Vidas
Abriu os olhos respirando fundo. Já sorria. O ar era limpo e agradável, o que tornava difícil querer deixar seu sono para trás. Fez uma preguiça, como de costume, e se pôs de pé. Não se vestiu, não era preciso e os vizinhos não reclamariam. Pegou a delicada peça de cerâmica — onde havia deixado tinta curtindo no dia anterior — e pintou seu rosto no padrão que já tinha repetido inúmeras vezes. Não havia lugar para ver seu reflexo, mas também não precisava. A pintura que representava ela, a pintura que dizia mulher, saía naturalmente de seus dedos enquanto corava de vermelho sua pele escura.
Saiu de seu espaço reservado e olhou em volta. O sol pintava o verde ao seu redor com imensa beleza, não havia possibilidade de não sorrir para tudo aquilo. Seus lábios grossos adornavam seu rosto, acompanhados de um nariz levemente achatado e olhos tão negros quanto os cabelos que lhe desciam pelas costas. Um grasnado chamou sua atenção e logo avistou uma ave verde e amarela.
— Bom-dia — disse em seu idioma natal, cumprimentando o papagaio que pousava em uma árvore próxima.
A mulher apanhou uma fruta próxima a ave e dividiu com ela, saboreando seu dejejum em conjunto. Logo, seu tio e tia — que um dia se chamariam Aloísio e Ivana, mas não nessa vida — chegariam para que ela fizesse a previsão sobre a atual gravidez do casal. Era o trabalho de uma xamã. Lembrou da senhora que passou no dia anterior “Que bom que você voltou e sempre vai voltar”. Será que ela falava de sua última peregrinação ou dizia isso para o seu “eu” de outro tempo? Não deu importância. Afinal, era guerreira, defensora daquela mata.
Ela sabia que naquele dia encontraria um povo diferente, estava escrito em seu destino. A deixava curiosa saber que os homens que chegariam estariam portando ferramentas esquisitas e sem utilidade aparente. Ela amaria um daqueles homens, não sabia o motivo ainda, mas seria seu grande amor. Nessa vida, na próxima e em todas as outras.
Perguntou-se se não teria errado em sua visão e riu do pensamento tolo. Jamais se enganara. Indagou o pássaro o que ele achava, ele respondeu que se preocupava, mas a índia deu de ombros. O dia estava agradável, e teria acontecimentos importantes pelos quais ela ansiava a muito tempo. Perdeu algum tempo pensando se algum dia lembraria desses momentos felizes em seu reduto de paz e tranquilidade. Acho que por mais que tentemos, jamais esquecemos quem somos de verdade, pensou.
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Ana acordou em sua cama, no seu quarto. Tinha se encontrado mais uma vez enquanto dormia, pois no mundo dos sonhos, seu passado, presente e futuro muitas vezes se misturavam. Estava disposta e alegre. Olhou para seus pés e recebeu um olhar sonolento de volta de seu gato. Achou graça.
Pegou o celular, ativou o wi-fi e já foi escrevendo para seu amado: “Eu era uma xamã. Morava no meio da floresta[…]”