Uma Noite Especial
O hynne respirou fundo, reunindo toda a coragem que tinha. Tentou desenrolar as palavras em sua mente, esforçando-se ao máximo para não soar atabalhoado, no entanto, saiu dizendo:
— Olha, Izolda, então. Eu sempre tive mó consideração por ti, saca? E, po, esse lance de ser só amigo e tal, sei lá, tipo, eu queria algo mais. A gente se conhece a mó tempão e já dividiu altas parada — o pequenino parou de falar com um sorriso bobo no rosto, que fora morrendo enquanto chacoalhava a cabeça. — Caramba, eu sou idiota mesmo.
— Discordo pontualmente.
A voz doce atingiu Lauss como uma pedrada. Virou-se para encarar a recém-chegada, uma hynne trajando um vestido leve e carregando um sorriso sapeca, de cabelos castanhos encaracolados e presos por uma tiara de pequenas flores brancas. Ele sentiu as pernas tremerem, mas não sabia dizer se era o medo dela ter ouvido a sua declaração tosca ou o maravilhoso cheiro floral que vinha dela.
— Izolda, eu, é, você tá aí a muito tempo?
— Eu deveria? — o sorriso seguia estampado no semblante da pequenina. — Enfim, pontualmente porque as vezes você faz umas burrices mesmo.
— Po, foi mal — ele sentia o rosto ficando quente enquanto encarava os próprios pés.
— Vamos Lauss, logo vai anoitecer e o festival já deve ter começado — dando as costas ao outro, completou antes de correr em direção à praia. — Pra compensar, você é bonito.
O pequenino levou alguns instantes para seguir na direção dela. Com certeza, aquela seria uma noite inesquecível.
Os dois pequeninos saíram rindo da roda de dança, suados, mas longe de estarem cansados. Izolda atirou-se em um dos bancos de feno próximos, o vestido leve e rosa claro grudado ao corpo. Esticou-se sobre o assento, não deixando espaço para o outro se sentar.
— Você perdeu, você busca as bebidas — acusou com um olhar falsamente inquisitivo.
— Ah, era uma competição então?
— Só quando você perde.
— Po, pode crê — Lauss concordou com um sorriso no rosto enquanto se afastava.
A noite estava fria e ventava bastante, comum para aquela região costeira de Hongari. Naquele dia, estava especialmente escuro longe das fogueiras, mas nada que incomodasse Lauss. Estar na presença de Izolda sempre lhe deixava contente.
Pegou duas bebidas e atirou alguns tibares sobre a bancada para pagá-las. Suas pernas doíam da dança, mas pensar nas risadas da hynne que o acompanhava, fazia aquilo não parecer nada. Pressionou os lábios pensando em como falaria o que sente para ela. Não era especialmente bom com palavras. Logo a imagem dela voltou a preencher sua visão e deixou isso de lado por um tempo.
— Agora sim, permissão para sentar concedida! — Izolda disse sentando-se sobre o feno, dando espaço para ele e ajeitando o vestido. — E ainda trouxe o meu preferido, que amor!
— É só cerveja — riu, permitindo-se descansar ao lado dela.
— Nunca é só cerveja.
Balançou a cabeça vendo a pequenina verter metade de seu caneco antes de tomar coragem para falar.
— Izolda, eu… — parou quando a hynne lhe dirigiu total atenção, o pequeno sorriso ainda estampado no rosto — , é, a gente se conhece a mó tempão, né? Aí, assim, eu queria saber se a gente não podia ser, sei lá, mais que…
— Lauss — ela o interrompeu — , por que você só não me beija logo?
Era difícil dizer se ele havia congelado por conta da risada e do rosto corado de Izolda, ou por conta do seu coração que errava o compasso das batidas — ou por conta dos gritos que começaram.
Os dois olharam ao redor, o susto estourando aquela bolha que havia se formado entre eles. Os olhos se arregalaram ao verem sangue espirrar. Um hynne atacava, com os dentes, outra pessoa. Alguns tentaram separar a briga, mas também acabaram mordidos pelo agressor. Uma espessa névoa se formava nos arredores, ameaçando engolir o festival e cobrindo todo o firmamento.
Os dois se levantaram e, de mãos dadas, correram para longe do sangue e dos gritos, esbarrando em alguém no caminho. O som gutural que emanou da garganta da pessoa causou calafrios por todo o corpo deles. Lentamente, a criatura se virou na direção deles. A pele pálida, os olhos vazios e a boca entreaberta, recheada de dentes podres, terra e vermes.
Lauss e Izolda gritaram e correram como nunca. Se suas pernas doíam, esqueceram disso por uns instantes. Tentavam sair daquela névoa, mas parecia que ela se erguia do chão. Tal qual os mortos que surgiam.
— Zumbis! — era Izolda. Os gritos continuavam — Eles estão por toda parte! Lauss, precisamos fazer alguma coisa!
O hynne a abraçou. Apavorado. Tentou pensar em algo, no que fazer, quem chamar. Nada. Não conseguia pensar em nada diferente de fugir. Correr o mais rápido que pudesse até chegar no…
— Mar! Vamos para o mar. Eles são lentos, não vão conseguir nadar atrás da gente!
— E deixar todo mundo para trás? — os gritos seguiam ao longe, parecendo diminuir aos poucos.
Lauss não conseguiu responder. Izolda se desvencilhou dos seus braços e se afastou com lágrimas nos olhos.
— Eu vou tentar achar nossas famílias e amigos — mal conseguia falar, a voz embargando. Ela pressentia seu destino ao fazer aquela escolha.
— Izolda, por favor, não…
Antes que ele pudesse continuar, a pequenina correu para dentro da neblina. Lauss pensou em correr atrás dela e ajudá-la. Pensou em quão heroico eles poderiam ser lutando contra os mortos-vivos. Pensou no sorriso dela mais uma vez.
Então, o vento salgado invadiu suas narinas.
Por mais que tenha pensado em voltar, seus pés o levaram até o mar. Até um pequeno bote. As mãos trêmulas e as pernas bambas, mal conseguiram remar desajeitadamente enquanto seu coração tentava pular para fora do peito. Os gritos, deram lugar ao som das ondas e, a neblina, a imensidão do oceano noturno.
E, por muito tempo, a única companhia de Lauss, foi a maré.