Traição e Redenção

— Surmé, Karon não achar isso uma boa ideia. — Era comum estar apreensiva, ela odiava roubar.
— Quieta, Karon! Você vai acabar chamando atenção de algum guarda — respondeu com um sussurro ríspido. — E me chame de Entranhas. Capitã Entranhas!
Era difícil dizer por que Entranhas insistia em trazer sua irmã nessas missões, já que se odiavam tanto. Talvez por saber que Karon odiava ainda mais roubar, matar, saquear — ou fazer qualquer outra coisa que um pirata comum faria — , fosse todo o encorajamento que ela precisava. Além disso, ninguém tinha patas mais suaves do que elas.
Sair das docas foi fácil, esgueirando-se pelas sombras com passos apressados e abafados pelo som do mar. O Barril, navio de Entranhas, tinha ficado a vários metros de distância, oculto por um desfiladeiro ao sul da baía. Uma tempestade se formava no horizonte a oeste, mas só alcançaria a costa na manhã seguinte. Chegar até a cidadela usando um bote pelo mar calmo de uma noite sem lua foi como ir caminhando sobre as águas.
Surmé era mais velha que Karon, mas as duas eram idênticas, tanto na aparência quanto na forma como se moviam. Orelhas felpudas no topo da cabeça, focinhos rosados, olhos amarelos com pupilas dilatadas pela noite e longos bigodes ocultos sob seus capuzes. Ambas com a pelagem impecavelmente branca, que mantinham escondida. Afinal, ninguém confia muito em um meio-gato. Especialmente à noite.
As irmãs atravessaram as ruas como raios. Moviam-se pelas sombras, aproveitando a escuridão. Pararam algumas vezes, fingindo estarem ocupadas com algum trabalho ou andando calmamente ao passar por estranhos. Escolhiam com cuidado as melhores ruelas para evitar patrulhas de guardas.
— Karon detestar ter que ficar com rabo enrolado na cintura — resmungou enquanto disfarçava um andar despreocupado ao lado da irmã.
Caminharam fingindo naturalidade ao passar por um casal apaixonado que deixava uma taverna.
— Talvez eu devesse cortá-lo junto com a sua língua — Entranhas sibilou para a irmã. — As pessoas desconfiam de gente como nós, agora pare de choramingar e chamar atenção.
— Pessoas não confiar em nós com motivo. Todos ser ladrão ou coisa pior. Surmé ser pirata, não?
Karon sabia a resposta e a alfinetada a fez sorrir antes mesmo de ver o olhar fulminante da irmã.
— É aqui.
Entranhas apontou com a cabeça para uma residência grande que ocupava parte da praia. As irmãs estavam debruçadas na relva a cerca de cem metros do local, observando a faixa de areia repleta de pessoas e iluminada por várias fogueiras. Podiam ouvir o burburinho de dezenas de vozes se sobrepondo. Conversas, risadas, música, palmas. Uma festa de casamento.
Afastado do mar, próximo às irmãs e ao casarão, encontrava-se uma grande tenda de lona, listrada de vermelho e branco. Apenas dois guardas encouraçados portando alabardas protegiam a entrada. Um homem gorducho, de cabelo grisalho e ralo saiu pela abertura entre os seguranças; seguido por uma mulher magra e alta, vestindo roupas pomposas e carregando um chicote. Seus cabelos verdes e orelhas pontudas denunciavam-na como uma elfa. Apenas o grande tigre branco, que levava numa coleira, chamava mais atenção que ela.
— O grande evento da noite está para começar — Entranhas comentou com um sorriso malicioso. — Vão fazê-lo pular, dançar e rosnar. Vão deixá-lo exausto.
— Karon odiar ver animais serem tratados como brinquedos.
— Pois não fique triste. Ele é o pacote dessa noite e vai estar tão cansado que nem vai conseguir lutar para não ser levado! — Entranhas esfregou as mãos com ansiedade. — Aquele tigre branco vai valer muito dinheiro. E se ele morrer, a pele ainda vale uma boa quantia.
Karon quis estrangular a irmã ali mesmo e pôr um fim a essa vida de atrocidades. Pirataria era errado. O pai tinha praticado, mas elas poderiam ter mudado de vida depois que ele sumiu sem dar explicações. Ter arrumado algo respeitável e honesto para fazer. Mas ao invés disso, Surmé intitulou-se Capitã Entranhas e assumiu o barco do pai. Acabar com a vida de sua irmã mais velha seria como remover um peso da terra, mas ela não o fez. “Karon ser melhor que isso, não ser assassina”, pensou.
A dupla levou uma carroça até a parte de trás da tenda, onde se arrastaram por baixo da lona para dentro do local. A manobra as deixou cobertas de palha e terra úmida.
Karon detestava roubar, mas detestava ainda mais estar coberta de sujeira. Infiltrar-se ali manchava não só sua roupa e sua pelagem. Sujava sua alma.
Uma luz cálida emanava do outro lado da barraca, de onde uma gargalhada podia ser ouvida entre várias gaiolas com animais presos. O som do chicote cortou a risada, que se intensificou logo em seguida. As irmãs se aproximaram, ocultas por caixotes repletos de vestes coloridas.
— Tigre idiota! — rosnou a elfa. — Quase não aguentou trinta minutos de apresentação. Pelo menos vai dar um belo casaco.
Perceberam que o homem rechonchudo e grisalho deveria estar rindo há muito tempo, já que enxugava lágrimas dos cantos dos olhos.
— Vá com calma ou não vai sobrar couro para fazermos um casaco — ele disse, recuperando o fôlego. — Vamos, temos uma apresentação com malabarismo e pirotecnia para preparar.
Não demorou para que a dupla de apresentadores deixasse a tenda. Quando o silêncio tomou conta do local, as irmãs saíram de trás das caixas e foram até a jaula do animal. Ele olhava fixamente para elas, mesmo em meio a escuridão. Os felinos enxergam bem no escuro, e tanto a fera enjaulada quanto as irmãs podiam ver com perfeição. Os pelos da perna do tigre estavam chamuscados, fruto de uma acrobacia que não saiu como o esperado ao tentar atravessar um anel em chamas. Também tinha algumas manchas sangrentas que marcavam a brancura de sua pelagem.
Os olhos do tigre estavam fixos nos de Karon, avermelhados do cansaço e demonstrando o mesmo sentimento que a corroía por dentro. Vergonha.
— Rápido, não podemos perder tempo. — A voz de Entranhas quebrou o transe da irmã. — Ele deve ser pesado e temos que colocá-lo naquela carroça.
A jaula era minúscula em comparação ao tamanho do animal. Havia espaço para que ficasse sentado, mas certamente seu comprimento era maior do que aquele caixote de metal se ficasse de pé.
Com ajuda de toras roliças — e muito suor — Surmé e Karon arrastaram a gaiola do tigre até os fundos, onde a carroça as esperava. A fera realmente estava cansada demais para tentar arrancar-lhes os rostos enquanto tentavam levantá-lo. Entranhas sacou uma faca de sua bota e, com agilidade, rasgou a lona da tenda. Emitindo um único e ríspido ruído.
Com um último esforço, as irmãs conseguiram colocar o tigre sobre a carroça. Para sorte delas, a criatura fraca e mal alimentada não pesava tanto quanto um bem cuidado — como aqueles que podiam ser encontrados nos palácios do deserto.
No coração das areias, os lordes gostam de esbanjar suas riquezas exibindo diversos animais exóticos que viviam entre seus criados. Karon desejava que algum senhor rico de lá comprasse o tigre, assim ele poderia fugir de uma vida de abusos e ser tratado com dignidade. Sabia que no fundo era isso que desejava para si também. Dignidade.
— Ei! O que vocês pensam que estão fazendo? — cuspiu o guarda encouraçado que saía pelo rasgo da tenda.
Karon pulou em cima do homem com os joelhos dobrados junto ao corpo, acertando-o no peito enquanto Entranhas aplicava uma rasteira. Juntas, desestabilizaram o soldado pego de surpresa e, antes mesmo de atingirem o solo, Karon já havia sacado sua faca presa a bota.
O impacto os atirou para a escuridão da barraca e o guarda perdeu completamente o fôlego quando caiu no chão. O peso de Karon sobre ele o impedia de gritar por ajuda. Apertando a adaga contra o pescoço do homem — e com seu rabo felino balançando de um lado para o outro — ela decidiu que era hora de acabar com isso. Aproximou seu rosto para que só ele pudesse ouvi-la murmurar.
— Karon viajar para Vons. Mandar corsários, eles saber a rota.
O guarda concordou com um leve aceno de cabeça e ela apertou a faca contra seu pescoço, cerrando os olhos antes de voltar a sussurrar:
— Fingir morrer.
Liberando a pressão da faca, ela desferiu um golpe rápido, encenando um corte na garganta do guarda. Ele se debateu e gorgolejou como se estivesse engasgando em seu próprio sangue enquanto definhava. Karon fingiu limpar a faca nas calças dele antes de guardá-la no compartimento oculto em sua bota. Ao sair da tenda, pegou uma coberta grossa que estava amarrotada sobre uma caixa e a atirou sobre a gaiola do tigre.
— Karon achar uma boa ideia ocultar o animal.
— Quem diria que você tem um cérebro! — Entranhas ofendeu a irmã enquanto forçava os cavalos a iniciarem sua marcha até o porto.
O gesto nada tinha a ver com esconder o tigre, no entanto. Ela só não suportava ver o sofrimento dele.
— Capitã, Karon não achar isso uma boa ideia.
Porém ela não era a única preocupada. A apreensão era compartilhada com toda a tripulação.
— Eu prefiro que a tempestade nos engula do que ser abordada por um traidor! — Entranhas ralhou entre os dentes, fazendo força para firmar o timão contra as ondas.
O mar estava agitado ali. O Barril mal tinha deixado as águas calmas da costa quando avistaram uma Nau as perseguindo. Navegavam em direção a tempestade que se formava perto do porto e, agora, estavam muito próximas. O navio balançava de um lado para o outro com violência e a tripulação corria para prender as velas e salvar os cordames. A embarcação desconhecida chegava cada vez mais perto e, conforme se aproximava, puderam distinguir — hasteada no mastro principal — uma bandeira preta com um sabre e uma varinha cruzados sob uma cabeça de lobo.
— Aquela é a bandeira de Valério Mondeville, o cão do barão Kaladis — Entranhas rosnou, largando o timão para que o timoneiro continuasse a fazer esforço em seu lugar. — Nós vamos entrar naquela tempestade e, se os relâmpagos dela não nos matarem, os dele também não conseguirão. E que Fromia, deusa guardiã das águas, não permita que o mar nos engula hoje.
O capitão Mondeville era conhecido por dominar as artes arcanas. Andava sempre com uma variedade de varinhas mágicas — e atirar relâmpagos era sua assinatura. Surmé preferia arriscar a sua vida e a de sua tripulação enfrentando a tempestade do que ser mais uma das vítimas de Valério.
Um clarão e o estrondo de um raio vindo da Nau de Mondeville interrompeu o andar inquieto de Entranhas sob a chuva, que agora caía forte. O raio eriçou o pelo dos meio-gatos tripulantes e trouxe um gosto metálico até suas bocas. O susto os colocou a trabalhar mais rápido, guiando-os mais rápido para dentro da tempestade.
— Ele está medindo a distância para nos atingir — Entranhas pensou em voz alta. — Karon! Desça e peça para reforçarem as proteções do casco. O Barril tem que resistir o máximo que conseguir.
Sem dizer uma palavra, a mais nova assentiu e se atirou escada abaixo, em direção ao convés inferior, onde os conjuradores mantinham a integridade do navio. No caminho, Karon avistou a gaiola onde o tigre branco encontrava-se sentado, com o mesmo olhar fixo de antes. O olhar de um predador. Cansado e faminto, mas ainda assim um caçador.
— Se vamos todos morrer, não ser Karon que vai deixar você preso até isso acontecer.
Com passos rápidos e um golpe ainda mais veloz de sua rapieira, partiu o cadeado que trancava a pequena jaula. Depois, usando sua arma de alavanca, abriu apenas uma fresta da porta. Afastou-se andando de costas até colocar distância o suficiente entre ela e o animal, e desceu para dar o recado de Entranhas. Quando voltou, viu a gaiola completamente aberta, mas o tigre tinha sumido. O estrondo de outro trovão chamou sua atenção, porém, dessa vez, a embarcação chacoalhou e gritos ecoaram.
Karon correu de volta ao convés, onde estilhaços de madeira estavam espalhados pelo chão. A chuva açoitava o assoalho enquanto alguns pedaços do navio voltavam aos seus locais de origem por magia, fruto do trabalho dos conjuradores que protegiam a embarcação. Um marinheiro estava caído em um amontoado de cordas com os pelos chamuscados e encharcados, e o cheiro de carne queimada logo foi levado pela tempestade. A Nau de Mondeville estava a poucos metros do Barril.
— Preparem-se para atracar! Matem cada um dos desgraçados que pisarem no nosso navio! — Era incrível como Entranhas conseguia se fazer ouvir mesmo em meio à tempestade.
Ela mal acabou de falar e as embarcações colidiram. Marinheiros liderados por Mondeville pularam para o Barril, iniciando uma luta generalizada e desorganizada.
Valério era um meio-lobo alto. Vestia um sobretudo azul e ostentava um broche com o símbolo do reino de Al’Shakran no peito. A insígnia era dada aos corsários sob o comando da coroa, chefiados por Kaladis, o barão de Amburg. Sua pelagem cinzenta se misturava à chuva e à turba, mas seus olhos amarelos e brilhantes caçavam alguém com a precisão de um homem acostumado ao caos do mar e das lutas. Com seu sabre e uma varinha em mãos, saltou com agilidade até o castelo de proa para confrontar Entranhas.
A atenção de Karon foi puxada junto com sua camisa por um marinheiro. Um elfo esguio de cabelos raspados e olhar furioso. Por sorte a primeira facada não atravessou sua couraça, já a segunda nem a atingiu. Um tapa forte na mão do homem e um soco bem posicionado em seu queixo o arremessou sobre a amurada.
Um segundo marujo a atacou pelas costas, mas dessa vez sua couraça não foi o suficiente para segurar a lâmina de uma espada. Gritando e com as costas arqueadas de dor, ela desferiu um golpe com sua rapieira na altura do pescoço de seu inimigo. O homem deu um passo para trás e a lâmina não encontrou resistência. Numa segunda investida, ela perfurou o peito de seu oponente, que caiu de joelhos com uma mancha carmesim surgindo em sua camisa.
Sem tempo para tomar fôlego, Karon foi golpeada por uma mulher. Um ataque certeiro com uma maça pesada, retirando o ar de seus pulmões e escurecendo sua visão por um breve momento.
Resistindo ao impulso de se curvar pela dor, conseguiu evitar o segundo ataque rolando por cima de um antigo companheiro de navegação, pegando seu escudo enquanto se levantava. Aparar o frenesi dos golpes da mulher não era fácil, especialmente com o escudo molhado escorregando de sua mão. O chão — um misto de sangue, estilhaços de madeira, água e corpos — dificultava ainda mais a movimentação. Em um momento oportuno, Karon desferiu um golpe no braço da mulher, o que diminuiu o ritmo do combate e permitiu que ela finalizasse sua oponente.
Quando parou para respirar, percebeu que um dos golpes devia ter quebrado uma ou duas de suas costelas, já que seu peito doía ao puxar o ar, que entrava com dificuldade. Ignorando a dor, Karon ergueu o rosto e viu Valério e sua irmã se enfrentando no castelo de proa. O timoneiro estava caído em um canto, sendo arrastado pelo balançar do Barril contra a tempestade. A varinha mágica na mão do corsário brilhava a cada golpe, forçando Entranhas a dar tudo de si para se defender.
Com dificuldade, Karon usou os cordames para se movimentar por cima dos marujos, aproximando-se do duelo. No momento em que ela saltou a distância que separava as cordas do mastro e as tábuas do chão, Valério largou a varinha que segurava e sacou outra da cintura. Numa fração de segundos, um relâmpago irrompeu das mãos do meio-lobo, perto demais para que Entranhas saltasse para segurança. O raio atingiu a irmã mais velha em cheio, arremessando-a contra a amurada e destruindo parte da mesma.
Valério se posicionou para um segundo disparo, dessa vez à queima roupa. Karon saltou em sua direção, dando um encontrão de ombros no lobo. O relâmpago acabou sendo disparado para os céus e o susto tirou brevemente a concentração do corsário, mas logo seu sabre já estava apontado para ela.
— A julgar pela aparência, você deve ser a irmã mais nova — disse através de um sorriso cínico — , perfeito. Menos trabalho pra mim! — ralhou avançando em sua direção.
Com o corpo dolorido, Karon usou o escudo para se proteger das investidas do meio-lobo. Cada golpe bloqueado causava uma dor pulsante em seu peito. Com o canto dos olhos, viu Entranhas se arrastando para fora de vista, escondendo-se. Sentiu-se suja e traída. Mesmo achando absurda a vida que levavam, ela faria de tudo por sua família, mas sua irmã não ligava se a mais nova viveria ou não. Importava-se apenas com ela mesma. A raiva começou a corroê-la e distraí-la e, com uma ombrada, um pé bem posicionado e um empurrão, Valério a atirou contra o chão.
A queda pesada — com o braço num ângulo esquisito — emitiu um estalo alto que a fez gritar de dor. Os relâmpagos da tempestade iluminaram o rosto do lobo que a olhava com desprezo. Um tipo de ódio familiar a Karon. O mesmo olhar de desgosto que ela tinha toda vez que via um pirata, ou outro tipo de fora da lei. O mesmo desgosto que sentia ao se olhar no espelho.
Antes que Valério pudesse desferir o golpe derradeiro, um rugido sobressaiu ao som dos trovões e da chuva. O tigre branco abriu caminho entre os marinheiros desajeitados e avançou na direção do corsário. Ele tentou acertar o felino com seu sabre, mas o animal foi mais rápido. Num ataque preciso, abocanhou o abdome do meio-lobo, partindo uma das varinhas que ele carregava em seu cinto.
A quebra do artefato mágico gerou uma explosão de chamas intensa e repentina. As labaredas venceram a chuva e a ventania, incendiando as velas e parte da embarcação — matando alguns marinheiros e piratas que lutavam. Valério foi arremessado contra a amurada e quase caiu no mar agitado. Com os pêlos queimados, um olho machucado e a roupa em farrapos, ele recompôs a postura e gritou ordens para seus marujos.
— Recuem! Deixem que a natureza finalize esses desgraçados!
O meio-lobo vasculhou o local rapidamente, mas não encontrou Entranhas. Contudo, as chamas se espalhavam pela embarcação e ele não tinha mais tempo para procurá-la. Andou na direção do tigre e de Karon — que tinham sido arremessados pela explosão — e empurrou o animal com o pé para certificar-se de que estava morto. De sobressalto, a criatura se pôs de pé, arranhando uma das pernas do capitão e pulou sobre Karon. Agarrou-a pela camisa e a arrastou para longe do fogo, para dentro da Nau de Mondeville. Em meio a dor e os ferimentos, a última coisa que a meio-gato viu antes de desmaiar foi o Barril sendo consumido pelas chamas.
Karon abriu os olhos com dificuldade. Suava frio e cada centímetro de seu corpo doía como o inferno. Tinha dificuldade para respirar e um de seus braços parecia quebrado. Quando sua visão se acostumou à luz, percebeu que estava dentro de um navio. O sol atravessava as frestas na madeira e notou que, diferente do Barril, não tinha tanto cheiro de mofo e podridão. Olhou na outra direção e viu dois homens com as mãos descansando sobre o cabo de suas espadas, encarando-a.
Quando tentou se mover, percebeu que estava deitada sobre um travesseiro grande e macio. Porém, ao tentar se virar para vê-lo, uma fisgada em seu peito trouxe à tona as lembranças de sua última batalha. Aquela em que sua irmã escolheu abandoná-la e a deixou para morrer nas mãos do inimigo. Sua boca se encheu com o gosto amargo da traição mais uma vez.
O desconforto da lembrança foi maior que o causado pelas costelas fraturadas e tentou se mover mais uma vez. Foi quando percebeu que não estava recostada em um travesseiro, mas sim no tigre branco que ela havia libertado da pequena jaula. Lembrou-se da forma como ele tinha atacado Valério para protegê-la e achou graça. Criaturas feridas viam valor na gentileza, Karon sabia bem disso.
— Eu evitaria virar dessa forma por pelo menos uma semana. Uma costela quebrada pode ser muito incômoda. — A voz de Valério era inconfundível. Grave e com tom de autoridade. Mas acima disso, soava doce e gentil.
— O que foi, pirata? O gato comeu sua língua? — Era difícil dizer o que doía mais. A costela fraturada, ser chamada de pirata, ou a piada ruim e previsível.
— Karon achar… — mas parou, preferindo ficar em silêncio.
Ela não sabia o que estava acontecendo ali, mas certamente não podia ser bom. Afinal, estava viva, mas no navio inimigo.
— Permita-me, então — continuou o meio-lobo, sentando-se em uma das caixas espalhadas pelo local e sinalizando aos guardas que relaxassem. — Você queria começar de novo, mas não sabia como. Denunciar a rota de fuga parecia uma boa ideia e você o fez. Eu admiro a sua coragem, mas foi um plano bem estúpido.
A meio-gato sustentou o olhar de Valério e alguma coisa nesse ato o deixava inquieto.
— Não vou mentir. Estamos levando-a para o tribunal em Amburg. — Sua voz parecia cansada e parte do seu rosto estava enfaixado, escondendo seu olho ferido. — Fale a verdade e sua sentença será o enforcamento, é só isso que eles querem. Mas se tiver algo a oferecer para o juiz, diga. Foi assim que eu consegui minha liberdade. — A última palavra soou como um deboche.
— Você — interrompeu-se achando que soou casual demais — , digo, Capitão Mondeville surpreender o juiz?
— Eu vivi toda minha vida no mar. Conheço-o como se fosse meu próprio corpo e sinto a correnteza como se ela corresse em minhas veias. Posso encontrar qualquer lugar, em qualquer canto do mundo. Consigo identificar e perseguir o navio que eu desejar, quando eu bem entender. Barão Kaladis viu nisso um potencial para caçar outros saqueadores imprestáveis — um longo suspiro precedeu o restante de sua declaração. — E eu me vendi para sobreviver.
— Karon achar que o capitão ter a decisão correta ao enterrar o passado. Sagosh cansou de ser fora-da-lei, procurada e caçada — ela não mencionava seu sobrenome há muito tempo, soava estranho em sua boca.
— Sagosh? Como em Poffas Sagosh? O famigerado capitão Tripas? — desdenhou. — Eu caço esse desgraçado desde que fui nomeado corsário.
A meio-gato respirou fundo, seu peito doeu como o inferno, mas rilhou os dentes e continuou falando.
— Sim. Entranhas, capitã do Barril, ser filha de Tripas. Entranhas ser Surmé Sagosh, minha irmã.
— Família interessante a sua. — Valério não conseguiu segurar o sorriso. — Parece que você também tem algo para surpreender o juiz, afinal. Ele e Kaladis adorariam qualquer informação que pudesse levar à prisão de Tripas ou Entranhas. Mesmo você sendo parte da família.
Valério observou a mulher escorada no tigre com o olhar vazio e se lembrou de quando ele próprio fora capturado.
— Veja bem, ser de uma família criminosa não é crime maior que ser um pirata — tentou confortá-la sem sucesso.
— Karon não gostar disso. Karon querer sair da pirataria, mas a lealdade à família prendeu Sagosh por muito tempo. Agora chega. Karon precisar de companheiros de verdade. Se não for pra forca, claro — comentou alisando o pescoço, lembrando-se de alguns de seus crimes.
— Se eu fui perdoado com todas as atrocidades que cometi, você também pode. — O homem deu de ombros. — Se o meu perdão veio sob a promessa de trabalhar, você, com informações importantes sobre esses capitães piratas, será ainda mais fácil. O tribunal se diz justo, mas na realidade eles fazem aquilo que for melhor para os objetivos deles. Estar de acordo com as vontades do deus da justiça é irrelevante por lá.
Levantando-se, Valério bateu o pó de suas roupas e se despediu. Quando estava saindo, lembrou-se de algo mais.
— Outra coisa, se quiser que alguém dê uma olhada em suas costelas e no seu braço, peça para o seu animal não tentar arrancar os olhos de quem chega perto de você.
— Ele não ser de Karon. Sagosh só abriu a jaula. — Ela sorriu.
— Pode não ser seu, mas ele não saiu daí desde que te escondeu aqui embaixo. Exceto para roubar bolinhos de bacalhau da cozinha. — Valério balançou a cabeça desapontado.
Pela primeira vez em muito tempo, ela sorria de felicidade.
— Karon certificar que ele não ataque quem se aproximar.
Quando o homem saiu, ela espiou o animal pelo canto dos olhos, pensando que Bolinho era um bom nome para ele.