Uma última dança

Diogo Stone
4 min readAug 25, 2022

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O som das ondas era a companhia do hanyo, que relaxava sentado no parapeito de uma sacada da mansão após a festa. Até a lua já havia se deitado, mas Vinny Junior gostava da noite e aproveitava um de seus raros momentos de calmaria. Se não fosse tão sensível às vibrações da terra, jamais teria notado a mulher que se aproximava a passos silenciosos. Sorriu quando Varya saltou a sua frente e, de pé sobre a amurada, fazia lentos passos de dança.

— Você não bebeu demais para fazer esse tipo de coisa? — perguntou com sua voz nasalada.

A gata lançou um olhar apertado e um sorriso fino.

— Talvez — disse com seu sotaque carregado do norte asiático.

Concluiu o movimento antes de se sentar de frente para o rato.

— Ao menos mais do que você, eu beber.

Os dois riram. Vinny não bebia desde um incidente que ocorrera numa madrugada e, por conta da bebida, não pode ajudar quem precisava. Ela sabia disso, mas era uma piada que apenas ela podia fazer sem que o incomodasse.

— Ah, é. Obrigado por convencer aqueles estúpidos lá no vulcão. Eu acho que não teriam me ouvido sem sua ajuda.

Varya deu de ombros.

— Se é uma ideia sua eu confiar. Eu sempre confiar em você, Doctor e… você está todo queimado ainda!

A hanyo se esticou para frente, averiguando os ferimentos da semana anterior. Não estavam tão feios, mas ainda haviam algumas bolhas um pouco ocultas pela pelagem de Vinny. A expressão sisuda dela dizia mais do que qualquer palavra poderia.

— Não é nada. Digo, eu não tenho um ron ron que nem você pra fechar minhas feridas, mas eu tenho a teimosia da família D. pra me recuperar.

Ela revirou os olhos antes de comentar em claro deboche.

— Você deveria ir a um médico.

— Eu já fui — a resposta veio em um tom gutural. Vinny balançou a cabeça antes de continuar. — Desculpe. Eu não sei qual é a do Manolo Junior. Nosso combinado é: ele é os músculos, eu sou o cérebro; mas ele não consegue ficar quieto quando estou falando com você.

— Que curioso — respondeu apoiando a cabeça em sua mão dourada enquanto a ponta de sua cauda se agitava vagarosamente.

— É que ele gosta muito de você, mas respeita mais ainda que eu não gosto.

A hanyo apertou os lábios e baixou o olhar, concordando devagar com a cabeça. Aquilo, tão repentino, não tinha soado como deveria. A dupla seguiu sentada, sem coragem de se olharem novamente e acompanhados de um silêncio constrangedor. O que era incomum aos dois.

— Varya, eu…

— Não, eu entender — ela interrompeu. — Eu disse mais cedo, você merece alguém melhor do que eu.

— Não é isso! — a voz gutural foi acompanhada de um murro sobre a amurada.

Novamente, Vinny sacudiu a cabeça, afastando Manolo do mundo exterior.

— Fica na sua, eu já não sou bom com palavras e você é ainda pior — censurou a si mesmo e respirou fundo antes de tentar novamente. — Varya, mais cedo, eu não fui honesto sobre como eu me sinto.

A mulher levantou o olhar, a expressão seguia sisuda, mas sua cauda acusava a curiosidade.

— Dói muito te ouvir dizer que eu mereço alguém melhor do que você. Eu nunca conheci alguém melhor, e eu duvido que exista. Você é uma cientista incrível, arranca dinheiro de quem acumula, ajuda quem precisa, luta muito bem, dança ainda melhor… e é anatomicamente bem desenhada.

— Você poder dizer só bonita — ela riu, quebrando sua expressão fechada.

— Eu sou um rato rabugento que se preocupa mais com o bem estar de todas as pessoas a sua volta do que com si mesmo. E eu também sou um rato irritado que adora uma boa briga, uma vida de regalias e operações escusas. E mesmo assim, aqui estamos nós dois. Não é?

Varya não disse nada, o que já era surpreendente. Apenas se arrastou até ficar bem próxima de Vinny, virou o ombro na direção dele e se inclinou questionando:

— Posso?

Um pouco desajeitado, ele se aprumou, concordando com a cabeça enquanto a gata se aninhava em seus braços. Aquilo era novo para ambos.

— Eu ver você como uma pessoa que só faz o bem e eu imaginar que você mereça alguém que seja assim também. Só isso.

— E eu sei que esse papo de merecer é bobagem. Eu nunca tive intenções com ninguém, e hoje sei que não é um problema, é só como eu sou. E também sei que isso não me impede de amar alguém.

As garras de Varya, que dançavam pelo braço do rato, congelaram. Ela permaneceu imóvel por alguns segundos, até começar a ser sacudida de leve pela risada do hanyo.

— O quê? Nunca fui claro o suficiente? Eu devo estar ficando tapado igual meu pai.

Ela levantou os olhos, encontrando os de Vinny. Sua expressão era curiosa.

— Doctor, você…

— Se eu te amo, Varya? — ele riu novamente. — Ora, mas é claro! Quer dizer, não como La Santíssima Muerte gostaria, aparentemente — concluiu lançando um olhar de soslaio para o braço dourado da mulher.

— Não sei se posso dizer que sinto o mesmo.

Ele deu de ombros.

— Esse sentimento só existe de verdade quando é recíproco. Você não precisa dizer nada, eu sei.

A resposta àquele comentário veio na forma de um sorriso bobo, incomum para a gata. Ela desviou seu olhar de Vinny e encarou o crepúsculo que anunciava o novo dia nascendo. Sentia-se bem e tranquila. Havia salvo o mundo, recuperado a ilha de sua amiga e estava aconchegada — possivelmente — na única pessoa em quem confiaria sua vida.

Demorou um tempo para que alguém dissesse algo, e foi o hanyo que rompeu o silêncio.

— Você gostaria de uma última dança?

— Vamos dizer que isso ser novo tipo de dança.

Ele riu, franzindo o cenho em seguida.

— Você está ronronando?

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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