Promessas — Parte 2
Uma luz cálida entrava pela janela do quarto. O céu de Nivenciuén, que um dia esbanjara esplendorosos tons de azul celeste e púrpura, agora era apenas vermelho. A realidade aberrante se espalhava a todo momento, cobrindo cada vez mais o antigo plano de Glórienn e espalhando ainda mais o domínio de seu novo senhor, Igashera. Sedrywen relaxou os ombros e respirou fundo. Mesmo ali onde estavam, um pequeno vilarejo são em meio a toda a loucura da tormenta, o ar queimava a garganta.
Distraiu-se olhando a cama onde seu amado descansava após o golpe que sofreu na última batalha. Um ruído alto de dobradiças castigadas a despertou do transe e viu o elfo de cabelos prateados espiando para dentro do quarto — ele trazia duas canecas e um pote de cerâmica. Ele sorriu e ergueu-as para que a elfa visse melhor. Ela assentiu e sinalizou que entrasse.
— Ele vai ficar bem? — Cuthalion perguntava enchendo as canecas com um líquido roxo que saía do odre.
— Ele ficaria mesmo se tivesse sido fatal. Thyatis olha por ele e seu pai Lin-Wu também — só depois de aceitar o vinho Sedrywen percebeu que falara aquilo como se fosse comum encontrar um semideus.
O elfo terminou de servir sua caneca e pôs o odre de lado enquanto a ouvia falar. Tomou um gole sonoro antes de continuar.
— Caramba, não é à toa que vocês estavam dando um show naquelas aberrações.
— Espera, você acreditou em mim? — ela pareceu mais surpresa do que gostaria.
Cuthalion a olhou fundo nos olhos. Sedrywen sentiu um aperto no peito ao notar que já havia esquecido a beleza dele a muito tempo. Mas estar ali, tão perto, encarando aqueles olhos cor de mel mais uma vez, a fazia sentir algo diferente.
— Mas é claro que acredito — sorriu, o que o deixava ainda mais belo — , você nunca mentiria pra mim.
— E se eu dissesse que sou realmente filha de Glórienn, você também acreditaria?
Ele franziu o cenho pensativo. Levou a mão livre ao queixo, olhou para o lado e fez um biquinho enquanto pensava — e Sedrywen não conseguia parar de olhara para seus lábios. Achava esquisito revê-lo depois de tanto tempo e ambos não terem mudado nada. O que deveria ser óbvio, já que ambos são elfos.
— Faz bastante sentido — ele voltava a olhá-la enquanto ela desviava o olhar que encarava a boca dele — , lá fora eu senti a presença da antiga deusa do nosso povo. Mas nós sabemos muito bem que ela caiu e não faria sentido ela ainda lhe conceder milagres.
Sedrywen sorriu e começou a falar alegre, mas travou e ruborizou um pouco quando Cuthalion a interrompeu dizendo:
— Um casal de semideuses! Isso não se vê todo dia! — notou a expressão dela e complementou alegre. — A maneira como você olha as pessoas, diz muito sobre você, Sedrywen.
Para alívio da elfa que tentava bolar uma resposta, Zanshin resmungou se sentando na cama enquanto afagava a própria cabeça com uma expressão dolorida. Abriu os olhos e levou um susto ao ver Cuthalion, apesar de não expressar.
— Onde estamos? Minha barriga dói… — olhou ao redor antes de perguntar — aquela coisa se foi?
— Vocês estão em Alberon, uma pequena poça de sanidade em meio ao mar de aberrações que se tornou Nivenciuén.
O tamuraniano estudou o elfo com cuidado. Ele era alto e esguio, mas certamente não era fraco. Tinha um sorriso franco e confiante emoldurando um rosto fino e delicado. Suas roupas pareciam feitas com o único propósito de aguentar o ar corrosivo daquele local e ele parecia bem preparado.
— Desculpe, eu nem lhe conheço e já uso de sua casa. Eu sou Zanshin Himekawa, obrigado por nos ajudar.
O homem tentou uma reverência desajeitada sentado e o ferimento o fisgou, fazendo-o emitir um leve grunhido.
— Pega leve, a maioria das pessoas teria morrido com o que te acertou. E não se preocupe, os recursos de Alberon são para todos, não existe o conceito de meu aqui — começou a beber de sua caneca e se interrompeu, lembrando-se de algo — Que indelicadeza a minha. Perdoe-me. Eu sou Cuthalion, ex-arco de prata do septuagésimo batalhão de Lenórien, veterano da guerra infinita, morto por uma catapulta e renascido em Nivenciuén antes da tormenta chegar.
Zanshin pensou por alguns instantes, olhou Sedrywen e voltou a encarar o elfo.
— Pode não fazer sentido a pergunta, mas vocês dois se conheciam?
— Claro que nos conhecíamos! Fomos até casados! — Cuthalion dizia com um sorriso pintando seu rosto.
A elfa teria aberto um buraco no chão e entrado, se pudesse.
— Ah — o homem exclamou — , legal.
Uma pausa longa se fez na conversa. Sedrywen parecia desconfortável, Cuthalion bem à vontade bebendo seu vinho e Zanshin impassível. Até que o elfo quebrou o silêncio.
— Mas me conta, por que Nivenciuén? Nem aqueles que são daqui ficariam se pudessem.
— Fizemos uma promessa a alguém — era Zanshin — e viemos descobrir mais sobre a tormenta, sobre seus corações, como se formam, o que são e como derrotá-los.
O elfo pegou uma cadeira que estava encostada na parede e acomodou-a, indicando que Sedrywen se sentasse. Ela ainda estava um pouco aturdida com a forma que a situação havia se desenrolado.
— Bem, não sei como são as coisas lá em Arton, mas aqui é terrível. Desde que a tormenta chegou, quase todo o plano é como vocês viram. Vermelho, corrosivo, perigoso e infernal. Mas eu não sei se há o que vocês chamam de coração aqui. Mas tem coisas piores do que as que vocês já viram.
— Piores do que os lordes? — o tamuraniano tentava encontrar uma posição que não fosse desconfortável na cama. — Nós já enfrentamos um duas vezes e conseguimos matá-lo; ou algo parecido, já que ele retornou. Imaginamos que derrotá-lo levaria a realidade lefeu embora, mas não foi o que aconteceu.
— Em Tamu-Ra lemos sobre os tais corações, mas nunca encontramos mais informações sobre eles — Sedrywen concluiu.
Os dois pareciam estar se dando muito bem e a elfa percebeu que suas preocupações eram somente suas. Conhecia muito bem aqueles homens e a forma como pensavam e agiam. Deixou escapar um sorriso e nem percebeu que os dois estavam admirando sua expressão boba.
— Aqui temos o que chamamos de Colossos de Igashera — Cuthalion retomou. — São abominações entre as abominações. Lefeu tão bizarros e grotescos que desafiam até mesmo as maiores esquisitices que rondam o ar ácido daqui. Contudo, aquilo que vocês enfrentaram era um antigo paladino de Glórienn.
Sedrywen mordeu o lábio, Zanshin não entendeu muito bem. O elfo notou a expressão do tamuraniano e explicou.
— Aqui haviam as Espadas de Glórienn, paladinos da ex-deusa dos elfos que lutavam por todos os ideais de nossa nação. Quando Igashera veio e ela caiu, eles foram corrompidos e transformados em uma paródia do que representavam. As Espadas de Igashera, como eles se auto-intitularam, rondam por Nivenciuén arrasando povoados como esse, que tentam sobreviver em meio a essa luta entre a realidade e a não-realidade.
— E esses colossos? Como são? — Sedrywen externou, agora mais à vontade.
— São variados. Um deles, por exemplo, é a espada brandida por Zenon das Cinco Lâminas, o líder das Espadas de Igashera. Ele carrega Ziumak, a arma viva lefeu capaz de derrubar uma montanha.
— Eu também posso fazer isso — Zanshin comentou dando de ombros.
— Eu não duvido de um semideus — Cuthalion comentou sorrindo.
Os três voltaram a ficar em silêncio, cada um ajeitando os pensamentos em suas cabeças. Tentavam entender o que seriam os corações da tormenta ou os colossos que haviam ali.
— Caraca galera! E se esses tais colossos forem o coração da tormenta daqui?
Uma quarta voz perguntou, chamando a atenção dos presentes. Cuthalion franziu o cenho, pois nunca tinha visto o rapaz. O coração de Zanshin e Sedrywen, no entanto, bateu descompassado.
— Mu?! — os dois falaram em uníssono olhando o homem que flutuava próximo ao chão com os cotovelos apoiados na janela.
— É sério galera! Eu falei com um tal de Gregor em Pyra. Um paladino de Thyatis aposentado pelo que entendi. Ele falou que esses corações da tormenta aí não têm regra pra como são e tal. O de Tamu-Ra era um abismo, por exemplo.
— Mu, é você mesmo? — Sedrywen se aproximou e tocou no rosto do amigo.
— É ué. Vocês estão nos reinos dos deuses e eu aprendi uns truques novos — estalou os dedos e desapareceu numa nuvem de fumaça, reaparecendo apoiado em Cuthalion.
O tamuraniano e a elfa estavam com um misto de sentimentos, uma torrente de perguntas e certa incredulidade remoendo-os por dentro. Mas precisavam se concentrar no que estavam fazendo ali. Por mais felizes que estivessem em rever Mu, tinham uma missão — e ali era Nivenciuén, era a tormenta.
— Você quer dizer que talvez esses doze colossos sejam o tal coração daqui? E que se nós confrontássemos eles, poderíamos ter uma chance contra Igashera? — o elfo tentava acompanhar o raciocínio do recém chegado.
— É bem por aí.
— Zenon foi visto vagando a alguns quilômetros daqui há uns dois dias, talvez podemos encontrá-lo e tentar destruir Ziumak.
O rapaz e o elfo pareciam animados com a ideia.
— E aí? Vocês dois vem com a gente?
Como se despertassem de algum tipo de sonho, Sedrywen e Zanshin se entreolharam e voltaram a encarar Mu e Cuthalion que sorriam para os dois. Notaram que tinham dado as mãos por impulso enquanto ouviam o amigo e o elfo conversar sobre confrontar os colossos de Igashera. Assentiram.
— Sentimos sua falta… — era Sedrywen.
— Eu sei. Por que eu também senti…
Sorriam e os olhos se enchiam de lágrimas, mas Mu bateu as mãos animado.
— Mas enquanto a dupla cai-levanta se recupera aqui, eu vou em Arton buscar o nosso exército.
Antes que alguém pudesse questionar, em uma nuvem de fumaça, ele já havia partido.
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ARTON. KHUBAR.
Tenebra banhava as águas do lado de fora da casa a beira mar. Prunna lia uns pergaminhos sob a luz fraca de uma vela, estava com dificuldade para dormir. Quase caiu da cadeira quando uma voz alta começou a falar atrás dela. Por sorte, notou quem era antes de explodir o teto.
— Prunna! Tô juntando a galera pra ir bater em lefeu. Cê tá dentro?
— Eu devia é dar na sua cara! — a dahlan estava chocada, feliz e enraivecida. Tudo ao mesmo tempo.
Abraçou o amigo e não disse mais nada. Teria tempo para isso.