Sangue, Ouro e Essência

Diogo Stone
8 min readApr 16, 2022

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Este conto é uma continuação de Sangue, Ouro e Trevas.

A explosão engoliu os dois e abriu um rombo na parede. Marie tossia e vasculhava os arredores, procurando Salazar em meio aos escombros. Quando a poeira baixou, viu o ruivo começar a se erguer enquanto Sckhar caminhava lenta e pacientemente em sua direção. Os olhos da bruxa se tornaram púrpuras e um crânio fantasmagórico surgiu em suas mãos. Com um gesto, atirou-o na direção do elfo, envolvendo-o em uma explosão de trevas. No entanto, o senhor de Gallystrix não pareceu se incomodar. Agarrou Salazar pelos cabelos e começou a arrastá-lo para o centro da sala.

Sckhar ardia em chamas e o fogo lambia e dançava feroz entre ele e o mago. As proteções mágicas o impediam de ser queimado vivo. Marie se levantou e começou a correr em sua direção, mas sentiu um aperto no estômago. Uma corda se enrolava em seu torço e a puxava para trás, para longe do seu amado. Ela gritou e se debateu, mas uma voz conhecida, imponente — e extremamente irritada — censurou sua raiva.

— Cê quer morrer, caralho?! — da cratera que se abriu na parede, Arwan puxava a bruxa para fora do salão com um aparato esquisito que enrolava a corda presa a ela. — O desajustado do teu marido se vira com o papai, a gente tem outras merdas pra resolver.

— Mas ele pode…

— Morrer, sim, caralho. Todos nós podemos morrer aqui nessa porra. O Salazar sabe se virar. Agora anda logo, puta que pariu. É mais fácil cuidar dos filhos de vocês dois.

A corda terminou de se retrair, retirando Marie de dentro da sala do trono. Quando ela e Arwan estavam lado a lado, a bruxa pareceu recordar do plano. Seu semblante tornou-se mais sério e menos preocupado. Assentiu encarando as escleras negras da amiga, pegou sua mão e as duas desapareceram dali — engolidas por um bolsão dimensional.

Sckhar observou por cima do ombro enquanto arrastava o mago pela pilha de tesouros que derretia vagarosamente. O calor que ele emanava, aos poucos, transformava a sala num mar de ouro. As pedras de mármore liso começavam a se tornar carvão em brasa com tantas chamas.

— Sua concubina já te abandonou, e sua amiga também. Assim é melhor, ninguém precisa ver o que vou fazer com você, moleque.

— E o que você acha que vai fazer comigo?

Distraído pelas duas mulheres fugindo do salão, o elfo mal notara quando o peso que carregava havia diminuído. Olhou para sua mão que, agora, segurava apenas uma mecha de cabelo ruivo e riu enquanto incinerava as madeixas.

— Desculpe estragar o seu penteado — debochava — , mas assim você fica menos parecido comigo. Deve se sentir melhor assim.

Salazar não respondeu. Sua mente acelerada estava imersa em cálculos mais uma vez. Custos materiais, probabilidades e, acima de tudo, poder mágico. Também se perguntava de onde Sckhar tirava tanta energia bruta.

— Vai brincar sem uma arma agora? Isso eu quero ver. Você parece tão fraquinho sem seus brinquedos — o sorriso serrilhado voltou a estampar o rosto do elfo enquanto voltava a se sentar em seu trono, que derretia lentamente sob sua pele ardente.

De sua bolsa, o mago puxou um pergaminho o qual sequer precisou desenrolar. Agarrou uma pedra bruta de aço-rubi da pilha de tesouros de Sckhar e, com duas palavras mágicas, o papel ardeu consumido por essência mágica. A pedra se transmutou em uma espada idêntica à que o dragão havia destruído mais cedo. Ele ainda sustentava o sorriso serrilhado e, agora, batia palmas devagar.

— Eu não sei de onde vem esse seu poder agora que não é mais um dragão. Mas eu vou descobrir nem que tenha que arrancar a sua essência para estudá-la.

— Não faça promessas vazias, Salazar.

O mago hesitou. Aquela fala não havia soado como um aviso, nem como uma provocação. Era só convicta, uma verdade. Algo casual. Mais do que a força das próprias palavras, o arquimago entendia o peso da forma como elas eram ditas.

— Vocês tiraram minha essência dracônica, e devo confessar, isso me deixou muito irritado, mas também um tanto animado. É a primeira vez que alguém é estúpido o suficiente para tentar algo do tipo, e sortudo o suficiente para conseguir — levantou-se do trono, o ouro derretido escorria de seu corpo, mas não parecia o incomodar. — Mas me diga, Salazar Bloodstone, arquimago, fundador do Empório Estrela da Manhã, caminhante da terra do sonhar, escriba arcano, pai de duas belas crianças; qual é a sua essência?

A formalidade repentina incomodava o ruivo. Sua lâmina recém conjurada parecia um brinquedo frente ao avanço lento e tranquilo de Sckhar. Podia sentir o peso da energia mágica que vertia dele, como um astro que dobrava o espaço ao se aproximar de outro. Sentia-se tão bobo com aquilo que abaixou a arma, não fazia sentido naquele momento.

— A magia é uma trama complexa e quase invisível. É preciso muita maestria, estudo e cálculos precisos para agarrar os fios que moldam a realidade e torce-los a nossa vontade. A minha essência é a lógica, é o raciocínio. Eu sou minha própria essência.

— Bonito, poético — o elfo parou de andar e, com o pé ardendo em chamas, chutou o que parecia ser um cajado em meio aos tesouros espalhados. — Mas mentiroso!

O chute acertara uma alavanca. Uma série de estalos e rangidos começaram a ecoar pela sala que ardia. O som de engrenagens se uniu ao raspar do metal contra a pedra bruta. Aos poucos, a sala do trono se tornava um bolsão metálico — um domo envolvendo os dois homens sobre aquela pilha de ouro derretendo. O calor que emanava de Sckhar começava a incomodar o mago, o que não deveria acontecer graças a suas proteções mágicas.

Encarou as mãos e pôde ver as tramas da magia começarem a desvanecer. Quando ergueu o olhar, o dragão já estava em cima dele, golpeando-o no peito com suas garras flamejantes. Salazar voou alguns metros para trás, quase caindo de cara no chão. Sua armadura arcana sequer tentara protegê-lo.

— Oh, surpreso que os fios que moldam a realidade não chegam aqui? Você disse que queria tomar o que era seu por direito, certo? Nesse caso, vai precisar tirá-lo de mim apenas com as habilidades que são suas por direito, moleque!

A garra de Sckhar partiu o ar entre eles, mas Salazar conseguiu impedir que ela o rasgasse ao meio. Com sua visão mística, a qual dava seus últimos suspiros, pôde notar que o domo cortava qualquer ligação com o natural e com os planos. A magia de fora não encontrava caminho para dentro. Estavam a sós com suas habilidades naturais agora. Naquele espaço, as variáveis externas não importavam, apenas o que acontecia ali dentro era relevante. Só um deles sairia vivo dali e, até que o domo fosse aberto, os dois estavam vivos e mortos para o mundo exterior.

— Isso tudo é medo de me enfrentar com toda minha força? — Salazar assustou-se com a facilidade que foi desdenhar do pai, mesmo preso em um espaço tão pequeno com ele.

— Sua força? — riu. — A magia não é sua, pirralho. Você mesmo disse que apenas molda a realidade.

Com um passo entre o espaço-tempo, Sckhar estava novamente de frente para o mago.

— Eu sou um deus, Salazar, eu sou a realidade.

Era difícil dizer se a cara de espanto fora por causa do soco no estômago ou da constatação óbvia que ele havia deixado passar. Se viu flutuando lentamente após ser arremessado outra vez, a mente trabalhando mais rápido que o próprio tempo. Sckhar não tinha apenas a essência de um dragão, ele também tinha a centelha de um deus. Acreditaram que ambas estivessem unidas, mas se enganaram. Essa era uma das variáveis que não havia como preverem.

Agora, naquele espaço minúsculo, ele não era mais do que um garoto com uma espada de brinquedo enfrentando um deus que ardia com magia. O tempo pareceu voltar a fluir e Salazar caiu com um estrondo, batendo as costas contra as paredes do domo. Começou a tentar se levantar, mas não teve sucesso. O calor intenso tornava até mesmo respirar difícil. O elfo virou o corpo do mago para cima. Ele sangrava e arfava e Sckhar estalou a língua com desdém.

— Achei que você duraria mais tempo, seu inútil.

Salazar sentiu a mão escamosa e pesada atingir seu rosto com um soco. Mas sua mente apenas indagava “Qual a minha essência?”. O mago nunca ficara sem encontrar respostas para o que queria e, agora, estava à beira de ser morto com uma dúvida rasgando sua mente.

— Inútil! — o elfo vociferava cada vez que acertava um novo soco no rosto do mago.

Pensou nos estudos, na magia, nas tramas. Nada.

— Inútil! — cada impacto ecoava dentro do domo metálico.

Pensou em Marie, nos filhos, nos amigos. Nada.

— Inútil! — o chão se partia abaixo do mago a cada soco.

Pensou na infância, na mãe, no pai.

— Inútil!

Seu pai.

Encarou o olho cego que bradava e o espancava e sentiu como se uma chama acendesse dentro de si. Ergueu uma das mãos, segurando o próximo soco de Sckhar. O elfo se surpreendeu que o mago ainda estava consciente. No entanto, Salazar conseguiu o empurrar para longe, para a surpresa de ambos.

Cambaleou se colocando de pé. O arfar havia dado lugar a uma respiração funda, mas controlada. A mão que aparou o frenesi, agora estava completamente coberta de escamas e com garras afiadas. Sua raiva inflamou seus olhos, que agora ardiam com chamas azuladas. Suas feições lentamente se embruteciam, enquanto escamas vermelhas começavam a adornar seu rosto e dois córneos igualmente carmesins despontavam de sua cabeça.

Sckhar sorria como se tivesse vencido o combate.

Com um passo dobrando a realidade, o homem surgiu em frente ao deus dos dragões vermelhos e acertou com um soco em seu rosto. O impacto o atirou do outro lado do salão lacrado, fazendo-o bater a cabeça contra o metal antes de cair no chão. Quando Sckhar se levantou, sangue vermelho e prateado escorria pela sua face. Agora, ele ria de entusiasmo.

— Eu sou Salazar Bloodstone — o mago começou. — Arquimago, esposo de Marie Antoinette Beauregard, pai de Kieran e Ellizabeth, fundador do Empório Estrela da Manhã, escriba arcano, caminhante da terra do Sonhar, filho de Moriana Bloodstone e Sckhar.

Agora, o fogo azul que ardia em seus olhos tomava conta do resto do corpo. Escamas vermelhas continuaram a surgir até cobrir toda sua pele branca. Então, anunciou com a voz mais gutural que antes:

— E eu sou a porra de um dragão.

Salazar sentiu algo batendo contra a testa e despertou em sua escrivaninha. Podia ver a luz do sol tentando vencer as espessas cortinas que impediam Azgher de chegar até sua esposa, que dormia na cama atrás dele. Suspirou sem saber se havia tido um sonho ou um pesadelo. Precisaria conversar com Morpheu sobre aquilo em outro momento.

Atravessando o Portão de Chifres e o Portão de Marfim, passando pela Casa dos Mistérios e a Casa dos Segredos, desvendando os mistérios da Biblioteca dos livros não escritos, escondia-se o palácio do Sonhar. Ali, chamas negras ardiam em uma pira e revelavam a cena em que Salazar despertava a essência dentro de si. Morpheu admirava o acontecimento e achava graça. Mortais eram estranhos. Ao lado dele, ardia o único ponto com cores naquele universo monocromático.

— Ele é cético demais para acreditar que um mero sonho seja uma profecia, Thyatis.

A fênix não respondeu.

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Written by Diogo Stone

Diogo é programadore, escritore, game designer e hater de impressoras. Uma pessoa entusiasmada que escreve contos de fantasia aqui e regras de RPG na Naiá Jogos

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