Serenidade

Diogo Stone
6 min readDec 27, 2020

Férias. Um conceito praticamente desconhecido para o pequeno inventor. Passara os últimos anos de sua vida em uma incessante escala de trabalho. Mas ao invés de incomodar-se com isso, aprendeu a apreciar as companhias que ele trouxe e, logo, trabalhar para ver o sorriso de seus amigos tornou-se seu combustível. Havia deixado de ser uma obrigação e tinha se tornado sua maneira de demonstrar carinho. No entanto, Arwan foi enfática em dizer que ele precisava descansar.

Encarava a cidade da sacada da pousada. Dubai-ptra era linda por si só. As cores, a pluralidade, o cheiro. Respirou fundo, pegou seu alforje e se dirigiu até a porta. Por mais confortável que a pousada fosse, não era seu destino. Precisou reunir muita coragem para a viagem que iria fazer. E além disso, alguém que pudesse fazê-la por ele.

Percorreu as ruas com velocidade e adentrou o escritório da pontífice Lavanda. Havia conversado com ela mais cedo e ela o ajudaria a cobrir a distância até seu destino. Anunciou sua chegada e logo foi recebido.

— Fingo, já estava na hora. Está pronto?

— Para falar a verdade, não — o sotaque do hynne parecia mais atrapalhado que o normal. — Mas eu preciso.

— A viagem nos deixa um pouco tontos, mas passa bem rápido. Você trouxe a forquilha de cristal de terra-do-céu como eu disse?

De dentro de sua bolsa, o pequenino tirou a peça que comprou com o dinheiro recebido de Arwan e a entregou para a dahlan. Precisou fazer alguns contratos escusos, mas lidaria com isso no futuro. Com seu cajado em mãos, tomou a peça de cristal e começou a proferir uma prece em voz alta. O objeto começou a flutuar e emitir um brilho forte. Ambos sentiram uma tontura e seus estômagos se reviraram, mas antes que pudessem cair, o soalho de madeira deu lugar a relva.

— Chegamos. Tem certeza que você vai encontrar sozinho?

A paisagem era uma floresta límpida, verdejante e tranquila.

— Pode deixar — o pequenino deu um passo tortuoso antes de se recompor.

— Serena é bem grande e amanhã eu preciso estar de volta.

— Não se preocupe, amanhã de tarde estarei aqui.

Despediram-se com um aceno e o hynne colocou-se a caminhar. Haviam aparecido próximo a uma vila, mas algo dentro do pequenino dizia que deveria seguir em frente. Deixou algumas moedas com um senhor para alugar um pônei e partiu dali. Em algumas horas, já estava chegando em um vilarejo ainda menor. Muitas casas tinham tetos baixos e a altura média da população se igualava a do viajante.

Desmontou do animal e caminhou ao seu lado até um estábulo, onde sua montaria poderia descansar tranquilamente. Serena era um lugar estranho. Todos sorriam, dançavam e ofereciam ajuda em todos os trabalhos. A paz pulsava do chão, irradiava do sol e podia ser respirada. Tudo era calmo e acalentador. Afastando um pensamento de como seria bom ficar por ali, sentiu um delicioso cheiro de torta de amoras, sua preferida.

Seguiu aquela fragrância pelas ruelas de terra até uma pequena casa. Duas tortas repousavam na janela e ouvia um cantarolar de dentro da casa. Seu coração acelerou. O canto foi interrompido quando a voz falou com um pássaro que pousou na janela. Seu coração parou. O pequenino estava de frente para a porta com o braço erguido, mas não conseguia tocá-la.

— Eu te ajudo — uma jovem alta e de cabelos rosados adornados por uma coroa de flores bateu à porta e começou a se afastar enquanto dançava, embalada por um conjunto que tocava na praça. — De nada!

Boquiaberto, o pequenino tentou agradecer, ou dizer algumas palavras de incredulidade pela intromissão, ou falar qualquer outra coisa. Não conseguiu, seus olhos só admiravam a mulher que se afastava, fascinado. O som da porta se abrindo o tirou de seu transe.

— Pois não — a voz feminina tinha o sotaque esquisito como o dele — F-Fingo?!

— Er… Bom-dia Rosana.

Antes que pudesse continuar a falar, a pequenina o agarrou num abraço apertado. Deu-lhe um beijo suave nos lábios, deixando-o um pouco corado e o puxou para dentro da casa. Rosana não havia mudado nada desde que partira. Cabelos negros, compridos e volumosos, a pele escura e brilhante, o sorriso fácil, os olhos caramelos e os lábios grossos. Como se tomada de uma lucidez inesperada, virou-se para o pequeno preocupada e dizendo:

— Espera, se você está aqui, quer dizer que…

— Eu estou bem, não bati as botas não — riu. — Eu fiz amigos que tem poderes… excepcionais, sabe? Uma delas me ajudou a vir até aqui.

— Ufa! Mas que bom que você veio! Agora podemos ficar juntos novamente.

Enquanto falava, Rosana pegava uma das tortas e colocava sobre a mesa. Era difícil negar que a vida ali parecia muito mais simples e descomplicada que em Arton. Conforme ela cortava a torta, Fingo sentia o peso em seus ombros aumentar. Não podia mentir ou iludi-la, precisava ser sincero logo.

— Desculpa por ter demorado tanto para vir te ver. Eu tive raiva quando… — a palavra era difícil de ser dita, ainda mais em Serena — quando você morreu. Ainda mais por que era bem quando teríamos a nossa família.

Com um olhar triste, ela serviu a torta para ambos e sentou-se à mesa, convidando-o para fazê-lo. Tomou sua mão antes de dizer:

— É a natureza das crianças pregarem peças. A nossa nem nasceu e pregou uma, a deusa da vida também é uma e ajudou na brincadeira, só isso. Eu aceitei o que houve, espero que não tenha sido muito complicado pra você, querido.

A última palavra atingiu-o como uma pedrada. Fazia anos que não era chamado assim.

— Depois de um ou dois anos perdido e praguejando — conforme falava, sentia o peso deixando-o — , eu aprendi que a vida não é sempre como a gente quer. E que nós precisamos buscar a própria paz. Eu nem sabia que cabia tanto ódio num corpo tão pequeno como o meu.

— Finalmente você entendeu o que eu dizia, seu cabeça-dura? Tem descansado? — Rosana sorria.

Viveram boa parte da vida juntos e, mesmo depois de tanto tempo afastados, ainda podiam ler um ao outro com facilidade.

— Isso aqui era pra ser minhas férias — riu. — Eu só vim dizer que está tudo bem. Que sua mãe mandou lembranças e que eu sinto sua falta todos os dias. Mas não vou poder ficar, amanhã tenho que partir.

— Ah, que pena. Você quer cuidar de seus amigos, não é?

Fingo encarou-a com uma expressão surpresa.

— Às vezes me dá medo o quanto você me conhece — colocando um pedaço de torta na boca, lembrou-se de algo que tinha de dizer. — Também queria dizer que abri a confeitaria que a gente sempre sonhou. E uma taverna. E uma oficina. E tenho dois gatos como funcionário, não sei bem como isso aconteceu…

Rosana riu.

— Você é um doce. Aposto que tem um quadro meu na confeitaria! — Fingo assentiu. — Sabia! Eu fico muito feliz de saber que você conseguiu levar a vida. Pra mim foi difícil recomeçar aqui também, mas pelo visto amaram as minhas tortas.

— E quem não amaria? Feitas por mãos tão habilidosas e com tanto amor?

— Então já que você tem que partir amanhã, vamos terminar de comer essa aqui e aproveitar que estamos juntos, querido. Há outras coisas que eu faço e emprego muito amor também.

Havia malícia naquelas palavras e o pequenino enrubesceu novamente.

*************************************

Era manhã. Fingo colocava os alforjes sobre o pônei que alugara e se despedia das pessoas que havia conhecido. A maioria dos viventes ali eram hynnes e nunca se sentiu tão em casa desde que deixara Nova Malpetrim. Despediu-se de Rosana com um beijo e partiu levando apenas o que trouxe e uma torta de amoras para Lavanda.

Sentadas em um banco, a pequenina e a jovem de cabelos rosados conversavam abraçadas, observando-o se afastar.

— Você sabe que não temos garantia de que ele virá pra cá, né? — a jovem dizia.

— Não duvido que venha, ele é teimoso demais pra não vir.

— Farei o possível para que vocês possam ter os pós vida em paz aqui, juntos. Mas isso vai lhe custar algumas tortas!

As duas riram. Marah tinha um senso de humor esquisito.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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