Um por todos

Diogo Stone
5 min readNov 18, 2021

A moça caminhava tranquilamente pela paisagem horrenda. Não que pudesse ser chamada de paisagem, já que o horizonte não existia. Não era possível distinguir o céu e a terra. Se haviam árvores, não era possível percebê-las; se haviam animais, também não. A própria existência da mulher já era uma esquisitice sem tamanho. Existir era esquisito. Sua caminhada mal podia ser descrita como um andar, pois não se sabia se ela percorria distâncias ou eras. Afinal, tudo era nada e esse nada era vermelho. Tudo é lefeu.

Mesmo assim, desafiando o cenário infernal e impossível para a compreensão da mente humana, ali estava ela. Caminhava com um sorriso nos lábios e as madeixas loiras sacudindo com o movimento. O vento — que também era o chão — soprava e bagunçava seu cabelo. Ela respirava fundo e enchia seus pulmões com o que também era a água dali. Estava feliz, alegre e contemplada. Desde quando estava ali? Não sabia dizer, e não importava também. Ela não era mais Celene, esse era seu nome individualista e mesquinho. Agora, ela era tudo. Tudo é lefeu.

Não conseguia lembrar como Arton terminara. Era difícil precisar quando tudo aconteceu. Uma vez ali, os conceitos criados pelas pessoas deixavam de ter importância. Moralidade, tempo, inseguranças, egoísmo. Tudo havia ficado para trás; ou para frente. Riu sem saber racionalizar aquilo. Finalmente estava em uno com o universo. Sem deuses, sem estrelas, sem terras, sem preocupações. Só o amor e a presença infinita da tormenta que sangrava dali para todas as outras dimensões. Ela era a Anticriação e a dimensão aberrante era ela. Tudo é lefeu.

Ou quase.

Franziu o cenho confusa. Uma expressão estranha — considerando que nem mesmo os ângulos de seu rosto poderiam existir. Aproximou-se oito anos, ou metros, da figura que lhe chamou atenção e viu uma mulher abaixada. Ela respirava a terra, ou o ar, de maneira tão pesada que era possível sentir o gosto do som de longe. Ou de dentro.

— Que a bênção de Aharadak lhe guie a verdade — disse aquela que um dia foi Celene. Sua voz tinha cheiro de rosas, mas logo o aroma se perdia no som de chiados incompreensíveis que deveria ser o vento. Ou uma árvore.

— Vo-você não parece com os outros — a voz da mulher era fraca, sua garganta parecia seca.

Celene ficou contrariada, mas não transpareceu. Tudo era uma coisa só ali. Ou assim deveria, já que a mulher a sua frente transgredia isso.

— Talvez você não esteja pronta para receber o doce abraço de Aharadak e tudo que nós somos. A lógica nubla nossa mente e nos cega para o verdadeiro amor da Tormenta. Um dia você entenderá, um dia tudo entenderá.

A mulher continuava abaixada. Suas mãos seguiam ao lado de sua cabeça numa tentativa vã de minimizar o chiado ensurdecedor que o gosto ácido da dimensão aberrante trazia até seus olhos. A sinestesia que aquele cenário trazia era o pior dos desconfortos para a artoniana.

— É curioso que alguém tenha alcançado a nós sem ter sido assimilada pelo abraço vermelho — a ex-clériga continuava. — Eu não posso dizer que me recordo de minha singularidade, mas teria gostado de ter entrado aqui e apreciado a verdade enquanto ela me consumia.

— Eu não conheci esse lugar por querer — a mulher rasgou, e tossiu. — Eu tenho tanto pra fazer, tanto pra… e agora…

— Agora nada disso importa — Celene concluiu interrompendo a mulher. — Você venceu, chegou no destino ideal. O fim de todas as coisas. Em algum momento, tudo será lefeu. Em todas as realidades e em todos os tempos. Só restará nós e toda a felicidade e união que representamos.

A voz de Celene oscilava entre a doçura de uma caneca de gorad quente e a acidez de uma poça de vômito. Mesmo sem que ela quisesse, o ambiente era desconfortável para a mulher que soltou um grito repentino e estridente. A antiga clériga de Aharadak não se assustou, parecia até que estava gostando de vê-la sofrer. Deu de ombros. Não que tivesse ombros, mas não conseguia precisar seus sentimentos. Eles não eram apenas dela. Então, seguiu dizendo:

— Antes de eu ser nós, conheci muitas pessoas que foram grosseiras e insensatas comigo, isso eu lembro bem. Senti-me rejeitada, senti-me uma pária. Diziam que eu profanava o panteão com o que eu falava, diziam que a divindade que eu cultuava nem existia. Quantas vezes eu ouvi a frase “Como ela poderia ser membro do Panteão depois de tudo que fez? Como você pode aceitá-la?”.

A mulher ergueu a cabeça. Os chiados permeavam seus olhos e tudo estava turvo. Não sabia se seus olhos estavam desistindo de sua individualidade ou se eles estavam se enchendo de água. Por alguns momentos, pode jurar que não era Celene quem falava. Sua visão, embaçada por lágrimas ácidas que queimavam a pele, viam apenas uma silhueta de orelhas longas.

Ela chorou e se engasgou enquanto pedia desculpas para alguém que Celene não conhecia. A ex-clériga podia sentir, literalmente, a tristeza que emanava daquela mulher. Ela havia perdido tudo. Amigos, família, e, agora, a sanidade. Sem dúvidas, ela era muito forte por lutar com tanto afinco contra a Anticriação. Mas Celene esperava que o calor da tormenta pudesse confortar seu coração. Em algum momento, aqueles que ela ama fariam parte daquele todo. Sorriu triste e se aproximou da mulher, tocando-a no ombro.

— Chore. Chore as tristezas do individualismo para fora. Aharadak estará aqui quando você precisar. Ele está em tudo e está em todos. É o amor que arde em nossos corações. É o senso de coletividade que permeia nossas relações.

Como se desperta de um transe, a mulher se afastou da mão que a tocava e marcava sua pele, deixando uma mancha avermelhada em seu ombro.

— Saia daqui e me deixe em paz! Nunca mais me toque. E nunca mais soe tão parecida com ela. Eu não quero saber de porra de união nenhuma, eu só quero sair desse lugar de merda. E se tu não podes me ajudar, especificamente com isso; . Embora.

Celene se levantou, ou deitou, e balançou a cabeça, ou as pernas.

— Tudo bem. Nós não iríamos forçar você a nada. Só saiba que estaremos sempre de braços abertos pra ti.

Conforme se afastava, ou entrava, a imagem da mulher não se apagava da memória lefeu. Aquela pequena singularidade que insistia em estar ali, negando-se a ser ali. Como se atingida pela explosão de uma bomba arremessada por um goblin barrigudo, a amalgama lefeu que um dia foi Celene lembrou de algumas cenas de sua vida em Arton.

Antes de continuar sua caminhada, virou-se para a mulher que voltava a sua posição retraída de antes e disse:

— Sua coroa é linda. Me lembrou de um dragão-rei que conheci.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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