Sangue, Ouro e Trevas

Diogo Stone
8 min readNov 14, 2020

Adentraram correndo nos salões dourados e decorados com belíssimas tapeçarias cor de fogo. Todas elas exibiam os mesmos padrões — silhuetas de dragões costurados com fios de platina. Haviam inúmeras delas ao longo dos exacerbadamente altos e longos corredores. As paredes eram a personificação do luxo, pois cada centímetro era banhado em ouro e o bruxulear das tochas faziam suas vistas se confundir, imprimindo padrões confusos que embaralhavam suas mentes.

Tudo ali era feito para fascinar e entreter a mente, mas mais do que isso, intimidar. Alguém com tantas posses certamente era alguém poderoso e influente. A impressão que o local passava era clara; se opor os anseios de seu dono seria como uma sentença de morte. E é por isso que corriam. A mulher de cabelos negros olhava por cima dos ombros conforme avançavam para garantir que não estavam sendo perseguidos. Voltou a prestar atenção no caminho quando começaram a subir um lance de escadas e se distraiu por alguns instantes admirando o cabelo carmesim de seu amado balançando.

O homem parou de repente e ela quase o atropelou, ele olhava através de uma grande janela para o lado de fora do castelo. Quase perguntou o que houve, mas seguiu seu olhar e viu a cena que chamara sua atenção. Um senhor enorme lutava contra um dragão de mãos nuas. Um cruzado de esquerda e um direto de direita e a criatura se afastou vários metros. Um sorriso alegre pintou os lábios de Marie.

— Quem diria que o Amaral se tornaria um deus afinal? — comentou lembrando-se do amigo que, mesmo depois de ascender, ainda dava aulas na favela dos goblins.

— O coração dele é gigante e finalmente ele tem um corpo que o comporte — permitiu-se sorrir.

O ruivo olhou para a mulher e notou que ela estava com uma marca preta de sujeira no rosto. Levou suas mãos até a face dela e a afagou tentando limpá-la. Se aproximou um pouco mais e depositou um beijo firme e rápido em seus lábios.

— Temos que correr. Poderíamos saltar pelo espaço até a sala do trono, mas acho que seria muito perigoso chegar dessa forma.

No lado de fora, Amaral estrangulava um dragão vermelho.

— Então não vamos perder mais tempo — Marie tomou a mão do homem e continuou escadaria a cima.

No trajeto, a mente da mulher ficava inquieta pensando em como seus amigos estavam lidando com a situação lá fora. Amaral podia ser visto de longe e parecia tudo certo com ele, mas se questionava se Kiara, Will e os outros estavam bem. Balançou a cabeça tentando afastar aqueles pensamentos. Eles tinham ido até Odisseia e encarado Valkaria com a coragem de verdadeiros heróis. Se puderam confrontar a líder do Panteão, poderia sobreviver a um exército de dragões, cavaleiros, fanáticos religiosos e tudo mais que Ghallistryx pudesse enviar.

Os salões estavam estranhamente vazios, o que deixava o homem desconfortável. Isso demonstrava o quanto o regente não lhes dava a devida importância, o quanto os considerava inferiores. Insetos. Contudo, era esse sentimento que fazia seu fogo arder. Acabaria com aquela tirania, com o ar soberbo e tomaria o que lhe pertencia. Mataria seu pai, nem que fosse a última coisa que fizesse em vida.

Chegaram a uma enorme porta de ouro maciço. O ruivo calculou rapidamente e concluiu que cada uma deveria ter em torno de cinquenta e três metros e vinte e seis centímetros de altura, com uma margem de erro de seis milímetros para mais ou para menos. Antes que sua mente começasse a se perder pensando no peso ou no tempo necessário para fundir todo aquele material, sentiu a mão de sua amada entrelaçar seus dedos com mais força. Precisava de foco. Assentiu para Marie e, balançando seu braço, abriu as portas com um empurrão mágico violento.

Um ruído alto e ensurdecedor ecoou pelos salões vazios enquanto a dupla adentrava a sala do trono. O local era amplo e fartamente decorado. Sobre uma pilha de ouro, joias e obras de arte, repousava um assento grande e brilhante. Sentado em sua almofada grande e pomposa, havia um elfo de cabelo carmesim em mantos de seda preta e vermelha. Parecia entediado e sustentava a cabeça com sua mão, apoiando o cotovelo sobre uma pilha de tesouros. A figura se pôs de pé, seu olho bom encarava o casal que se aproximava. Abriu um sorriso de dentes serrilhados e com uma voz poderosa, gutural e ameaçadora; começou:

— O bom filho a casa torna — o escárnio era evidente. — Salazar Bloodstone, é um desprazer lhe ver aqui.

— Nos poupe de suas galhofas, nós viemos aqui reivindicar o que é meu.

Sckhar riu.

— Você, seus amigos tolos e sua concubina? Perdeu o juízo que nunca teve, moleque?

Concubina. Impulsionada pela noite, raiva — e pelo plano muito bem estruturado que tinham feito — , Marie deu dois passos à frente. Sentiu um calafrio percorrer sua espinha quando o dragão a encarou com um olho totalmente branco e o outro que ardia como fogo. Quase deu um passo em falso, mas manteve-se firme.

— Oh, você está se aproximando de mim? Ao invés de sair correndo você está chegando mais perto? — sibilou.

— Eu não posso quebrar a sua cara sem chegar mais perto!

Dos vestidos, Marie puxou um colar de prata. Pendurado na corrente, havia uma pedra vermelha quase do tamanho de um punho, fruto de anos de estudo e trabalho de Salazar. Ele havia percorrido o mundo de Arton, dos sonhos e até mesmo o dos deuses para descobrir os segredos da sobrevida. Nenhuma gema teria as propriedades necessárias para o que planejaram fazer, precisariam de algo artificial e de poder praticamente infinito. A mulher tomou a pedra filosofal entre as mãos e entoou um cântico para que Tenebra a ouvisse.

— Nos, fy mam. Derbyn yr enaid hwnnw fel offrwm. Bydded i ddisgleirdeb y lleuad ddangos y ffordd i fuddugoliaeth inni.

Os olhos do dragão-rei se abriram em espanto. Em sua mente, a língua estranha soou em dracônico e dizia “Noite, minha mãe. Receba essa alma como oferenda. Que o brilho do luar nos mostre o caminho a vitória”. A joia brilhou em um vermelho vivo e intenso. O dragão sentiu um baque nas costas e firmou os pés contra a pilha de tesouros. Uma imagem translúcida no formato do elfo saiu de seu corpo, moldou-se como um dragão e foi absorvida pela pedra. Um som pulsante emanava do amuleto enquanto a mulher colocava a corrente em seu pescoço.

Sckhar gritou em fúria. Seus berros ecoaram pelos salões vazios de seu castelo enquanto Salazar se aproximava do trono ao lado de Marie. O dragão arremessou uma enorme esfera flamejante contra o casal, mas com um gesto leve de suas mãos, a joia no pescoço da serva de Tenebra brilhou e fogo se dissipou. Ela sorriu maliciosa e Salazar pode jurar ter ouvido ela emitir um som parecido com o de um gato se divertindo. Voltou a encarar o pai dizendo:

— Você acha que somos insetos, pois vamos ver como você se vira agora que não tem mais a alma de um maldito dragão.

O homem sacou sua espada e logo ela oscilava com poder arcano, vibrando com todos os elementos. Marie foi rápida e, com um bater de palmas, seus anéis prateados emitiram um som alto e várias gavinhas negras saltaram do ouro e agarraram o dragão enfurecido — que agora estava preso no corpo de um elfo. Salazar deu um passo entre o tempo-espaço, aparecendo à frente de Sckhar e golpeando seu pescoço. O homem preso a várias correntes arcanas mexeu-se num ângulo esquisito, mas conseguiu agarrar a arma com os dentes e pôs seu único olho bom a encarar seu filho. O ruivo se sentiu mais uma vez aquele garoto aterrorizado de apenas dez anos.

O elfo fechou a boca com força e estilhaçou a arma. Sentia sua energia mágica fluir para a pedra presa ao colar de Marie e ser usado dessa forma o deixava ainda mais irado. Berrou e ardeu em chamas, incinerando as amarras etéreas — algo que nem deveria ser possível. Num piscar entre os planos, Salazar estava ao lado de sua amada, os dois se entre olharam e engoliram seco.

Sckhar andava com as chamas perseguindo-o enquanto descia da pilha de ouro. Seus cabelos esvoaçavam e dançavam com as labaredas e suas roupas já não existiam mais. Tornou a dizer com sua voz gutural, mesmo que essa parte de sua alma estivesse aprisionada a alguns metros de distância.

— O que lhes faz pensar que têm direito a tentar tomar meu trono? Quem vocês, mortais, pensam que são? Se querem morrer, por que não vão fazer isso sem me incomodar?

Golpeou com uma de suas mãos e, mesmo àquela distância, um rasgo atravessou a armadura mágica e dourada que envolvia o corpo de Salazar. Sangue verteu farto de seu peito e o homem quase caiu de joelhos. Estava concentrado no combate, mas havia pecado em algum ponto da preparação. Um erro de cálculo. Não imaginou que mesmo após deixar de ser um dragão, Sckhar continuaria tendo tanto poder.

— Vá Marie, leve a alma dele. É a barganha que precisamos — rilhava os dentes para manter a voz firme.

— Você não precisa encará-lo agora, não seja tolo — pôs a mão em seu ombro. — Ee eu não iria te deixar aqui de qualquer forma.

A mulher fechou os olhos e se concentrou. Sentiu a energia mágica que a envolvia desde que nasceu percorrer todo seu corpo. Era como o toque macio do manto da noite, ou dos dedos carinhosos de Salazar. Imaginou a magia que os tiraria dali, mas com um solavanco em sua mente, abriu os olhos e ainda estava na sala do trono. Seu coração acelerou e o dragão-rei ria.

— Salto dimensional — a voz gutural falava — , teletransporte, manto das trevas, viagem planar, forma etérea, semiplano. Quais outras magias são impedidas por uma âncora dimensional, Marie Antoinette Beauregard? Quais outros truques você vai tentar que eu não possa contra-atacar? Será que um de vocês conhece alguma magia que eu não saiba? — desdenhava.

O dragão golpeou novamente com umas das mãos. Novamente, mesmo àquela distância, a mulher sentira suas costelas arderem. Um arranhão surgiu em seu tórax, arruinando seu vestido e expondo mais do que ela gostaria enquanto sua pele branca começava a se manchar de sangue. O casal se olhou, precisavam revidar e sobreviver. O plano ainda não tinha sido concluído, precisavam ganhar mais tempo.

Uma segunda esfera de chamas veio na direção deles, mas antes de fazerem qualquer coisa, Marie despertou assustada e sentou-se em sua cama. Suava frio. Olhou para o lado com a visão turva e sentindo-se enjoada. Viu Salazar caído de cara sobre alguns livros na escrivaninha enquanto respirava pesado. Suspirou e atirou-se na cama novamente. Lúcio resmungou quando ela o empurrou com o pé sem querer.

Olhou para a janela e viu os raios de luz que tentavam atravessar o couro grosso que impedia Azgher de tocar sua pele.

— Que diabos de plano estávamos seguindo? Quem estávamos esperando? — pensou em voz alta.

Balançou a cabeça e tentou deixar aquilo de lado. Como Pitre havia dito a ela muito tempo atrás, não ligue, sonhos as vezes são só isso mesmo. Sonhos.

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Em Pyra, a ave fênix observava a luta de Sckhar, Marie e Salazar nas chamas da verdade.

Em Sombria, todos festejavam o destino da filha da profecia.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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