Promessas Vermelhas

Diogo Stone
5 min readMay 11, 2023

O goblin lutava contra a areia movediça, ou carne movediça. Era difícil de distinguir. Com um puxão firme, o hynne ajudou-o a sair daquela armadilha. Sinistro quase não acreditou que havia realmente encontrado Lauss.

— Esse lugar é maldade demais até pra mim.

— Pô, muito mais do que achei que seria possível.

Urros e gritos ecoavam em seus olhos, fazendo-os lacrimejar enquanto tentavam caminhar, correr, envelhecer. Os sentidos e a percepção se misturavam ali. Onde quer que ali fosse. Viraram-se e encararam um enorme ser insetoide, com três garras de um lado do corpo e dois braços do outro. Ou de cima.

Uma voz taciturna preencheu seus ouvidos, gelando seu sangue. Mas, antes de se alarmarem ainda mais, viram três setas púrpuras cortarem o ar, ou o chão, e atingirem a criatura que caiu sobre uma de suas patas. Como um relâmpago, uma mulher passou por eles, trajando um obi claro, que contrastava com a iluminação e a cor que invadia suas mentes.

Ela golpeou rápida e incessantemente, até que a demônio fosse reduzido a uma pilha fumegante de quitina, ou assim parecia, até se unir ao solo novamente.

— Puta merda, nunca mais se separem da gente — era Sho.

— Calma — a voz de Daeniel era abafada pelo zumbido incessante — , eles nunca se afastaram de nós. É esse lugar, é a Tormenta.

Os quatro continuaram sua jornada em meio aquele inferno. Suas gargantas ardiam com o ácido que irradiava pelo ar, invadia suas narinas e, às vezes, os afogava como se ingerissem terra. Como se estivessem sufocando por mãos invisíveis, mas que ao mesmo tempo podiam ser vistas.

Chegaram até o que parecia ser uma praia, e talvez um dia fora. No entanto, ao invés do mar do dragão rei banhar as areias dali — um oceano rançoso e viscoso encharcava uma enseada de horrores e matéria vermelha. Parada, de costas para eles e acariciando um enorme lefeu, que parecia uma massa disforme de carne, dentes e bocarras, estava ela.

— Amigos! Vocês chegaram!

A loira se virou para encará-los. Seu manto branco, aos poucos, era consumido pelo ar e tornava-se rubro, quitinoso e rígido. A borboleta, que normalmente adornava seu elmo, agora parecia uma criatura viva, pulsante, com olhos que perscrutavam o ambiente e garras brotando de suas pontas.

— Celene, eu entendo que você goste de algumas maldades, mas é hora de partirmos! — Sinistro gritava, mas mal podia ouvir a própria voz.

O oceano de gordura, aos poucos, ia se modificando, tornando-se pequenos insetos que iniciavam uma marcha até a terra firme. Ou carne firme.

— Ah, Sinistro — a voz dela parecia vir de todo o lugar e de lugar nenhum. — Não se preocupe. Finalmente ele chegou até aqui! Agora, todos seremos banhados pela luz de Aharadak e teremos nossa paz como um só!

— Não, Celene! Isso é impor a fé sobre as pessoas, não é correto! — Daeniel tentava usar a racionalidade para ajudar a amiga.

A clériga deitou a cabeça, mas o ângulo incomodava quem olhasse. Era como se ele estivesse quebrado.

— Mas… é só ir. Se não quiser a bênção do devorador, basta dar as costas e partir.

Um verme saltou da terra e abocanhou a perna de Lauss. O hynne conseguiu golpear a criatura com sua azagaia e, ajudado por Sinistro, conseguiu se desvencilhar. Mal conseguia se apoiar em sua perna que, agora, estava retalhada e vertendo sangue.

— Celene, olha, não prece ser tão fácil quanto você está sugerindo — Sinistro dizia enquanto apoiava o braço de Lauss sobre seus ombros.

Celene riu.

— Vamos partir — Daeniel anunciou. — Quer dizer, vamos tentar partir. Você vem com a gente?

— De forma alguma. Eu vou ficar e apreciar os dias de glória. Fiquem. Sejamos um só em harmonia! Tudo será lefeu, e todos ficaremos em paz.

— Não, não, tô tranquilo — era Lauss.

— Eu achei que, de todos nós, você era a única que nunca mentiria, Celene — Sho comentou em tom acusatório. Celene não respondeu.

Sem dialogar mais, a elfa deu as costas à clériga e partiu com os outros em seu encalço. Uma enorme barreira coberta de pústulas bloqueava a passagem deles. Foi preciso lutar contra aquela parede viva, e era especialmente penoso para o pequenino que não sentia o abraço de sua divindade naquele lugar.

Após se perderem e lutarem contra o ambiente e as criaturas insetoides, a saída daquele inferno parecia cada vez mais distante. Não havia um caminho a seguir, não havia um ponto de referência. Cansados e sem rumo, os socos, ficavam mais fracos. Os golpes de espada, mais lentos. A magia, mais escassa. As facadas, menos maldosas.

Foi quando uma garra apertou o peito de Daeniel e rompeu a barreira mágica que a protegia. Desfalecida, a elfa foi atirada contra seus amigos como se fosse uma boneca de pano. Tentaram o seu melhor para amortecer o impacto, mas diversos espinhos se erguiam do chão, ferindo os pés de Sinistro e Lauss que quase não conseguiram sustentá-la. Diversos espigões cresceram e tornaram-se navalhas, cortando e ferindo o pequenino e o goblin.

Sho tentava alcançá-los, mas a cada brado e a cada golpe seu, quatro outros tentáculos a atingiam e a retardavam. Quando chegou até os outros, apenas se arrastava, sangrava e mal conseguia respirar. Pousou a mão sobre os ferimentos e praguejou. Sabia apenas matar, não sabia ajudar qualquer enfermo. Uma mão pálida pousou sobre a sua, o que a fez dar um sobressalto.

Era Celene.

A borboleta monstruosa que adornava sua face não estava mais presente. Sho podia ver as lágrimas ácidas pintando o rosto da clériga que, ofegando, vertia sua magia carmesim sobre os desacordados. A guerreira viu, com alívio, as feridas deles se fechando, e torcia para que não fosse tarde demais. Notou, pela primeira vez em muito tempo, que seus olhos não estavam mais ardendo em vermelho.

Olhou ao redor e viu a matéria vermelha se retraindo, encolhendo, sumindo. Era como se a terra, e Celene, estivessem tomando-a para si. Como se Arton e a clériga estivessem absorvendo toda aquela corrupção ao seu redor.

— Sho — ela disse parando para respirar entre os soluços— , me desculpa, por favor. Você está bem, Sho?

— É claro que estou — mentiu.

— Eu tinha prometido que sempre estaria lá por você. Mas estar finalmente envolta na luz de Aharadak me deixou cega. Nosso destino é inevitável, mas eu lembrei da promessa que eu te fiz, e eu jamais me perdoaria em mentir pra você.

Celene baixou o olhar, entendendo aos poucos que quase havia abandonado seus amigos. Não sabiam como aquela área de Tormenta havia começado a se formar, muito menos o que a fizera se retrair. Mas, agora, a cena de horrores havia sumido, e Azgher voltava a brilhar no céu.

A guerreira carinhosamente tomou o rosto da outra com uma das mãos, olhando-a nos olhos enquanto acariciava seu rosto.

— O importante é que você voltou por nós, Celene.

— Eu voltei por você.

Sho aproximou seu rosto da clériga, fechou os olhos e desmaiou sobre seu ombro.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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