
— Ah, agora você ri né? Mas quando ele chamou aquela turba de bichos marinhos, montou numa baleia e sumiu em baixo d’água você quase enfartou!
— Eu lá ia saber que ele conseguia respirar lá em baixo com seis anos?
Os dois riram juntos bebendo dos canecos que foram postos à mesa.
— Mu — começou cautelosa — , nós precisamos falar sobre a Prunna.
— Ah ele já sabe — dando de ombros. — Alguém contou pra ele sobre a tormenta e o que aconteceu naquele dia, lembra? — reclamou encarando sua cerveja e lembrando do tamuraniano que contara o ocorrido.
— Estou falando de você — comenta afagando os cabelos revoltos do homem. — Dessa sua obsessão por respostas, pela tempestade de sangue e ácido, por aquele lugar horroroso.
— Eu nunca parei de pensar nisso — agora olhava a amiga nos olhos — e eu descobri muito mais sobre aquele lugar. Sobre aquilo. Não era uma área de tormenta, é algo maior, pior. Mas eu preciso saber mais sobre como enfrentá-los, sobre o que era aquela porcaria.
— É por isso que estão indo pra Tamu-Ra?
Recostando-se a cadeira com os olhos arregalados, perguntou boquiaberto.
— Como você sabe?
— Um cara navegando por aí, com uma criança assim especial, juntando recursos para ir até uma terra tão distante? As pessoas comentam por aí — constatou com um sorriso zombeteiro.
Mu dá de ombros.
— A última vez que estivemos por lá tinha um culto maluco a Lamashtu juntando os rubis da virtude. Não pode estar pior do que naquela época. Eu preciso aprender mais sobre esses invasores — distraiu-se olhando pela janela, observando o rapaz meio-dragão brincar com algumas crianças antes de retomar. — Espero que o Zanshin nos receba por lá e nos ajude com o Enki. Sei lá, eles são semideuses, devem se entender.
— Fazem seis anos que não o vemos, né?
— E ele não enviou uma carta sequer! Dá pra acreditar? Nem deve mais saber quem somos…
— Não fala besteira Mu! — repreendeu emburrada. — É do Zanshin que a gente tá falando, cara.
— Desculpa — fez um muxoxo. — É que eu fico chateado quando lembro que ele não ficou de boca fechada quando o menino perguntou sobre o que houve com a Prunna.
Um minotauro enorme passa pela mesa deles e cospe próximo, passando os olhos pela elfa e desdenhando sem interromper seu passo.
— Deusa horrorosa. Deveria sentir vergonha de ostentar essa mácula — comentando sobre o símbolo sagrado que a elfa carregava.
Sedrywen balança a cabeça em desaprovação e segura o braço de Mu que já se levantava para tirar satisfação.
— Não, não adianta. Nem eu sei por que ainda carrego esse broxe depois de tudo que testemunhei — sua fala é triste. — Eu também pesquisei sobre a tormenta depois do que houve em Tiberius. Ouvi histórias horríveis retratando acontecimentos de mais de vinte anos atrás, em que Glorienn trazia uma tempestade à Arton. Uma tempestade de sangue e ácido.
Um breve silêncio se fez entre eles, não inamistoso ou constrangido. Apenas firmando que entendiam a dor um do outro, e que podiam contar com sua amizade para se sustentarem em tempos de necessidade.
— Tem um navio partindo pra Tamu-Ra em dois dias — a elfa interrompeu o silêncio. — Acho que vou até lá descobrir mais sobre tudo isso.
— Não sei se o capitão aceitaria você — brincou.
— Você acha que eu vou te deixar atravessar o oceano com o Enki? Sem supervisão? — revirou os olhos. — Nunca. Vocês precisam de um adulto.
Pegando seu chapéu sobre a mesa, Mu se levanta e comenta evitando o olhar da amiga.
— O que me faltava era coragem para ir atrás dessas respostas, mas agora acho que está na hora.
— Mesmo? Você? — comentou risonha — E o que te fez mudar de ideia assim de repente?
— A coragem veio até mim, numa taverna fedorenta e cheia de marujos fedendo a peixe. Chegou na forma de uma beata de Glórienn, que manteve sua fé mesmo não tendo as respostas que precisa sobre sua deusa — agora Mu sorria para uma Sedrywen um pouco corada. — A verdade é que tenho medo de descobrir que a Prunna se foi de verdade — concluiu com tristeza e o sorriso minguando.
— Temos que acreditar que alguém pode sobreviver à tormenta e sair são e inteiro e forte. Eu tenho que acreditar nisso. Por Glórienn.
— E por Prunna — concluiu.
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O navio balançava suavemente. A noite de lua cheia espalhava a luz cálida de Tenebra sobre o mar calmo. Fazia três dias desde que tinham deixado o porto e a viagem seguia tranquila, com bons ventos e sem indícios de tempestades. O jovem Enki acorda de supetão e se levanta de sua rede, todos os outros dormiam.
Sonolento, caminha até uma das escotilhas e vislumbra o oceano, sentindo cada ser vivo nadando nos arredores. Notando uma presença gigantesca longe da embarcação — e olhando com mais firmeza — o jovem vê algo de relance. Uma cabeça reptiliana gigantesca, espreitando meio submersa. Os olhos amarelos da criatura encontraram os seus e seu coração ficou leve.
Acalentado, o menino voltou para sua rede e dormiu tranquilo. Pois seu pai, rei dos dragões marinhos, olhava por ele.