Raciocínio
A pequenina despertou pasma. Arfava, soava frio e ainda podia sentir o gosto metálico na boca. Lampejos de memórias saltaram em sua mente e viu mais uma vez o clarão dos relâmpagos e os estrondos preenchendo aquela sala. Por instinto, recolheu-se na cabeceira da cama, batendo as costas contra a parede. A porta do grande cômodo se abriu e uma senhora alta de cabelos dourados e rosto enrugado entrou.
Ela vestia um jaleco branco e trazia em suas mãos uma prancheta, a qual conferia algo enquanto se aproximava da única cama ocupada no local. Parou ao lado da hynne, estreitou a vista e estudou-a por um tempo. Voltou os olhos novamente para os papéis em sua mão e começou:
— Lila, estresse pós traumático, invasão mal sucedida a uma prisão purista, atingida por relâmpagos de leopardos negros — a mulher vez um muxoxo. — Malditos ignorantes.
Reunindo toda a coragem que não tinha, a hynne conseguiu balbuciar algumas palavras.
— Onde eu tô? Quem é você? O que aconteceu?
— Você está em Terápolis, lar de nossa padroeira Tanna-Toh. Eu sou Ingrid, eu cuido das almas recém chegadas. Você morreu.
Um silêncio se estendeu por alguns segundos enquanto Lila assimilava tudo que a mulher dizia. Fazia sentido, era a conclusão lógica. Mas aquilo soava muito simples, morrer não podia ser tão simples. Com um gesto rápido e uma oração baixa, a senhora canalizou o poder da deusa do conhecimento para acalmar os ânimos da pequenina.
— Melhor? — perguntou.
Lila assentiu devagar, saiu do canto onde estava e se pôs de pé. Ela tinha menos da metade da altura da clériga, ou médica, ou cientista. Era difícil discernir. Ingrid abriu um sorriso.
— Venha, deixe-me mostrar o lugar.
As duas caminharam lado a lado, subiram dois lances de escada e passaram por um corredor. Uma das paredes ali era completamente feita de vidro e era possível ver a cidade lá em baixo. Construções enormes feitas de pedra branca, tetos abobadados, veículos automáticos, postes de iluminação. Em partes, o local lembrava um pouco a cidade de Kliren, mas tinha menos fumaça e bem menos barulho. Como uma grande biblioteca a céu aberto.
Afastada do local onde estavam, erguia-se uma construção enorme, maior que o próprio Reinado pelas contas rápidas que a hynne fez.
— Aquela é a biblioteca dos planos — Ingrid dizia enquanto caminhavam — e lá você encontra todos os livros que já existiram, cada poema que já fora recitado, toda música que já fora cantada as plantas de todas as construções e inventos que existem. Lá você também encontra Tanna-Toh, se não se perder lá dentro, é claro.
Os olhos da pequenina brilhavam. Cada ponto daquele lugar era incrível e tudo reluzia como ouro para uma mente que desejava entender como tudo funcionava. Logo, o interminável corredor de vidro cedeu lugar a uma rampa por onde desceram por alguns minutos. Um cheiro esquisito de ácido e fumaça começou a chegar até as mulheres que caminhavam. Lila conhecia aqueles odores muito bem, alguém estava trabalhando com alquimia ali
A caminhada das duas terminou a descida em uma sala tão ampla que suas paredes se perdiam de vista. Sobre o arco à sua frente uma placa enorme trazia os dizeres “Oficinas”. A hynne achou engraçado que as letras mudavam o tempo todo e as vezes lia-se “Workshop” ou “Atelier” ou “Officina” ou “Verksted”. Todas línguas as quais Lila conhecia.
— Quer conhecer a sua? — Ingrid indagou com um sorriso no rosto.
— Tá de brincadeira, né?
A animação na voz da pequenina vez ela soar como uma gigante de tanta empolgação. Algumas oficinas ficavam ao ar livre, outras em salas fechadas. Passaram por um anão que fabricava armas de fogo, um hobgoblin que forjava armaduras, um senhor de idade que escrevia calmamente sentado a uma escrivaninha e um goblin que brigava com uma dupla de homens. Nesse último, Ingrid parou para ouvir sobre o que discutiam.
— E já disse, essa porcaria que cês inventaram é um cesto num estilingue! Eu inventei o voador automatizado primeiro! — era o goblin.
— Dumon, veja bem, não adianta você inventar algo e não o patentear — era um dos homens.
— Eu vou encher essa tua bunda de graxa, Wilbur. Tá achando que aqui é o que? Ordine cacete?
Ingrid balançou a cabeça em desaprovação, mas continuou caminhando. Lila queria ouvir mais, mas foi obrigada a seguir a mulher. Achou curioso que cada oficina tinha uma placa com uma espécie de numeração. XQA#4213, XQA#4214, XQA#4215… e assim os algarismos seguiam.
— É para facilitar a identificação das patentes e a localização das oficinas — a senhora explicou.
A pequenina sorriu. Finalmente estava no lugar que queria. Falavam-lhe a verdade e tiravam dúvidas antes mesmo dela perguntar. Por alguns momentos, até esqueceu o que a trouxera até ali.
— Chegamos, essa é sua nova casa. Espero que goste.
O queixo de Lila caiu. Andou devagar até a bancada, que pelos seus cálculos tinha a altura exata da que deixou em Arton. Mas o mais assombroso era que tudo dela estava ali. Seus pequenos autômatos, as novas engenhocas que vinha trabalhando, seu kit de ferramentas e até mesmo a máquina de gorad quente. Correu até ela e começou a servir duas canecas, o cheiro doce atraiu alguns olhares e sorrisos. Caminhou até Ingrid e ofereceu a bebida à mulher.
— Nenhum inventor recusa gorad quente, é o preferido da maioria.
A hynne sentou-se na poltrona que havia em sua nova casa. A sensação ao jogar-se no assento era exatamente como se lembrava. Bebericou um pouco do doce e sorriu para si mesma. Mas a curiosidade venceu qualquer outro sentimento naquele momento.
— Como? Como aqui tem tudo que eu já inventei e que eu trabalhava. Até os mecanismos mais esquisitos e complexos que eu criei estão aqui. E exatamente como eu os deixei.
— Aqui é Terápolis, todo o conhecimento de Arton sangra para cá. Aqui é a grande forja do conhecimento, Lila. O Helladarion acumula o conhecimento de todos os devotos de Tanna-Toh que já viveram. Pilhas e pilhas de livros com essas descobertas chegam até a grande biblioteca trazidas pela mente dele todos os dias. Nós só tentamos criar um ambiente agradável para aqueles que deixam Arton e vem para cá. Queremos todos confortáveis para fazer aquilo que gostam sem se preocupar com os problemas que tinham nas suas vidas passadas.
Lila assentia a cada palavra. E a cada palavra ficava mais empolgada. Seus dedos formigavam para trabalhar e criar. Tudo a empolgava. Mas uma coisa despertou novamente sua curiosidade.
— A máquina de gorad quente. Não foi eu que fiz ela, foi o Fingo. Como vocês reproduziram ela?
— Lila — Ingrid a olhava com um sorriso doce, como uma mãe — você desmontou essa máquina pelo menos umas quatro vezes para ver como funcionava e entender alguns mecanismos que julgou simples demais.
A hynne levou a mão a testa. Claro. Se ela sabia como funcionava, eles sabiam. De repente o pensamento de que eles sabiam tudo que ela havia feito em vida, a fez enrubescer um pouco ao lembrar de Kob.
— Agora, com a sua licença, eu tenho outras obrigações a fazer. Sinta-se à vontade, aqui todos são amigos.
Seus olhos vasculharam o local e encontraram o goblin que pulava no pescoço de um dos dois homens. Ela suspirou, Lila riu.
*********************************
Os passos de Ingrid ecoavam pela silenciosa biblioteca. Qualquer um se perderia em meio aquelas quilométricas estantes forradas com todo o conhecimento do multiverso. Conforme caminhava, as feições da médica iam se alterando. Ela ficava mais baixa, arcada. Seus cabelos dourados perderam a cor e seu jaleco tornou-se um manto amarronzado e sujo de cera. Um pergaminho surgiu flutuando atrás da figura, anotando tudo que ela fazia.
Debruçou-se sobre uma mesa onde uma esfera tremeluziu e mostrou a pequenina trabalhando em sua oficina. Ela trabalhava empolgada em um de seus inventos desnecessariamente complexos.
— Conhecimento, Lila — a senhora disse com o dedo em riste — , conhecimento e raciocínio.