Resiliência
Vermelho. Desde o céu até o solo, tudo tinha a mesma cor. Sem brilho, sem distâncias, sem tempo. A figura da elfa e do tamuraniano se destacavam em meio aquele mar aberrante. Criaturas se apinhavam em cima do casal que lutava para abrir caminho dentro da cidadela. A cada passo que davam, dezenas de lefeu surgiam, golpeando desenfreados e insanos. Uma garra rompeu as defesas do homem, abriu um rasgo em sua carne e ele caiu. A mulher saltou sobre ele e o arrastou por alguns metros enquanto sua mão brilhava com o divino.
Ele abriu os olhos, se pôs de pé e avançou novamente. Agora sua imagem tremeluzia como as chamas de uma fogueira. O vermelho cedeu para um tom alaranjado, pois sua imagem estava estampada no fogo. De Pyra, a fênix observava seu servo lutando.
— Sempre que ele cai, acho que não retornará — um homem dizia se aproximando — , mas ele sempre me surpreende.
O recém-chegado vestia uma armadura composta por placas de couro duro tingidas de verde e vermelho, num estilo tradicional do povo de Tamu-Ra. Segurava seu elmo embaixo do braço e as chamas iluminavam seu rosto. A ave de fogo não respondia com a boca, mas sua voz parecia ecoar por todo seu plano.
— Somente aquele que cai sabe o verdadeiro significado de reerguer-se.
As palavras de Thyatis sempre carregavam alguma lição.
— Surpreendo-me como ele é resiliente. Como se adapta e aprende.
A imagem tremeluzente de Zanshin era golpeada de várias direções e ele sangrava até não aguentar mais em pé. Caiu sobre um joelho e rilhou os dentes. Seus olhos brilharam em vermelho e uma explosão de energia profana emanou de seu corpo. A fusão com Kuraiga estava completa e, mais uma vez, ele se levantava.
— Obrigado por olhar pelo meu filho, Thyatis. É natural para o povo de Tamu-Ra que a honra os guie até o caminho correto.
Lin-wu, mesmo sendo um deus, tinha receio de falar com o deus da profecia. Ele sempre fora enigmático e, mesmo que não ocultasse nada sobre o destino de uma pessoa, as vezes parecia que faltava algo em suas palavras.
— A honra que você crê, deus de jade, está longe de ser a que seu filho segue.
O deus de Tamu-Ra desviou os olhos das chamas e encarou a fênix. Ela permanecia concentrada no fogo, impassível.
— Honra é honra. Eu represento seu conceito, o que ela é, seus valores. Eu sou a honra. Existe eu e existe a heresia, a desonra.
— O caminho que seu filho decidiu trilhar não o leva até a honra idealizada por seus devotos, senhor dos samurais. Ele caminha para a redenção, para a renovação. Ou como fora dito por você, Lin-wu, para a heresia.
O deus dos tamuranianos suspirou. Não queria brigar com Thyatis, não seria correto desrespeitá-lo em sua casa. Seria desonrado. Era a natureza da fênix renegar a mentira, e ela jamais tentaria dissuadir alguém. Nas chamas, Zanshin e Sedrywen explodiram uma porta de carne e dentes e adentravam num castelo, procurando algo ou alguém. Um raio irrompeu de uma direção onde a visão da fogueira não alcançava. O homem bloqueou o impacto, voou, caiu e se levantou novamente.
— Ele me lembra tanto…
— Sim, ele se parece muito com a mãe — Thyatis interrompeu.
— O jeito como…
— Ele nunca desiste. Luta pelo que acredita. Defende seus ideais. Ama — Thyatis interrompeu novamente.
Lin-Wu voltou a encarar a fênix.
— Você se diverte fazendo isso, não é?
Não houve resposta.
As chamas continuavam a exibir a incursão do casal por aquela área de tormenta. Agiam com vigor e pressa enquanto procuravam o lorde daquela aberração. Tudo parecia sinistramente igual, mas ao mesmo tempo, cada passo parecia levá-los a um lugar diferente. Um vento forte soprou, as labaredas tremeluziram e a imagem de Zanshin e Sedrywen desapareceu.
— Sabe irmão, eu só queria agradecer por você cuidar de meu filho. Dar a ele o dom da imortalidade para que ele continue a lutar por Arton. Defendendo a honra com coragem e honestidade, protegendo a dignidade e…
— Enquanto ele usar as chances que lhe concedo para que as pessoas possam alcançar seus destinos — a fênix interrompeu mais uma vez — , ele terá minha benção. Mas não foi esse o motivo de sua visita. Você não sairia de Sora por isso. E o deus da honra não é dado a subterfúgios.
Lin-Wu engoliu em seco. Não sabia dizer por que ficava tenso frente aquele deus, um igual. O calor que emanava de Thyatis parecia suplicar por uma resposta.
— Meu neto, aquele que ainda não nasceu. Ele terá uma vida longa e honrada?
A fênix permaneceu em silêncio por um longo período. Seus olhos emanavam chamas e os de Lin-Wu, desconforto. Sentia-se analisado, estudado, julgado. Talvez fosse esse sentimento que tivesse afastado Zanshin da trilha da honra e o colocara no caminho da redenção. Agora ele lutava pelos seus próprios princípios e ideais, não pelos de seu pai. Por mais que desejasse poder evoluir ou mudar, o deus do império de jade não poderia. Pois ele era a honra.
— Honrada, sim — Thyatis respondeu por fim.
Lin-Wu suspirou aliviado. Não era exatamente o que gostaria de ouvir, mas era o suficiente.
— Obrigado.
Colocou seu capacete e seu corpo começou a se expandir e esticar. Logo, tinha a forma de uma serpente com garras, chifres e dentes afiados. Na forma de dragão de jade, saltou e voou pelos céus até desaparecer com um lampejo, retornando para seu plano divino.
As chamas da verdade voltaram a arder e agora Thyatis via uma cena diferente. Os corpos eram desfocados e a mobília escurecida. Não se tratava de uma clarividência do agora, mas sim de uma visão do destino. Zanshin e Sedrywen estavam em uma casa acompanhados de uma senhora em mantos brancos, acusando-a como uma clériga de Lena. O casal sorria e a mulher tinha um bebê em seus braços.
— Mas a honra o afastará de uma vida longa, a não ser que ele deixe de amar aquele dragão.