Viagem de despedida

Diogo Stone
6 min readNov 5, 2020

Abriu os olhos e sentiu uma dor lancinar seu peito. Sentou-se arqueando as costas e franzindo o cenho, piscando várias vezes para clarear a visão. Estava sozinho em um quarto e várias faixas manchadas de vermelho envolviam seu peito. Levantou-se com dificuldade e não se preocupou em procurar sua camisa ou seu arco e flechas. Olhou pela janela e perdeu o fôlego com tamanha beleza. Em um córrego próximo, crianças de orelhas alongadas brincavam de atirar água umas nas outras. A paisagem era verdejante, o céu era pintado por um lilás esplendoroso e as construções emanavam padrões arcanos cintilantes. Sorriu.

— Bem-vindo — uma voz afável o fez virar rapidamente.

A elfa o analisava da porta. Trazia uma xícara com algo fumegando em suas mãos e logo cheiro de canela começava a inundar o recinto. O homem se distraiu por uns instantes admirando os longos cabelos pretos, olhos púrpuros e sorriso encantador. Balançou a cabeça quando notou que a olhava indiscretamente.

— Olá — sua fala saiu rouca e pigarreou antes de tentar mais uma vez. — Olá. Desculpe-me a distração. Sou Cuhtalion.

A mulher riu do elfo que ruborizava levemente.

— Você está melhor? — disse se aproximando e entregando o chá a ele, que aceitou com um maneio de cabeça.

— Me sinto bem, mas pra ser sincero, não me lembro de muita coisa. Eu enfrentava uma horda de goblinoides que tentavam destruir o quarto forte entre Lenórienn e Maldabvienn — suspirou. — E se estou aqui algo deve ter dado errado. Que parte da cidade é essa? Estamos em Maldabvienn? Acho que nunca estive aqui.

A elfa mordeu os lábios inferiores, aquela sempre era a parte mais difícil.

— Tome seu chá e ponha uma roupa limpa, estarei esperando por você lá fora. Caminhar vai lhe fazer bem.

*****************************************

Andavam devagar pela pequena estrada de cascalhos que serpenteava em meio a floresta. Ainda podiam ouvir as risadas das crianças ao longe. O ar era puro e o clima agradável. Cuhtalion tinha várias perguntas e ficava ansioso a cada passo, desviando o olhar para a elfa a todo instante. Contudo, sua disciplina o dizia para aguardar. Havia sido salvo do campo de batalha após algo dar errado e não seria correto despejar uma torrente de questionamentos em sua anfitriã. Para sua alegria, a mulher finalmente quebrou o silêncio.

— Você lutava nas linhas de arquearia do septuagésimo quarto batalhão. Enfrentava a horda duyshidakk que tenta cortar a linha de suprimento entre as duas cidades élficas. Você foi acertado por uma das armas de cerco goblinoide, uma pedra enorme te esfacelou junto com outros três homens.

Sua voz era triste. Era seu trabalho, mas odiava essa parte. Tinha a obrigação de trazer a lembrança do momento derradeiro, aquele que findava uma vida e iniciava uma nova.

— Por Glórienn! Eles estão bem? — espantou-se.

— Eles, assim como você, estão mortos — a elfa mantinha uma expressão impassível.

— Que tipo de brincadeira é essa? — começou a se irritar. — Não me leve a mal, agradeço pela hospitalidade e tudo, mas… — sua voz foi morrendo conforme se lembrava de lapsos daquele dia.

A mulher a sua frente desviou o olhar. Já tinha visto aquela negação inúmeras vezes em sua longeva vida. Elfos dificilmente morrem de velhice, logo, a maioria chegava até ali após algum evento traumático.

— Eu posso lhe mostrar em detalhes, se quiser.

— Por favor.

A mulher se aproximou e tocou a face de Cuthalion. O elfo sentiu um estrondo em seu peito, como se fosse arremessado a quilômetros de distância por um impacto repentino. Logo perdeu de vista seu corpo que caía de joelhos e o rosto triste da elfa que o acompanhava. Sentiu-se arrastado por um rio de memórias dolorosas, ouviu gritos, lamúrias e, de repente, estava no quarto forte novamente. Olhou ao redor e viu a si mesmo e a seu amigo, Irlandir. Bradou algo para ele, mas não possuía voz — era apenas um espectador daquela lembrança.

— Malditos duyshidakks! — a voz grave de seu amigo sobressaindo o som da batalha.

— Vamos, temos que subir na amurada e impedir que invadam pelas escadas.

A dupla correu como o vento. Moviam-se com agilidade e graça sobrenaturais enquanto Irlandir proferia palavras em élfico e fazia gestos precisos. Uma prece à Glórienn para protege-lo. Chegaram ao topo quando uma das criaturas verdes terminava sua escalada, apenas para encontrar uma flecha em sua testa. Cuthalion era veloz com o arco.

— Trinta e quatro — disse em voz alta sorrindo para o amigo.

— Você tem costumes esquisitos — o clérigo comentava chutando a escada com um impulso mágico, derrubando os outros goblinoides que escalavam.

O arqueiro se aproximou da proteção rochosa dos muros e começou a disparar várias flechas. Mal piscava entre uma seta e outra e, vez e meia, recitava um número crescente em voz baixa. Apenas Irlandir e sua audição aguçada conseguia compreender as palavras e o motivo delas. Cuthalion gostava de saber exatamente quantos desgraçados matava. O clérigo disparou uma imensa esfera flamejante, atingindo uma pequena construção de madeira que um grupo de goblins começava a erguer.

— Se eu lançasse uma dessas perderia a conta — o elfo com o arco riu.

— Concentre-se. Não podemos deixar que ergam aquelas monstruosidades ou os muros não irão resistir.

Voltando a atenção ao campo de batalha, o coração de ambos congelou. Vários elfos brigavam para impedir a passagem dos duyshidakk pelos portões do forte, mas uma figura alta e peluda se destacava em meio à multidão. Se aproximava dos muros desferindo golpes com um grande machado que, a cada ataque, pelo menos quatro guerreiros morriam. Ele não parecia se importar se acertava goblinoides ou elfos, apenas matava. Era o campeão de Ragnar, Thwor Ironfist. Cuthalion se adiantou e disparou cinco, oito, doze flechas contra o massivo bugbear — mas todas as flechas ricochetearam em uma proteção invisível que ressoava a cada impacto. Irlandir permaneceu congelado de medo.

— Acorde, irmão! Precisamos continuar nosso trabalho ou…

O som de uma catapulta sendo acionada o interrompeu. Uma enorme rocha negra vinha na direção da amurada e, com um mergulho, Cuthalion se arremessou contra Irlandir, atirando-o para fora da trajetória do enorme projétil. Contudo, acabara no caminho do pedregulho que o arrastou por metros antes de esmaga-lo contra o solo, rolando logo em seguida sobre outros três guerreiros que haviam recuado para recuperar o fôlego.

Os gritos despertaram Irlandir de seu transe. Saltando por cima do combate e caindo devagar, pousou ao lado de seu amigo ferido. Pôs as mãos sobre seu peito ensanguentado e orou à Glórienn. Suas mãos brilharam e Cuthalion cuspiu sangue, mas não parecia ter surtido efeito. O arqueiro, com suas últimas forças arrancou seu broche da deusa dos elfos e o entregou ao clérigo. Com a voz rouca e o peito ardendo como o inferno disse:

— Peça desculpas a Sedrywen por mim.

Enquanto o elfo dava seu último suspiro e Irlandir praguejava e gritava, sua consciência foi puxada novamente. Estava em frente à sua casa. O amigo que lutara ao seu lado bateu a porta com um semblante fechado e respirou fundo, apertando um pequeno objeto contra o peito.

— Sedrywen? — a voz masculina perguntava — Já chegou?

Assistiu com pesar a cena de sua amada — com seus lindos cabelos roxos e traços finos — desabar em lágrimas ao receber a notícia de sua morte. Não poderia retornar a ela, contar-lhe quantos duyshidakk abateu ou simplesmente desfrutar de sua companhia mais uma vez.

Sentiu um segundo puxão e viu uma Sedrywen diferente. Carregava o broche de Glórienn com tanto orgulho quanto carregava seu arco. Lutava ao lado de uma jovem de cabelos rosados, um rapaz sorridente e um homem de cabelos raspados e semblante sério. O grupo parecia conectado, unido e, para seu alento, feliz.

Sorriu e, tão repentino quanto saiu de seu corpo, estava de volta. De joelhos sobre a relva e encarando o céu que havia cedido seu roxo crepuscular à escuridão da noite.

— O que foi tudo isso? — perguntou enxugando as lágrimas que desciam de seu rosto involuntariamente.

— Sua partida, as marcas que deixou e o futuro que aguarda aquela que ama — a elfa sorria tênue.

Cuthalion se pôs de pé e bateu a sujeira de suas calças, balançava a cabeça imaginando como Sedrywen chegaria àquilo. Sabia que ela era forte e sua fé inabalável.

— Obrigado senhorita… — fez uma pausa e sorriu sem graça. — Acho que não perguntei seu nome.

— Meu nome é Marilinaviuncen, mas pode me chamar de Mari se preferir. Eu recepciono nossos irmãos que chegam aqui em Nivenciuenn, o plano de Glórienn.

O homem assentiu sorrindo. De certa forma, viajou para longe, mas ainda estava em casa.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

Diogo Stone
Diogo Stone

Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

No responses yet

Write a response